NOJO E LUTO DE UMA LÍNGUA...


 

A LÍNGUA PORTUGUESA ESTÁ DE LUTO

 

Dia 17 p.p., durante a última sessão parlamentar que antecedeu as férias da Assembleia da República, qualquer coisa de muito feio aconteceu. O seu presidente 

 

                        Homem são e sem reserva

                        Que pondes sangue de parte,

                        Que nos respeitos conserva,

                        Nutrido aos braços de Marte

                        Com o leite de Minerva

                                                                       (NICOLAU TOLENTINO, Sátiras –

 Passeio, pág. 42) 

 

quis demonstrar que a frouxidão é de menor valor pejorativo do que a fanfarronice. Que a tibieza é mais condenável que a gabarolice. E que a jactância é mais desejável do que a falta de fervor. (Tal e qual como qualquer empresário das casas de luta de galos determinaria acerca dos atletas contratados para o espetáculo… Evidenciando suas preferências, e tudo.) 

 

Talvez algumas pessoas saibam porquê e tenham bastas e plausíveis razões que o corroborem. Mas eu não tenho, nem percebo, nem vejo como justificá-lo, quer apenas para mim mesmo, como para os demais, que no capítulo da retórica sempre são menos mornos e pacíficos do que sou. Que nos domínios da oratória sempre pugnam por se mostrarem mais empenhados, encarniçados, do que eu, queria eu dizer. Que sou morno reservado adepto dos brandos costumes e sensaboria nas relações do quotidiano. Que o que quero é papas e descanso. E bons modos.

 

Portanto, não vi com bons olhos a falcatrua de apoucamento nem a manobra de olhagem (sem pisca-pisca) à direita pacóvia e retrógrada, da parte do sr. presidente da AR. Se o fizesse lá em casa, à sua mesa, onde supostamente é ele quem paga as contas, ainda seria, vá lá, com’ò outro, e se já não fosse muito bonito discriminar assim parte dos comensais, é certo, mas tê-lo feito num órgão de poder autenticado e com pergaminhos assentes na Constituição da República Portuguesa, onde quem paga todas as contas é o povo português, o orçamento de Estado e a EU, além de feio, é crime de lesa coletivo e subtração da igualdade de tratamento que assiste a quem usufrui de plena cidadania.

 

As pessoas podem (embora não o devam fazer) enxovalhar a torto e a direito quem é das suas famílias dentro dos condomínios familiares, e sem ser à vista de quem está fora delas nem lhes pertence. Não sendo um direito que lhes assiste é uma prática que comungam e herdaram via progenitores, que só não educou melhor só porque não sabia mais nem como fazê-lo. Agora, que o façam em público e em direto, perante um país (ou parte dele) que está interessado em saber qual é o estado da nação, já é, senão imperdoável, pelo menos de muito mau tom, e pior exemplo para arraia-miúda.  

 

O que é caso para dizer, que a língua portuguesa se está de férias, à semelhança da AR, fá-lo-á, sem dúvida, de nojo carregado, em virtude de alguns dos seus melhores e eleitos, a terem vilipendiado sem o mínimo decoro, fazendo-se passar por sonsos e sem reparar nos efeitos da sua incúria… Porque não nos apercebermos nós do significado das expressões e étimos que ouvimos usar e usamos frequentemente, é matar a língua mãe, sem rebuço nem remorso. Porque,

    

 

Os verbos carregam o luto da fala

A sombria pronúncia das mentes vis,

Cuja voz se eleva se à verdade cala

E a trata por rumores, truques e ardis.

 

Que é a indigente gabarolice numa aula,

A fanfarronice narcísica, os croquis

Da hipocrisia em desfile numa sala

Que para a esconder a si mesma se desdiz.

 

Todavia os verbos não têm culpa nenhuma

De quem até os usa para maltratar outrem,

E adjetivos, sendo maltratados também.   

 

Que as famílias não escolhem a espuma

Nem os insetos refugiados sob a caruma…

Nem o cruel veneno dos sujeitos que têm!

 

E isso é muito feio, desde que o verbo se tornou princípio, pelo menos, para não dizer outras coisas.

 

Joaquim Maria Castanho

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