Fado do Acaso e Necessidade

Quem afunila as margens não se pode queixar de as águas lhe correrem por fora.
As pessoas vivem, actualmente, tão pouco tempo num lugar que não chegam a ter tempo de gostar dos lugares em que vivem. E se alguma coisa ainda lhe "segura" o contacto, mais ou menos, com as terras em que nasceram, é a necrologia dos jornais regionais, que lhe vão dando conta, periodicamente, de quantos da sua geração já bateram as caçoletas. Por mim, a quem a magana da live está em princípio de vida, já morei em dez ruas de outros tantos bairros, sendo mais de metade em cidades diferentes e, pasme-se perante a ocorrência, sou dos mais sedentários e gordinhos da Geração do Popas (GP). A evoluir a evidência conforme o determinismo aconselha, é muito bem provável que a Geração Play Station (GPS), com seus derivados Erasmos e Bolonhinhas venham a acentuar o nomadismo para o "sou daqui durante quinze minutos", que é tempo que demora uma queca não deveras e propriamente empenhada. O mais, pelas vascas da identidade, vai ficar como registo em qualquer quarto alugado a que se segue esmerada barrela antes da entrada do novo hóspede.
Porém, confesso, eu ainda sou da Geração Bic (GB): fazíamos pouco mas durava muito mais tempo!
Portanto, se na devida hora saía obradura de preceito, e se se queria vê-la em letra de forma, havia que recorrer à imprensa ou às editoras (de vanguarda), que, por sinal, são hoje conceituadas máquinas de não prestar para nada. Não publicam nem editam palimpsesto de valimento, e quando o fazem ninguém lhes passa charuto. Tirando algum Prémio Nobel, ganho por merecimento literário e não por desmerecido tratamento em outras eras ou andanças, ao caso, raro ultimamente, o resto que vão depositando nos escaparates tem por única mais-valia a reciclagem em que culmina. Poupam-se com isso algumas árvores para arderem nos incêndios estivais, provando que o que lixo é em cinzas se transforma, tal como o seu obreiro que sendo biblicamente pó à terra volta.
Também tive a minha conta!
Nos finais do século passado, debrucei-me afincadamente ao estudo das possibilidades de vir a ser alguém na vida. Então, escrevi uns livrecos, coisa de rala sapiência mas aturado labor. Espremido não iria além de um grosso volume de poemas, duas novelas, um livro de contos, três romances e uma resma de crónicas. Só dava descanso à esferográfica para beber uns copos e namoriscar algumas garinas – e mesmo aí, servia-me muito dela. A mais-valia abichada por isso tudo, indica que podia ter ficado quieto que ganhava o mesmo: continuo solteiro e inédito. Todavia, as coisas mudaram e hoje dou graças ao infortúnio, pois sou dos raríssimos que pude ler obras que mais, ou quase, ninguém leu: as minhas.
Dessas, duas ou três, azedaram-me a temperança e puseram-me de trombas com a Utopia. 25-Às à parte, munido com as fotocópias exigidas, desbaratei o tempo enviando-as aos editores. A maior parte deles nem respondeu, e os que o fizeram, foram unânimes e rigorosos conforme as características da sociedade de massas do nacional é bom – mas é para os estrangeiros. E de notar, que as ilustrações desta crónica são versões digitalizadas dos documentos autênticos, que guardo religiosamente, para exibir aos descrentes mais circunspectos que vêem montagem em tudo...
Ora, é comum "ouvir-se" nos mass media que o índice português de analfabetismo é grande e que o Plano Nacional de Leitura deu com os burrinhos na lama. Livreiros e editores mudam de ramo mas continuam no muita parra e pouca uva habitual. As bibliotecas públicas proliferam mas os seus principais utilizadores são as moscas e os internets descapitalizados. E nessas, nem arrumadores os conduzem!
E onde está a crónica, pergunta-se.
Pois bem, cá vai ela: tanto fizeram em não fazer que aquilo que menos queriam acabou por acontecer. Já ninguém precisa de livros nem editores para ler bons textos, e muito menos para os publicar. Temos os blogues, temos a edição na hora que vale milhentas vezes mais que mil empresas e a minhoquice dos 10% autorais. Temos clubes de leitura, temos oficinas de escrita, temos jornais de parede e inúmeros boletins de informação cultural. Mas fomos nós que os fizemos, e os demais portugueses para quem o esquecimento dói como a perda de órgão ou membro do nosso corpo colectivo. Não se ganha nada, é certo, mas respira-se culturalmente, pois o ar também é de borla, e nem por isso é menos essencial à vida: a quem ele falte definitivamente fica derradeiramente morto. Por conseguinte, estamos pagos: tomem lá nada pelo outro tanto com que nos ajudaram a ser. Há blogues que têm mais visitantes num só dia, do que algumas editores têm de vendas num mês. Podia ter acontecido por acaso, mas a necessidade também não foi descurada com a invenção...
É o destino. O fado. Mas severo será o dia, em que no-lo cantem em mais popularucho toque, virando marcha. E sem choradinhos... Que quem tem o que merece, não deve nada a ninguém!

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