Cantata de Dido

Já no roxo ambiente branqueado,
As prenhes velas da troiana frota
Entre as vagas azuis do mar dourado
Sobre as asas dos ventos se escondiam.
A misérrima Dido
Pelos paços reais vaga ululando (1)
C’os turvos olhos inda em vão procura
O fugitivo Eneas.
Só ermas as ruas, só desertas praças
A recente Cartago lhe apresenta.
Com medonho fragor, na praia nua,
Fremem de noite as solitárias ondas;
E nas douradas grimpas (2)
Das cúpulas soberbas
Piam noturnas, agoureiras aves.
Do marmóreo sepulcro,
Atónita imagina
Que mil vezes ouviu as frias cinzas
Do defunto Siqueu, com débeis vozes,
Suspirando chamar: -- Elisa! Elisa! (3)
D’Orco (4) aos tremendos numens
Sacrifícios prepara;
Mas viu, esmorecida,
Em torno dos turícremos (5) altares
Negra escuma ferver nas ricas taças,
E o derramado vinho
Em pélagos de sangue converter-se.
Frenética delira,
Pálido o rosto lindo,
A madeixa subtil desentrançada;
Já com trémulo pé entra sem tino
No ditoso aposento,
Onde do infido amante
Ouviu, enternecida,
Magoados suspiros, brandas queixas.
Ali cruéis Parcas lhe mostraram
As ilíacas roupas que, pendentes
Do tálamo dourado, descobriam (6)
O lustro pavês, a teucra (7) espada.
Com a convulsa mão, súbito, arranca
A lâmina fulgente da bainha,
E sobre o duro ferro penetrante
Arroja tenro, cristalino peito;
E em borbotões de espuma murmurando,
O quente sangue da ferida salta:
De roxas espanadas rociadas,
Tremem (8) da sala as dóricas colunas.
Três vezes tenta erguer-se,
Três vezes desmaiada, sobre o leito
O corpo revolvendo, ao céu levanta
Os macerados olhos.
Depois, atenta (9) na lustrosa malha
Do prófugo dardânico (10),
Estas últimas vozes repetia,
E os lastimosos, lúgubres acentos,
Pelas áureas abóbadas voando,
Longo tempo depois gemer se ouviam:

«Doces despojos
Tão bem logrados
Dos olhos meus,
Enquanto os fados,
Enquanto Deus
O consentirem,
Da triste Dido
A alma aceitai,
Destes cuidados
Me libertai.

«Dido infelice (11)
Assaz viveu;
Da alta Cartago
O muro ergueu;
Agora, nua,
Já da Caronte (12),
A sombra sua
Na barca feia,
De Flegetonte
A negra veia
Surcando (13) vai.

Pedro António Correia Garção, in Obras Poéticas, pp 259-261; Lisboa: 1778.




(1) Ululando, soberba expressão que traduz admiravelmente o que a paixão de Dido tem de frenético e de selvagem.
(2) Também Virgílio fala no canto agoureiro do bufo, mas Garção acrescenta-lhe uma pincelada de cor com aquelas «douradas grimpas».
(3) Elisa era o primeiro nome da rainha. Dido foi o cognome que lhe puseram depois da fundação de Cartago. Significava «errante», alusão aos trabalhos que passou, ao vir de Tiro para Cartago.
(4) Orco era o deus dos infernos.
(5) Turícremos: onde se queimava o incenso quando se depunha as oferendas nos altares.
(6) Descobriam – faziam realçar.
(7) Teucra – troiana.
(8) Tremem: o sentido é duvidoso – ou este tremer representa qualquer sinal misterioso da di-vindade, ou alude aos gritos que se levantaram no palácio e por toda a cidade, mal se soube do suicídio de Dido. Virgílio insiste nesse clamor desesperado: It clamor ad alta / atria – «o clamor sobe até aos altos pórticos».
(9) Atenta – com os olhos pregados.
(10) Dardânico – troiano.
(11) Infelice – infeliz, termo literário muito corrente em toda a época clássica.
(12) Caronte – o barqueiro do Inferno que conduzia as sombras dos mortos.
(13) Surcando – sulcando, na sua forma clássica.

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