Álvaro de Campos: apenas mais um heterónimo de Fernando Pessoa?



Álvaro de Campos: apenas mais um heterónimo de Fernando Pessoa?

"Os poetas não inventam os poemas
O poema está algures lá atrás
Há muito tempo que lá está
O poeta não fez senão descobri-lo."

Jan Skacel

Introdução

A poesia de Álvaro de Campos, enquanto elemento cénico-dramático da família pessoana, deve ser encarada paradigmaticamente como um produto de quatro vectores importantes, e a saber: a) no sentido estético-filosófico – o sensacionismo; b) enquanto espelho social do seu tempo – ou retrato da sociedade de produção; c) na perspectiva do "eu" e sua natureza confessional – ou reflexo da formação inglesa; e d) pela postura imagética na tradição oceânica portuguesa, seus motivos e argumentos poéticos. Não só porque Álvaro de Campos foi aquele heterónimo mais próximo do alter ego de Pessoa, como também foi, sem dúvida, o seu principal companheiro (imaginário) e confidente, o que o tornou no mais original, atrevido e mistificar de todos eles. Há até quem pretenda que Fernando Pessoa ele-mesmo mais não teria sido que o pseudónimo de Álvaro de Campos... Daí a grande dificuldade de analisarmos um sem nos conseguirmos abstrair do outro!
"Álvaro de Campos, embora tenha ido para Lisboa muito novo, nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890", afiança Fernando Pessoa numa carta a Adolfo Casais Monteiro, incluída na Presença, número 48. E adianta: "Como se sabe, é engenheiro naval (formado em Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa, em inactividade. (...) É alto (1,75 m de altura, mais dois centímetros do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada, entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo porém liso, normalmente apartado ao lado, e usa monóculo. Teve uma educação vulgar de liceu; mas depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez uma viagem ao Oriente, de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre." E além de discípulo de Caeiro, era também drogado, maricas e iniciado da maçonaria.
Por outras palavras: a biografia de Álvaro de Campos, à excepção da camoniana viagem ao Oriente, que Pessoa nunca fez, confunde-se simetricamente com a deste último, se invertermos o Globo e atribuirmos à Escócia a localização correspondente à colónia inglesa, a província do Cabo da Boa Esperança, ou, a Tavira, a igualmente correspondente beira-mar lisboeta. Até o ano da morte de um, 1935, é o mesmo que da morte do outro, pois que a 21 de Outubro desse ano, ainda Álvaro de Campos assinava poesia, o que é a mais evidente das provas para a existência de um poeta, independentemente de qual seja ele a que queiramos referir-nos. Aliás, também Álvaro de Campos foi prosador e crítico literário: Notas ao Acaso, in Sudoeste; Notas Para a Recordação do Meu Mestre Caeiro, no número 30 da Presença; O Que é a Metafísica e Apontamentos Para Uma Estética Não Aristotélica, na revista Athena (1924); e, ainda, os manifestos Aviso Por Causa da Moral e Ultimatum. Mesmo o sensacionismo de "Álvaro de Campos (AC) era um vinco fundo cavado na alma, a expressão trágica de uma consciência que, de cabriola em cabriola, fizera chegar Fernando Pessoa àquele estado abissal, sem fé, sem esperança, sem caridade, estirado ao comprido na valeta que era a sua cama, lá nesse quarto desalinhado da Rua Coelho da Rocha, onde a maior parte das vezes, completamente só, principiava a sentir a intoxicação física que as permanentes bebedeiras lhe iam provocando na constituição débil, ainda mais debilitada por anos e anos de mau passadio, de deambulação boémia de tasco em tasco, comendo conforme o dinheiro que havia de momento e dormindo onde o acaso lhe proporcionava nova cama", como subscreveu João Gaspar Simões, que foi tanto um conhecedor do homem, quanto da sua vida e obra.
Neste trabalho vai-se, por conseguinte, estabelecer que há uma linha de criação estética que, não só foge aos cânones de beleza comummente aceites como épicos e líricos, o que os traslada em "euépicos", mas que também executa a linguagem enquanto proposta de ligação entre correntes de pensamento, ou teórico-literárias, anteriormente apenas concebidas em separado: o romantismo, o realismo, o simbolismo esotérico e introspectivo, e o sentimento épico nacional. Porque a subjectividade do eu poético é tão circunstancial quanto os poetas, quer em seu nome, quer como expressão de alguém em si, quando estão limitados e influenciados pelo espaço-quando que os enquadra e emoldura. Incluindo mesmo, e principalmente, os maiores, que se anteciparam no tempo, no modo, no verbo e no acto de representar a sua imagética. E originalidade.

a) O SENSACIONISMO

Este primeiro item é o cerne fundamental de toda a temática de AC. É da experimentação subjectiva modificada e reflectida acerca dos mais variados estímulos sensitivos que parte toda a sua poesia. O "eu" sensacionista é um ego experimental. O sensacionismo é baseado na teoria segundo a qual a única realidade da vida é a sensação; e que, grosso modo, a única realidade da arte é a consciência dessa sensação – "porque a melhor maneira de viajar é sentir".
Os mais efectivos, factuais e prementes exemplos disso são: E o Esplendor dos Mapas, Casa Branca Nau Preta, Insónia, Aniversário, Trapo, Bicarbonato de Soda, Dai-me Rosas e Lírios, Lembro-me do Teu Olhar, Vilegiatura, Até Que Enfim ..., Perfeitamente, Símbolos? Eu Estou farto de Símbolos, O Que Há Em Mim é Sobretudo Cansaço, Esta Velha Angústia, Hoje, Se Calhar, Está o Quê?, Mestre, Meu Mestre Querido!, Na Noite Terrível, No Lugar dos Palácios Desertos, Não Sei. Falta-me um Sentido, Afinal, a Melhor Maneira de Viajar é Sentir e Passagem das Horas.

Apontamento

A minha alma parti-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia de loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre o capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçaram-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que eu era um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si-mesmos, não conscientes eles.


Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem porque ficou ali.


(In Presença, nº 20 – Abril/Maio, de 1929)


A analogia "a minha alma partiu-se como um vaso vazio", com que começa este poema, em que a imagem de movimento reflexivo "partiu-se" coisifica a alma de AC, assemelhando-a metaforicamente a um vaso vazio, é gradativamente intensificada, em crescendo, pela anáfora
Caiu pelas escadas
Caiu das mãos
Caiu

com o objectivo de nos dar um esboço pictórico, um croquis, um apontamento de rascunho para a tela fundamental, uma impressão sensitiva avivada de aguarela nebulosa – e não é o impressionismo um sensacionismo?... –, imaginada até se tonar mais realidade, ou tão real como a realidade sentida, forte, violenta e intransigente, em que o resultado final, naquilo que é uma multiplicação por descaracterização e/ou despersonalização, é um produto superior à simples e directa soma dos cacos, em demonstração do que é, sumariamente, o valor acrescentado do sensacionismo: o vaso, ao partir-se, transforma-se em mais pedaços do que havia de loiça em si, demonstrando que o resultado da soma é superior à soma das partes. Ou seja, pelo sensacionismo, efectua-se o milagre da multiplicação (à semelhança com a bíblica multiplicação dos pães, em que quanto mais o pão se parte e reparte, mais ele cresce) do ser, em que um homem é tanto mais humano, quantos mais homens conseguir sentir ser em si. O que, aliás, após as interrogações "Asneira? Impossível?", que são arredadas pelo conhecimento apenas concebível ao da dúvida socrática, num fingimento de ausência do intelecto e razão, que é o sentimento – "Sei lá!" –, fica confirmado pelo enunciado afirmativo de "tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu", onde se explica que ser-se e sentir-se ser um único ser, não é uma libertação extensiva, mas sim uma limitação e restrição feita ao eu, enquanto capacidade e potência de sentir, recordar, imaginar, iludir e existir, ou palco de representação (simbólica ou não) da vida. O verso é livre, sem rima, sem ritmo nem métrica definitiva, alternando versos de doze, quinze e dezoito sílabas com redondilhas menores, atenuando o balanço sem traços aliterantes demasiado vincados, excepto quando necessários para evidenciarem os mecanismos dentados dos sistemas maquinais, e no objectivo de recriar a sensação de rasgo que antecede o eclodir, o Big Bang inicial, a explosão primeira da formação do verbo estelar, que é, indubitavelmente, a do fonema que surge antes do noema, e antecipa o sentido da palavra. Ser é uma subida pelas mão de alguém, seja quem for esse alguém, podendo até ser uma criada doméstica, uma serviçal ao dispor da sensação que a requer. É aspirar a ser Deus, degrau a degrau, sensação a sensação, de analogia em analogia (A minha alma partiu-se como um vaso vazio. // Fiz barulho na queda como um vaso que se partia. // Etc., etc.) descendo cada vez mais fundo por uma escada, por uma escada excessivamente abaixo, íngreme, tornando por isso mais tolerante, mais múltiplo e sincero, como leitores (deuses não se zanguem com o poeta / com a criada, a vossa criada...) nascidos do vazio, olhando os cacos absurdamente, ainda que conscientes deles, tirando caco sobre caco, ilusão sobre ilusão, desfolhando o ser, multiplicando-se alastrando na grande escadaria que antecede o temp(l)o, por cada caco uma estrela, por cada estrela outro ser, cada uma/a mais diferente de cada qual, mas por isso mesmo mais igual àquele caco que brilha, virado do exterior lustroso, entre astros seus iguais, porque também mutáveis, ou outros eus demasiado diferentes de si, porquanto no mundo dos mundos sensitivos os extremos tocam-se, irremediavelmente: uma queimadura tanto pode ser provocado pelo excesso de exposição ao calor, como pelo excesso de gelos e frios, enquanto caco, que quanto mais astro mais é caco que brilha, na desorganização caótica dos sentidos.


No segundo andamento de Apontamento, que começa com o anfiguri (Não se zanguem com ela. / São tolerantes com ela. / O que eu era um vaso vazio?), composto por dois anacolutos (Não se zanguem / São tolerantes), cuja epístrofe "com ela" / "com ela", é reforçada pela não concordância dos tempos e verbos zangar e ser, passando da segunda para a terceira pessoa do plural e com tempos diferentes, sem nada que o peça ou faça supor; e o segundo, "o que eu era um vaso vazio?", pela falta – elipse – do "senão" ou de uma interrogação, que parece estar subentendida, "o que eu era? Um vaso vazio?", em que o princípio da frase nada tem a ver com o final, entra-se numa derradeira derrapagem do ser para a sensação de ser, explícita na iteração da palavra conscientes, espalhada no dueto seguinte: "Olham os cacos absurdamente conscientes, / Mas conscientes de si-mesmos, não conscientes deles." Então, ser-se é um esquecer de ser. Olham e sorriem tolerantes como os deuses. Mas para onde olham senão para si próprios?... – Afinal, cacos, nacos, partes, conscientes de si-mesmos... Porque os deuses são cacos/lentes que se olham fora de si, que se imaginam especialmente, ainda quando desconhecem porque ficam ali.
Ter uma sensação não é como ter uma experiência. Mas sim um como imaginá-la tão especialmente que se sente quase o mesmo do que se tivéssemos tido, tipo ver claramente visto que se não viu realmente. "Fingir é conhecer-se". É experimentar no laboratório da poesia um eu, que não sendo nosso é deveras nosso, mas que manipulamos como se o não fosse, e através do qual podemos sentir o que fingimos sentir.

b) O ESPELHO SOCIAL – SOCIEDADE DE PRODUÇÃO

Se, como poderia ser a intenção do autor, Álvaro de Campos teria de ser um poeta "moderno e cosmopolita", então não lhe restava outro caminho senão o de retratar a imagética de uma sociedade que, por não existir concretamente em Portugal nos princípios do século, teve o seu ponto de referência nos Estado Unidos e Inglaterra; nela nascesse, dela fizesse parte integrante, justificasse a aptidão, por exemplo com um diploma tirado em Glasgow, representasse o seu futuro como o progresso industrial, enfim, fosse a sociedade de produção onde o engenheiro cumpriria o seu mister. E uma cosmologia mecanicista. Ora, para esse objectivo concorreram, argumentativamente, sem dúvida, pemas como
Dactilografia, O Binómio de Newton, Cruzou Comigo, Veio Ter Comigo, Dobrada à Moda do Porto, Não: devagar, Às Vezes Tenho Ideias Felizes, Começa a Haver Meia-Noite e a Haver Sossego, Ode Triunfal, Tabacaria, Apostila, Adiamento, Nuvens, Reticências, Ode Marcial, Ao Volante do Chevrolet Pela Estrada e Sintra, Ali Não Havia Electricidade, Acordar na Cidade de Lisboa, O ter Deveras, Que Prolixa Coisa, Vai pelo Cais Fora um Bulício, Cruz na Porta da Tabacaria, Faróis Distantes e Nas Praças Vindouras.




Ao Volante do Chevrolet Pela Estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixado ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, nem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...

Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo!
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim, eu próprio sou!

À esquerda o casebre – sim o casebre – à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela ma olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?
Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite , ao luar, ao volante
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de mim.

"Os cavalos da cavalaria é que formam a cavalaria. Sem montadas, os cavaleiros seriam peões." – É Pessoa/Campos quem o afirma no nº 5 da Presença, de 4 de Junho de 1927. A sociedade de produção sem as máquinas da revolução industrial, ou sem os carros, seria um progresso apeado, que o mesmo é dizer, um progredir de coisa nenhuma, para outra igual a si. Mas o automóvel encerra dentro dele outra particularidade: para ser guiado necessita de um volante, um comando de seguir viagem, cujo maquinismo, instrumento, o volante, é o símbolo sensacionista por excelência. Sem ele a sensação seria estéril, fixa, para e intoxicante, inconsequente, descontrolada, desequilibrada e descabida.
No verso livre e discursivo, repleto de cesuras marcadas e pontuadas pela artificialidade da vírgula, a meio ou no fim de cada um, de métrica longa, como batida de êmbolo, na constância rítmica ou por tónicas forçosamente coladas, precisamente com a melodia alongada, esticada, a harmonia fónica característica da frase cumulativa natural da frase grande, AC recorre a uma panóplia de figuras de retórica e sintaxe, para nos esgarrar a visão. No entanto, pela sua insistência, dois recursos estilísticos me parecem mais propositados que quaisquer outros: a anáfora e a gradação. Porque poderá ter sido?
Vejamos: porque estrada de Sintra é apenas um caminho, pelo qual, com o auxílio do volante (o sensacionismo, a corrente), cada um pode condzir o progresso social e industrial, mecânico e económico, a seu bel prazer, em direcção à descoberta de si próprio, enquanto homem cosmopolita na sua fuga para a vida, para a frente, com a pobreza à esquerda e o latifúndio à direita, mas iludido e material, como o é, indubitavelmente, o homem típico da sociedade de produção.
Ao Volante do Chevrolet é uma sinfonia épica, à semelhança das de Wagner, Beethoven, Mozart ou Ravel, em que dois instrumentos, quais solistas – talvez um violoncelo e um piano, uma percussão e um trinado, uma repetição e uma elipse – a anáfora e a gradação, dialogam, despicam, se interrogam , interpelam e combatem mutuamente, até à apoteose final, ao clímax, à catarse, em que se entregam e unificam definitivamente na sensação que delas retemos. Assim:
(Anáfora) (Gradação circular)
Na estrada de Sintra volante
Na estrada de Sintra imaginação
Na estrada de Sintra cada vez mais perto de Sintra
Na estrada de Sinta cada vez mais perto de mim
para a fusão perfeita nos dois últimos versos, onde a anáfora e a gradação atingem o êxtase culminante.
Na estrada de Sintra cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada e Sintra cada vez mais perto de mim,
afinal, uma progressão nominal típica de uma sociedade que apela mais aos fins justificando neles os meios. E isto é o resultado de uma progressão valorativa, épica, tão sinfónica e musical, como, por exemplo, O Bolero, de Ravel. Daí que logo nos primeiros dois versos, acordes, como prelúdio e anúncio do que se irá seguir, em aviso à navegação, sejam precisamente a anáfora de
Ao
Ao
e a gradação circular estrada de Sintra, luar, sonho e estrada de Sintra, a pedra-de-toque com que nos afiançamos da natureza do poema. Mas não só: em todas as demais estrofes – na segunda: (anáfora)
Que sigo
Que sigo
Que sigo

e
Sempre
Sempre

(gradação crescente) estrada, sonho, mundo ou (gradação decrescente) propósito, sem nexo, nem consequência e (gradação crescente) Sintra, sonho, vida; na terceira: (anáfora)
Quantas coisas
Quantas coisas
Quanto

e (gradação circular) sorrio, pensar, virar, sigo, guio, sou; na quarta: (anáfora)
Que só
Que só

e (gradação compulsiva, com epístrofe) estrada, automóvel, liberdade, fechado, fechado; na quinta: (anáfora)
O meu coração
O meu coração
O meu coração

e (gradação circular) luar, tristeza, campos, noite ou (gradação decrescente) terrível, súbito, violento, inconcebível, e (gradação crescente) casebre, coração vazio, coração insatisfeito, coração mais humano –, como se dizia, à excepção da quarta, que é uma espécie de desenvolvimento romântico e garrettiano do tema, o processo se repete, como fórmula de preparação para cozinhar em lume brando o epílogo "final", enquanto prova demonstrada de como a sociedade, os outros e as coisas do progresso, só serão válidas e úteis desde que forneçam um veículo e caminho que facilitem ao homem do seu tempo a tarefa, essencial diremos, e se buscar, para a descoberta de si mesmo, enfim, quadro de fundo e leitmotiv que assiste a todo e qualquer sensacionismo, ou até a todo e qualquer "ismo".
Outro pormenor a realçar, enquanto crítica do social, é que, ironicamente, o Chevrolet conduzido é emprestado. Porquê? Porque o modelo de sociedade descrito e subscrito por AC também foi emprestado, não é português, é anglo-americano, visto que cá a revolução industrial nunca chegou a acontecer, em termos determinativos e concludentes, e aquilo que se dela se viu, chegou com pelo menos 50 anos de atraso, aliás, sociedade essa, a que apenas Fernando Pessoa teve aceso por empréstimo de outra escrita, o jornalismo, ou os ecos jornalísticos dela que a Portugal aportavam através dos jornais e revistas inglesas que ia lendo. Ou seja, o engenheiro é formado no exterior, mas o carro que conduz também é emprestado, o que, em certa medida, ainda hoje continua a ser verdade: a indústria já vai na sua quinta revolução nas as máquinas de escrever actuais, desde as esferográficas bic ao computadores que usamos, são de fabrico estrangeiro, ainda cá não foram inventados, continuando nós a servirmo-nos deles por empréstimo, ou... importação. Pelo que, neste capítulo da sociedade e progresso, a actualidade de AC se mantém intocável e inalterada!
(Ilustração: foto de quadro de Júlio Pomar)


b) NA PERSPECTIVA DO EU, OU CONFESSIONAIS

A vertente confessional, ou da formação superior e educação escocesa do engenheiro, já que os estudos anteriores foram os liceais, como os de tanta outra gente, AC demonstra-nos, e demonstra-se, a irreverência nas tendências in da toxicomania, homossexuais, pedófilas e maçónicas rosacrucianas, tudo coisas ousadas e perversas para a altura, que, além de estarem vedadas e não poderem ser incluídas nos currículos liceais da nacionalidade nacionalista fechada, também nunca poderiam ser admitidas pela moral da época, a um homem real, mas muito bem aceites numa personagem abstracta; isto sem falarmos, no psicadelismo que se lhe seguiu, nem os ecos deformativos badalados acerca da Inglaterra, a propósito da formação e educação dos técnicos navais "literários" de então, onde causavam enormes incêndios e tempestades de ânimo a polémica em torno de Oscar Wilde, que foi "excomungado" da sociedade londrina.
E podemos incluir nessa linha os poemas Saudação a Walt Whitman, Soneto já Antigo, Lisbon Revisited I e II, Marinett Académico, Todas as Cartas de Amor São, Eu, eu mesmo, Há mais de meia hora, Pecado Original, Magnificat, "The Times", Gazetilha, De la Musique, Psiquetipia (ou Psicopatia), Poema em Linha Recta, Barrow-on-Furnes, Cleary Nn-Campos e Degogn.

Soneto já Antigo


Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás-de
Dizer aos meus amigos aí de Londres,
Embora não sintas, que tu escondes
A grande dor da minha morte. Irás de

Londres p'ra Iorque, onde nasceste (dizes...
Que eu nada que tu digas acredito),
Contar àquele pobre rapazito
Que me deu tantas horas felizes

Embora não o saibas, que morri...
Mesmo ele, a quem tanto julguei amar,
Nada se importará... Depois vai dar

A notícia a essa estranha Cecily,
Que acreditava que eu seria grande...
Raios partem a vida e que m lá ande!



Ora, Soneto já Antigo, enquanto poema, só é soneto na distribuição estrófica, pelos seus quatro conjuntos de versos, cujos 14 são repartidos por duas quadras e dois tercetos. De rima diversificada (abba / cddc / eff / egg) em cada estrofe, a sua paralelística disfarçada (bb / dd / ff / gg) e pela rima interpolada das quadras com emparelhamento dos tercetos, denota desde logo a intenção de AC em fazer mais uma canção de amigo invertida, em medida de (quase) alexandrinos, utilizando a licença poética que o versilibrismo da época lhe concedia, do que um soneto clássico petrarquiano. Neste cantar de amigo por soneto, soneto em torno de uma canção de amigo ou canção de amigo em forma de soneto, conforme se queira e prefira, AC confessa à sua confidente (invocação do primeiro verso: "Olha, Daisy") a sua homossexualidade, matando imaginariamente aquela outra "máscara", e personalidade, pela qual, entre ainda alguns amigos de Londres, era conhecido, e em que acreditavam que ela fosse a sua verdadeira persona, ou realidade personalista. Literalmente falando... Os encavalgamentos do verso 1 para o verso 2, do 4 para o 5, do 7 para o 8, do 8 para o 9 e do 11 para o 12, aliados aos àpartes intercalados por apóstrofe do verso 3 ("embora não o sintas"), do verso 6 ("que eu nada que tu digas acredito"), do verso 9 ("embora não o saibas") – 369, numeral composto por múltiplos de três – e do verso 12 ("que acreditava que eu era grande"), assim como a aliteração em r, d e m, constatada em todo o poema, confluem propositadamente para a formação de um anticlímax esotérico compulsivo e congestionado, naquilo que parece ser um anacoluto final, por se assemelhar extraordinariamente à confabulação ou algo desenquadrado do anteriormente dito ("raios partam a vida e quem lá ande!"), característico dos místicos iniciados nos rituais das seitas do secreto, então, proibido, essencialmente britânicos, cuja literatura e teatro são um espelho, além de actividades não permitidas na época às mulheres, em que as personagens femininas eram sempre (encarnadas) representadas por travestis, seres em que se não deve acreditar, pois nunca são o que parecem, mas invariavelmente outra coisa qualquer ("embora não o sintas", "tu escondes", "nada que tu digas acredito", "embora não o saibas, "julguei amar" e "estranha Cecily"), tal como Fernando Pessoa estará, ou esteve, travestido de AC para os seus amigos, actores e máscaras sociais, do teatro londrino, ou fora dele.
Neste poema Daisy, não parece ser uma mulher amiga e particular e específica: é a calma, a tranquilidade querida e adorada, que as amizades londrinas lhe proporcionaram, porquanto Daisy é uma espécie de acrónimo de dear easy. E está, qual provocação propositada, no princípio do poema, não só como porta de entrada, por ser uma invocação, mas também para demonstrar que é uma espécie de chave de entrada para a ambivalência do texto, que no rascunho é dedicado à casa do teatro (daisy mason) ambulante (irás de Londres a York), como eram quase todas as grandes companhias teatrais e faziam na altura. Porque acima de tudo é o teatro, o drama de ser muitos, as máscaras, as personagens, as roupagens de ser, que escondem – ou revelam – a dor da sua morte, dado que ser muitos é ser ninguém (em particular), como ser tudo é ser nada, e não se ninguém é estar morto, tudo aquilo que concorre para que o engenheiro AC, pela sua formação académica inglesa, seja mais marinheiro que engenheiro, mais poeta que marinheiro, mais personagem que poeta, mais actor que personagem, mais máscara que actor, mais masculino que máscara e mais feminino que actor. Se não, então porque é que Cecilia seria estranha?... Porque, provavelmente, não era Cecily nenhuma: era um homem, artista de teatro, um actor travestido de mulher. Porque ele, Álvaro de Campos, como personagem de um drama que era, apenas conseguia uma tranquilidade plena no seu próprio habitat natural, que eram os camarins, o palco, a boca de cena sensacionista, (n)a representação dos sentires, seus e alheios, e saber e não saber, que caracteriza a essência do teatro.
Portanto, reiterando, Soneto já Antigo, não é um soneto – é um travesti de estilo, uma canção de amigo disfarçada de soneto, ou vice-versa.

b) A TRADIÇÃO OCEÂNICA PORTUGUESA

Mas também porque o ambiente natural de um marinheiro erudito (engenheiro naval e viajante) nascido à beira do Mediterrâneo, crescido ao lado do Atlântico e de frente para o estuário do Tejo, só pode ser (homem) do mar e ter como consequência directa o cumprir do fado que é ser português, a tradição oceânica portuguesa assume-se como outro dos parâmetros basilares da estrutura molecular e poética de AC, de enorme constância, concisão semântica e deverasmente contribuiva, ou imprescindível, no quadro geral dos conteúdos. E essa unidade significativa é inegável em poemas tais como Ode Marítima, Opiário, Dois Excertos de Odes, Grandes São os Desertos, Acaso, La Bas Je Ne Sais Ou, Realidade, Ah, um Soneto, e Escrito Num Livro Abandonado em Viajem.

Acaso

No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio se calhar.
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!

Ia dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito duma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Porque todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo o que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional!
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal...

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isso é o mesmo também afinal.

Tudo aquilo que restou da tradição, além dos mulatos e mulatas, da qual os portugueses se (re)formaram após Os Descobrimentos, foram Os Lusíadas e pouco mais: "Ao menos escrevem-se versos", como disse e redisse AC, no Acaso de toda a sua ingenuidade e desorganização de marinheiro de engenho e arte, que em cada porto de cada nova cidade a que aportou, nova Ilha dos Amores encontrou, com outras raparigas, novamente por acaso, mas loiras.
E o Acaso é conseguido na repetição (repetição de palavras ou frases a intervalos irregulares num poema), e da também diversidade nonémica e fónica, numa manifestação musical de caótico desempenho, mas que, como se fossem sons de acaso numa natureza feminina e selvagem, virgem e por descobrir, como antigamente o haviam sido a África Austral ou o Brasil, de 1500, agora já colonizados por também outras raparigas loiras, como loira é a desta vez, que nem as holandesas e alemãs do brasil, ou as inglesas e holandesas de África, como se fossem – dizia-se –, ecos de uma vontade ancestral, desvitalizada, adormecida, descuidada, ou recordações, palimpsestos, reminiscências do génio, se calhar!, maravilha das celebridades, e do espírito oceânico ou tradicional dos navegantes portugueses. Que só por acaso são portugueses, pois bem podiam ser fenícios ou gregos, se A Odisseia de que se fala fosse outra. Digamos que, neste poema, por acaso de acaso em acaso se relaciona, tudo é despropositado – mas de propósito –, ao sabor da maré, disperso umas vezes, conciso, junto e repetido outras, numa tal dispersão que até as repetições (de retomar o ponto) são caóticas, não (com)sequentes e desordenadas.
Porquê – pergunta-se. Por três razões, e a clarificar.

1) Pela anamnese, ou recordação de um facto passado para com ele dar mais ênfase ao discurso poético e reforçar a imagética do presente, estabelecida nos primeiros seis versos, indo culminar na irónica exclamação do "que grande vantagem o recordar intransigente!", ou litote, espécie de meiose de ruminação passadista ou saudosa do tempo dos Gamas e Cabrais da portugalidade, numa lamentação consecutiva e resulta no que sempre deve resultar: quando se olha muito para o passado, perde-se ou perdemo-lo de vista, e, irremediavelmente, perde-se também a oportunidade de ver o presente – "agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga / e tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta", como salienta AC. Pois quando o acaso da rua dá no acaso da rapariga loira, que é a imagem viva de outra rua por acaso, é o que acontece. E é muito épico!...

2) Por via da sinédoque, em todos os plurais são o mesmo singular: "Porque todas as recordações são a mesma recordação" – ou, porque todas as sensações são sempre a mesma sensação; porque todos os acasos são sempre o mesmo acaso; porque todos os descobrimentos são sempre o mesmo descobrimento: o do homem, enquanto busca e encontro de si mesmo, do seu destino e fado. E o destino, no fado dos portugueses, é aportar em cada porto de cada igualmente outra cidade, onde haja outra rua e o acaso de outra loira, que até pode ser morena. Os épicos sempre na diversidade múltipla da mulher a infinita unidade do (fértil) ser feminino.
3) E em consequência directa da última epístrofe (dupla): "é a mesma afinal... / Tudo é o mesmo afinal... // Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isso é o mesmo também afinal". Porque fazer versos vale tanto como fazer gestos (até obsceno, porventura) e caretas ao destino, porquanto será o mesmo afinal, o seu resultado comunicativo, e em cada um de nós há, quiçá, adormecido talvez, escondido, recalcado e no desemprego, aquele mesmo que não é o mesmo nem o outro, porque é de hoje e não de 1500, mas mesmo assim e ainda o mesmo marinheiro que partiu para a Índia (ou Sintra) e deu novos mundos ao mundo, a bordo de uma frágil nau ou num Chevrolet, que tanto fez, faz e fará. Deu novas cidades, novas ruas, com novas loiras. Ou não-loiras. As mesmas da Ilha dos Amores – afinal, outras ilhas mas igualmente visões no espelhos desta ilha, ou imagem dela, invertida no espelho de água da nossa capitania, emolduradas sob os caixilhos (apertados) por uma Castela adversa e um (oceano) mar de temores e mostrengos, Admastores e Atlândidas.

Conclusão

Fernando Pessoa e, por arrasto, Álvaro de Campos, não só foram poetas maiores da língua portuguesa como tentaram clarificar a penumbra e nevoeiro que ofuscava a portugalidade. Portanto, não faziam versinhos ou composições poéticas sobre um ou vários temas que sustentavam a tenebrosa alma lusitana: faziam poesia autêntica e profunda, escavavam "arqueologicamente" os nossos pensamento e cultura, como sucede, sem dúvida alguma, nos demais géneros literários de que os autores se "socorram" para revelar o seu canto épico, conforme as características da sua natureza, mais ou menos universais, mais ou menos abrangentes, extensão aliás comum a muitos outros da nossa praça, e segundo o espaço-quando que os circunscreveu, ou circunscreve. Daí que a divisão temática – e um tema é apenas o reflexo de uma interrogação existencial... – não tenha tido a pretensão infantil de apenas dividir (o indivisível) a poesia de AC por itens redactoriais (vaquinha, burrinho, cidade, campo, sociedade, saudade, blá, blá...), mas abarcar parâmetros de intertextualidade e entretextualidade subalternos que funcionam, ou poderiam funcionar para qualquer outro "sincero" poeta do fingimento, como motivação da produção estética e/ou criadora, e também para Fernando Pessoa, que nunca deixou de ser ele mesmo, mesmo quando foi outro (nos seus heterónimos): enfim, no seu sensacionismo, enquanto membro da sociedade, o seu relacionamento com o seu "eu" e o enquadramento cultural que História de Portugal lhe exigiu ou propiciou. Primeiro, porque o que estava em causa não era a capacidade de redacção do poeta, nem sua a filosofia ou identidade, poios elas são por demais e sobejamente (re)conhecidas, não só nacional como internacionalmente, mas sobretudo os pontos fulcrais e evidentes da sua imagética; e segundo, porque o que importava não descaracterizar pela análise interpretativa, nem valorativa, a poesia de AC, mas sim cuidar de tentar compreendê-la enquanto elemento vivo e duradouro do espectro cultural e literário português. Até porque, nem Fernando Pessoa, nem Álvaro de Campos, carecem já de afectações intelectuais que os promovam, elogiem, nem maneirismos críticos que os livrem da pestilência emocional do politicamente correcto como precisaram enquanto vivos, ou qualquer outro tipo de provas e diplomas, experimentações e enredos. Que nisso, ou disso, são a língua e a literatura portuguesa quem precisa dos seus exemplos.
Por outro lado, seria impossível sintetizar a obra de AC numa moldura de apenas quadro cantos: porque ela diversa e dispersa, e melhor do que eu o sabem quem, por engano estratégico, a tentou contabilizar ou classificar tematicamente: um brasileiro já entrou nessa via e, à altura em que foi notícia, ia em 186 temas distintos, como esteticamente representáveis e possíveis. Por isso, os quatro itens enunciados englobam somente poemas cujo núcleo duro é explícito do grupo que evidenciam, talvez de forma arbitraria, mas sem que tal, todavia, vá interferir ou determinar uma leitura mais aberta, porque esta nunca pretendeu ser exemplar. Quando se apresentam tais ou tais poemas sensacionistas, por exemplo, não se esteve a irradiar os restantes da esfera sensacionalista, coisa impensável, dado que o "ismo" da sensação se estende a todos eles e todas as temáticas, com maior ou menor acutilância, mas sim a pronunciar mais uma sentença do tipo "este poema apresenta uma noção particular, peculiar e bastante relevante deste género de sensionismo, além dos restantes não a excluírem totalmente". O que é igualmente válido quanto à sociedade, perspectiva do eu ou tradição oceânica portuguesa.
Quanto aos resultados da operação "desmembratória", creio terem sido substancialmente positivos, visto me terem obrigado a reler, mas com um objectivo definido, grande parte da sua obra. E pelo menos uma coisa ficou clara: AC não permite qualquer leitura passiva, passagem de vista, feito no lume brando de desentorpecer dos outros heterónimos. Porque o seu mérito está, sobremaneira, em estabelecer o inverso, a imagem reflectida no espelho de água, logo ao contrário, daquilo que com os outros ele expôs. Acima de tudo, nesse esclarecido e privilegiado interlocutor que fez da língua portuguesa a sua pátria. E por último, porque os objectivos propostos na introdução se cumpriram satisfatoriamente: AC, mais do que uma variação para a leitura da poesia pessoana, é uma confirmada realidade da linguagem interpretativa do seu tempo. No seu tempo. Enfim, faz jus à absorção espontânea, imediata e criativa, diremos a quente, das ideologias, conceitos, teorias, ideias e posturas estético-culturais adquiridas por contacto e/ou estudo, da vida quotidiana, e na invenção do século XX português para o qual, ao seu jeito, grandemente contribuiu.

(Foto de escultura, Benit soit le fruit de tes entraille, de Canto da Maia)

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