Variações em Dois


Retrato do Zé com moldura gitana (em salero bordalesco)

O café, pela hora da bica d'almoço, período de tráfego e ponta tradicional da restauração provinciana, estava à pinha – só para meter uma bucha com metáfora de referência natural a tão cosmopolita ambiente – quando o Zé Lello entrou a gingar na farpela garrida, num multicolorido de alto a baixo de fazer inveja às bandeiras de inspiração românica e anglo-saxónica todas juntas. Passou pela mesa das burras, salvo seja que esses animaizinhos não merecem semelhante comparação!, e empertigou-se para elas, erguendo a peitaça de peru afoito em marés natalícias, que nesse ínterim abriam a boca com um Óóóh redondinho recheado de espantado escândalo. Cruzou olhares concupiscentes com a do canto das sáficas donzelas, senão cúmplices, pelo menos gulosos, aliciando as diferenças. Até que por fim assentou a hegemonia patriarcal e partilhou o hálito de alho e tintol carrascanho, que lhe ficara da bacalhauzada portuga que afiambrara na tasca do El Campeador, com o Zé Bordalo, sobrinho-neto do Zé Povinho que andou na desforra de espalhar manguitos por esse mundo fora, a que deram o nome de diáspora, vejam só!, e nesse preciso momento, cofiava a barba de sete dias e uma semana, numa postura gestual de mandar os circunstantes àquela parte, num toma que é de bronze muito bem disfarçado, para não ofender demasiado a requintada clientela do estaminé, e a quem não fazia incómodo nenhum a presença de etnias à sua mesa, desde que contribuíssem com a sua parte nas despesas gerais.
«Oh, dianho! Olha, que vens bonito... e folclórico. Onde é o casamento?» atalhou o Bordalo, assim a modos que a afeiçoar-lhe o passou-bem da chegada.
«Ná; desta erraste» retorquiu-lhe o Lello batendo as palmas em jeito de passo-doble a citar o papillon engomadinho do Torna Levas, empregado de mesa d'há muito. «Desta vez não é casamento. Já se não usa. Hoje vou mas é a um divórcio, tiradinho de fresco com copo-d'agua e regabofe com DJ em tenda de lona e bar aberto até de madrugada, e bebida à descrição sem amolar vintém. Vai ser duro!»
«Eh, lá! Isso é moda cigana e só de vós outros?! É que não m'alembra festa assim na minha gente... Não é costume! Boda, ainda vá que vá... Agora divórcio? Hum!...»
«É pois» adiantou o Lello, dando uma sorrateira ajeitadela nas vísceras e partes, que se lhe entalam com os apetrechos e atafais da indumentária. « É o divórcio dos meus sogros. Ele é transmontano e ela algarvia; e isto agora não anda nada bom pràs origens separadas com muitas viagens pelo meio...»
«Toma tento Zéi! 'Tão não vês que 'tás a incomodar o sr. Inginheiro?!» é que, o Lello, dado a iluminuras, para ilustrar o gesto na legenda do separamento das origens, abrira os braços em Cristo Rei de estar na cruz, para equilibrar-se dos senões e não despencar sobre Almada, e teve vai-que-não-vai para tocar com a beata no fatinho novo d'O Cliente da mesa do lado, prestes a queimar-lho. E ao Bordalo deu-lhe dó, aind'assim!...
Porque, lá pelo fato – salvo seja!, em grafismo de Acordo Ortográfico – de ele estar todo vivaço e celtibero, isso não era razão de suma valia pra chamuscar o cinzentíssimo fatito do sr. engenheiro: alegria, alegria, aleluia, aleluia, mas factos à parte. Ò não?
Quando se amensendara, o Zé Bordalo, não lhe atenteara bem na fatiota, por mor do sucessexo que desencadeara a sua arribação entradiça, mas depois dos efeitos secundários se esvaírem no terceário situacionista, pudera-lhe apreciar os panos e acessórios com mais ólhós. Os colarinhos da camisa em seda da Índia são púrpura, metade do tronco e manga direita é azul celeste, a outra metade e respectiva manga em vermelho vivo, os punhos em dourado, o bolsinho do tabaco em preto gaivota, e a barriguinha, à esquerda da abotoadura a verde-pirilampo, enquando o lado contrário anda pelo laranja-eléctrico. A segurar as calças, um cinto de pele de lagarto enfeitado com escamas de dragão azedo, e fivela de unha d'águia.
Também elas, as calças, bonitas de se verem, a saltar a Ribeira, com bainhas da Foz, douradas, para condizer com a marialvice dos punhos, mostrando a meia de lã aos losangos amarelos, verdes, pretos e lilases, no mais puro e inclinado xadrez, suportados pelos sapatinhos em verde-gaio com pompons turquesa e prata nas presilhas. Desde a cintura até aos joelhos são em castanho-sobreiro de casca mansa; e as pernas, a canha, é amarelo-torrado, e preta-azeviche a destra, com os bolsos, também de cada cor, a fim de não destoar da Copenhaga num clima que se adivinha movediço, com rosinha prò bolso dos trocos e azul-bebé no da navalha (e isqueiro).
Enquanto isso, o Zé Lello abufava no café que o chicória do Torna Levas trouxera a escaldar, para o sorver aos golinhos e com assobio de vapor a entrar na barra, mas o outro, Bordalo seja louvado!, enviesava os mirantes ao céu num soslaio meditativo, que pelo semblante embevecido e compungido, não era garantido se seria o de quem estava a contabilizar as cores, se o de quem estava a bradar a Deus que lhe explicasse tamanho milagre.
(Recapitulemos.)
Até que se não conteve mais, e disparou à torna-baldia, para atazanar o Lello: «Bebe lá o cafézinho, que agora é que está bom. Mas... antes d'abalares, ainda me há-des explicar cá uma coisa.»
O da folclórica figura fez «hum-hum» e amandou-lhe a última e derradeira seringadela na chávena, escorripichando até ao sucre final a água escura, escorou novo paivante nos beiços peganhosos do melaço, ateou-lhe mecha, que acendeu num Oscar de se lhe esfregar o olho, e deu sossego à ansiedade do tertúlio seu companha nas safras colegiais.
«E que coisa é essa? Vamos lá!»
«É a vestimenta. É isso o próprio prà cerimónia? Um divórcio...»
«Exactamente. É ela mesma toda assim, que é única. Um divórcio tem de ser feito com afianço e garantia: não tem lugar para cópias, clónes nem adultérios. É uma coisa séria!»
«Nãm t'intendo!»
«Mas é do mais facílimo. O divórcio dos meus sogros mete gente por todo o lado, que eles sempre foram muito viageiros. Desde as sucatas de Aveiro até às sombras de sueca do Príncipe Real, com finalmentes à mistura. Por exemplo, a minha cunhada já é de Lisboa e está descasada de um gajo de Loulé que quer assentar praça em Rabo de Peixe. E como agora vem aí outra vez essa calda bordalenga da regionalização, eu não quero cá desavenças, e vesti-me prò contento de todos. Assim, que é de pano!»
«A regionalização, dizes tu, é que te levou a esse estréfe-néfe? É boa!»
«Está claro que foi. Os colarinhos são de Braga, o tronco vai prò centro, fazendo destrinça entre litoral e interior, a cinta no Vale do Tejo e calças no Alentejo e Algarves. As peúgas estão conforme a CPLP e as botas têm África do Sul na alma, com o mundial nas solas. E ôspois?»
«Tem jeito, sim senhora... Isso é um divórcio prà unidade! Como é que na Assembleia da República ainda se não lembraram disso? Escusavam de passar vergonhas, como as que passaram na sessão de Sexta... Bem como evitavam de que pensássemos que a única esperança que nos resta anda pelo folclore do futebol, onde as expectativas de não virmos a tornar-nos na sesta rota do costume, são iguais às de sempre...»
«Ora vês tu: eu sabia que compreenderias!»
E levantou-se de um tiro, depositando uma mão-cheia de trocos sobre o tampo da mesa, para saldar o défice. Cento e dez cêntimos, nem mais um tuste, que a vida não está para gorjas!

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