UM PONTO DE
VISTA...
O pseudónimo Luzia é uma espécie de
autor exterior ao universo confessional da narrativa, distanciado, no intuito
de absorver e relatar a (peculiar) aventura interior humana, mas nunca tanto
que impeça, ou venha a impedir que seja continuamente confundida com o autor
implícito (Luísa Grande) para, assim, elevar, esclarecer, conseguir, a máxima
objetividade textual dentro da (inevitável) subjetividade intrínseca ao género
lírico e intimista cultivado pelos parnasianos. As cartas, as observações
quotidianas, a experiência de vida, a infância que Luzia quer servir/mostrar ao
leitor, são as mesmas que Luísa Grande viveu, experienciou, teve, e quiçá terá
registado nos seus diários; Luzia foi buscá-los, deu-lhe a redação que
entendeu, embutiu-os quase como flashbacks
no texto que estava a redigir/compor ao momento e consoante a estrutura que lhe
definira. Os seus melhores textos sobre Portalegre provavelmente foram escritos
no Funchal – e vice-versa. Também as confissões mais custosas e profundas de
Luísa foram feitas por Luzia – e vice-versa.
Nos romances epistolares Luzia mete-se
também de fora (de si) e quem executa as missivas é uma ou várias personagens,
e à vez, contando-nos algo que está inequivocamente à distância de todos, do
leitor, do escritor, do pseudónimo e de alguns personagens, embora lhes
pertença igualmente – e por inteiro. E nesta atitude é mais que óbvia a
intenção artística e literária (exploração do labirinto original, em espiral
que parte dela, ou o escrever concêntrico de pedrinha que cai na água de
Proust, originando um número infinito de ondas circulares em volta desse
momento) de Luísa Grande, declarada sobretudo com a criação do pseudónimo
Luzia, que outra não é senão si mesma, em que tudo o que esta publicou/editou é
inegavelmente arte e artifício, perfilando uma obra literária – e de
excelência!
Todos os seus livros enfermam de uma
notória mestria (intencional) bocacciana e quase barroca (no discurso), que
está sempre fora do discurso normal e ordinário, corrente e comum, logo
a-literário da lusofonia do seu tempo, e até europeu, recorrendo frequentemente
ao entalhe, ao embutido, ao palimpsesto do recuado em sua vida como no discurso
literário nacional, para atualizar a compreensão do presente – que então era
ainda futuro – mas que já estava enunciado (no passado) no estilo, retórica e
conteúdo das prédicas/sermões do Padre Afonso Lopes Vieira.
Luzia não é só um pseudónimo; também é
um narrador, compilador, organizador, fazedor de livros ou coleções de textos
com um fio narrativo a ligá-los entre si. Compila cartas, bilhetes-postais, crónicas
avulsas, relatos de vivências e lugares, retratos de tipos sociais e de pessoas
reais/irreais, de pontos de vista, de quotidianos, e autentifica-os sob a
autoridade de uma personagem precisa, Luísa Grande, atribuindo-lhes conforme as
exigências da narrativa, um lugar, um papel e estatuto próprio e explícito
naquela determinada narrativa. Portalegre, Funchal, Pau, Paris, Ribeira de
Nisa, Lisboa, não são apenas sítios ou terras por onde passou, mas pontos de
vista identificáveis e inequívocos. São marcos de uma biografia que Luzia usou
para dar verosimilhança e verdade ao seu discurso, e isto, repito-o com um
propósito implícito de criar outra realidade que, como diria Eça de Queiroz seria
o manto diáfano da fantasia sobre a realidade primeira e original que era a
intenção literária e criativa de Luísa Grande. Ou seja, Luzia, para garantir
mais credibilidade à sua postura e papel chega a usar retalhos de um suposto e
hipotético diário (Jornal) de Luísa
Grande, sua criadora e a quem deve a maternidade direta, traindo-a com
confissões incontáveis, talvez abusando da sua confiança, demonstrando assim
como esta criação ganhara vida e vontade próprias, tomando as rédeas não só do
seu destino, mas também do de ambas. Porque se nós (leitores) sabemos da
existência de uma é pela criação da outra – e vice-versa.
Todo o artista é um contrabandista.
Luzia é a transportadora de conhecimentos, de conceitos e de estéticas, ao
serviço de três mundos distintos, cruzando-lhe as fronteiras: o mundo ideal
(dos valores humanos, da natureza e das formas puras ou inocentes, das infância
mágicas e felizes); o mundo real (da escrita e do leitor, do momento histórico
e ambiente político, urbano, campesino, ilhéu, social); e do mundo imaginário e
literário ocidental, nosso ancestral como de Luísa Grande pejado de fadas e alquimistas,
de sábios e romances, de Quixotes e Sharazades, de Cervantes e Mil e Uma Noites
– com as características inovadoras inerentes à afirmação da mulher no tempo e
sociedade, no empenho artístico e literário, sobretudo de inspiração
francófona. Mas também anglo-saxónica via Shaskespeare.
Há, portanto, já uma polifonia
propositada e intencional na escrita de Luzia, que surge muito depois de duas
outras experiências – igualmente intencionais e propositadas – de criação de
pseudónimos (Sónia e Lady Baterffly), e que traduzem uma lírica polifónica,
porquanto é só o autor a falar, sim, mas com diversas vozes, pronuncias e
máscaras. É como uma caixa que tem outra caixa dentro que tem outra caixa
dentro que tem outra caixa, assim por diante, até ao infinito... Luzia é o duplicado
ao espelho de Luísa Grande, que também foi Gracinha, logo Sónia, logo Lady B.,
logo Guida, logo todas as personagens/remetentes epistolares das cartas e
viagens feitas e por fazer mas contadas (narradas).
Aquilo que Luísa Grande faz é o mesmo
que Fernando Pessoa fez com os heterónimos, Jorge Luís Borges com os seus
heróis, ou José Maria do Reis Pereira com José Régio: inventou-se a si mesma como
outra, e sentaram-se as duas frente a frente, metendo um espelho enorme ao seu
lado direito em frente a outro igual ao seu lado esquerdo, refletindo ambas até
ao infinito. É nesse jogo de espelhos, em que as duas (se) escrevem, que elas
jogam também escrevendo cada uma acerca da outra. Luísa escreve acerca de Luzia
que escreve sobre Luísa que inventa Luzia escrevendo, até cada uma delas já
estar a escrever o leitor que escreve outro leitor de tempo diferente ao seu
que escreve como tu ou como eu... Que, afinal, também vemos o mesmo pôr-do-sol
lilás ou o mesmo mar, ou o mesmo Jardim (do Mar) que ela viu... Então o autor
morre? Sim, exatamente; senão como renasceria continuamente? O autor morre e a
sua alma multiplica-se, transforma-se numa máquina de criar que se transforma
numa máquina de ver (ou ler), e desse texto renasce para voltar a
transformar-se em alma (Psique, borboleta, mariposa) máquina de voar numa
cadeia de transformações ou metamorfoses – como diria Kafka, cujo nome
significa «gralha das torres». Ou ave que repete continuamente as mesmas
frases, as mesma imagens, as mesmas metáforas, o mesmo refrão...
Assim, à pergunta: será a obra de Luísa
Grande meritória do estatuto de obra imprescindível no painel da literatura
nacional e europeia? Só há uma resposta: sem qualquer dúvida.
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