ZÉ-PENDETE, O CULTIVADOR DE RESSENTIMENTOS

“Um perito é aquele que sabe cada vez mais a respeito de cada vez menos.”
                                                                                 N. BUTLER

No tempo dos bons e dos maus [também] havia bons que eram maus e maus que eram bons; mas Zé-Pendente sempre fora um assim-assim desde pequenino. Politicamente correto umas vezes, chico-esperto outras, nunca se opunha nem cumpria, que a meio das vontades tinha a sua no mais coisa, menos coisa, com que se ia safando no dia-a-dia. Porém, em dada altura, em que quase todos se formaram também tirou a formatura, outorgando-se digno de chapelada e demais tratos que a populaça a partir de então lhe concedeu.
Hoje, é licenciado, embora faça exatamente a mesmas coisas que antes fazia – e de igual maneira. Tem as mesmas atitudes perante a vida, a natureza, os animais, as leis, a ética e os alheios, de que se apropria avidamente sempre que a oportunidade lhe é propícia. Continua a dizer «há des» em vez de «hás de» e «trazi-os» em vez de «trá-los», agora com mais segurança e convicção, é óbvio, dado ter em mão um diploma que lhe garante o direito de errar sem admoestação, que é para tanto que servem os melhores como os piores canudos.
Da ingratidão conhece o termo, que aplica apodando quem quer ou que lhe não acate os desplantes e dislates, porém nunca a prática, já que desconsidera veementemente sempre que pode quem lhe fez quase todos trabalhos, sobretudo aqueles em que teve uma nota exemplar ou acima da mediania. É autoconvencido a pontos de achar que toda a gente o admira e dele gosta superlativamente, embora não reconheça o mínimo valor a ninguém que não vista melhor que ele, tenha um carro de superior cilindrada e casa mais afamada e farta. Todavia, tem qualidades, raras, diga-se a propósito: sabe quase todas as frases que devem empregar-se para parecer inteligente quando solicitado a dar sua opinião, como "a questão não entra por aí", "sim, é bonito", "não fica bem", "condiz com o programado", entre outras de igual quilate, que vai aplicando aqui e ali, disseminando o culto da sagacidade arguta e vivaz que sobremaneira desfruta entre nabos e nabiças de suas intimidades cúmplices. Valha a verdade!

Acabei agora mesmo de tomar café com ele... Esteve todo o tempo em que estivemos juntos com aquele ligeiro semblante de quem está mas não está, tipo cumprindo uma missão, coisa que fez com a exatidão que correspondia ao seu interesse, pois precisava de um slogan para uma ação de promoção de uma atividade em que estava empenhado; pediu-me que lho arranjasse – Mas sem ser em verso, que não gosto de slogans a rimar –, exigiu.
– Então, fá-lo tu – respondi-lhe. – Quem sabe tão bem o que quer, muito abalizado está para o fazer.
Amuou. Sei que não vai voltar a falar-me a não ser na presença de terceiros, em consideração aos que se sinta obrigado, ou que volte a precisar de meus préstimos. E que dirá cobras e lagartos acerca de mim, se alguém lhe pedir parecer ou calhar em conversa. É assim que se ganham inimigos nesta vida!    

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