A TRAGÉDIA DUM DRAMA (SOCIAL)
"Lopo Alves tirou o relógio e viu que eram nove horas e
meia. Passou a mão pelo bigode, levantou-se, deu alguns passos pela sala,
tornou a sentar-se e disse:
– Dou-lhe uma notícia, que certamente não espera. Saiba que
fiz... fiz um drama.
– Um drama! – exclamou o bacharel.
– Que quer? Desde criança padeci destes achaques literários.
O serviço militar não foi remédio que me curasse, foi um paliativo. A doença
regressou com força dos primeiros tempos. Já agora não há outro remédio senão
deixá-la e ir simplesmente ajudando a natureza."
In JOAQUIM MARIA MACHADO DE ASSIS, A Chinela Turca
É mentira que a democracia em Portugal foi arrumada e
enlatada pela direita. Eram poucos, estavam arredados dos meandros do poder e
da finança, e não tinham a mínima credibilidade pública. Durante as duas
décadas posteriores ao 25 A, a direita não passou de uma anedota que se contava
nas tascas do populacho, andando de Ponço para Pilatos com as calças na mão e
na mira dos variados subsídios detonados por inúmeros programas
político-económicos em promoção. E, enquanto isso, a esquerda das ocupações
foi-se capitalizando, enriquecendo, substituindo-a. Mas não só, porquanto uma e
outra, a direita de direita e a direita de esquerda, para garantir a sua
sustentabilidade, movimentaram-se no sentido de se instalarem nos corredores do
poder, tornando-se exímios na técnica do puxar dos cordelinhos, fazendo disso
profissão e credo: consumando o suprassumo do funcionalismo público.
Foi bom enquanto durou, contudo está nas vascas da
agonia...
Alguns dos funcionários das secções de higiene e ambiente
das municipalidades ainda vigentes são de esquerda, e destes, não raros são até
comunistas, e bastantes os envolvidos nas lides sindicais. Outros são de direita,
com os afetos políticos determinados pelos oradores dos púlpitos paroquiais,
que não ligam à política nem se querem comprometer com nenhum partido, embora
votem sempre naquele que está mais próximo dos ideias do Caetano que ouviu as
trindades lá pràs bandas do Carmo. Parecem opostos, contrários, todavia entre
uns e outros não há a mínima diferença, pois que tanto os revolucionários como
conservadores, fazem exatamente o mesmo com os lixos: depositam o papel e os
plásticos no lixo geral, sempre e ostensivamente, e apenas o vidro vai prò
vidrão, não porque a reciclagem do vidro lhes fale à consciência e
responsabilidade quanto à melhoria do futuro, mas sim porque o vidro pode ser
aproveitado para fazer mais garrafas onde meter o líquido de sua eleição – a
boa pinga nacional. Não mexem um dedo sem lucrarem com isso, porém quando lhes
acenam com o copo cheio nunca dizem que não. São devotos, por votos, convictos
e concordados, e sempre capazes de votar em qualquer promessa que lhes encha o
vasilhame. Que é igual a dizer que também eles nasceram prò drama, mas o seu
negócio é a tragédia!
A par deles, a fina flor de Portalegre virou, de um momento
para o outro, maioritariamente, senão na totalidade, revolucionária: eram fãs
do fado e das sevilhanas, sobretudo nas noitadas de regabofe, mas agora dão o
cu e dez tostões pelas novas versões das cantigas do Zeca, do Adriano Correia
de Oliveira, Padre Fanhais e António Variações. E as guitarradas do Paredes!
Não há nenhum que não trauteie Os Vampiros, o Maria Albertina Como Foste Nessa,
o Somos Filhos da Madrugada, e etc., com sublinhada legenda do «isto sim, que é
música!» que acompanha as grandes epopeias e inolvidáveis momentos épicos.
Enfim, ao verem-se metidos no mesmo saco dos sacrifícios e apertadas medidas de
austeridade – logo eles, que tão bem se deram com a velha como com a nova
senhora! –, e subtraídos em mordomias que tinham por seguras e vitalícias,
tentam açular as hostes plebeias para os confrontos com o poder governamental,
na esperança de que este retroceda na poda do aparelho de Estado e seus
galhos funcionais, voltando a admiti-los na lista das despesas e gastos
desnecessários à nação.
Os amanuenses do regime, tal como o personagem do conto de Joaquim Maria Machado de Assis,
Lopo Alves, sempre lhes correu no sangue essa dramática febre de viver à custa
do esforço alheio, e nem mesmo quando tiveram que andar de mãos dadas com o
Movimento das Forças Armadas servindo no PREC, lhes passou totalmente. Pelo
contrário, se tornou aguda e crónica. Contudo, agora, com a reforma à vista,
estão prontos para tudo, incluindo agravar o drama de suas e demais
existências, preferindo a este género manso o seu descendente direto para
assustar as gentes: a tragédia.
Estão por tudo, e não temem nada, que nunca haverá TROIKA
que os tolha e intimide... E que outra coisa seria de esperar dos hermínios destemidos
e bravos lusitanos?
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