Ao contrário do que possa parecer, todos nós nos separamos da razão que
nos assiste diversas vezes ao dia, o que fará um número incontável ao ano, sem
que nenhuma delas esteja relacionada com o merecido descanso, no sono, no
sonho, na alienação, no delírio, na bebedeira, na lua, no que se lixe e no desligar
para pôr as baterias à carga: é sobretudo quando pomos os nossos interesses pessoais
e narcisismo à frente de tudo o mais, quando deixamos de olhar a meios para nos
valorizarmos, que aí desconsideramos quantos se encontrem na trajetória prossecutiva
do amor-próprio, seja quem for, principalmente os mais desvalidos. Até mesmo
quando contamos inofensivas e inocentes anedotas para fazer sala ou desopilar a
família, que incidem sobre alguém de todos conhecido, tipo social ou estado de ânimo
que os carateriza.
Por exemplo, é comum pelas festividades, no
Natal ou Páscoa, nos serões das (melhores) famílias, haver sempre alguém que
conta uma historieta aos mais novos, jocosa mas não indecente, como convém, e
sucede ser quase sempre a mesma – a dos puns. Tenho a certeza que já todos e
todas a ouviram, pelo menos uma vez…
É assim: “Naqueles tempos a vida não era o que é
hoje, não havia internet, cinema, televisão, e as pessoas entretinham-se
conforme podiam. Quer dizer, rádio e televisão havia, que nós tivemos logo que
apareceu, tanto ele como ela. Mas as famílias com menos posses, vai lá vai!
Ora, a seguir às férias de Natal, no primeiro
dia de aulas, o professor Tadinho, que foi aqui mestre-escola um rol de anos,
prà’i uns 40, perguntava-nos invariavelmente como tínhamos passado a noite da
Consoada. De entre nós, uns diziam que tinham ceado, ido à missa do galo, desembrulhado
os presentes, e que tinha recebido isto ou aquilo, brinquedos, vestuário,
material prà escola, etc., etc. Outros, que tinham ceado, dado graças a Deus, jogado
às cartas e ouvido música. Diversos que tinham ficado à lareira a comerem filhós,
azevias e rabanadas, feito freiras de milho, a que hoje chamam pipocas, etc. Aqueloutros
que assado, e que frito e cozido. Até que o stôr Tadinho, vendo que o Lelinho não
tinha participado da aula, quis entrosá-lo no convívio, inquirindo-o: – E tu,
Lelinho, também festejaste o Natal?
– Festejei sim, stôr. Lá em casa somos todos
cristãos… – respondeu ele.
– Então, o que é que fizeste, home?
– Ora, jantámos, e ficámos todos à braseira.
– Só, isso? Não fizeram mais nada? Não viram
televisão? Não trocaram prendas?
– Não, stôr. Só isso, mas também nos divertimos…
– Sim… Como?
– O meu pai dava puns, e a gente ria-se e batia
palmas.”
Suponho que a anedota tem séculos e desconfio
que vai ser repetida milénios fora, com as devidas atualizações e enquadramentos
históricos regenerados, onde os mais pobres hão de servir para alegrar o são
convívio das “imaculadas” famílias.
É por isso que penso que o romance de João de
Mello intitulado Gente Feliz Com Lágrimas não carateriza minimamente a maneira
de ser anexa à portugalidade. Porque quer os que têm motivos para rir, quer os
que não têm razões para festejar, todos e todas o fazem mesmo jeito, todos o
celebram de igual modo, dando risadas, fazendo foguetórios, arruadas, caravanas,
por dá cá aquela vitória ou reivindicação. E que os que o fazem são bastante infelizes,
como as universidades e institutos que lhes terçaram o retrato ou levaram a
exame – quer dizer, fizeram os questionários –, tornando por demais evidente
que a personalidade típica portuguesa, não é a dessa gente feliz mas chorona, e
sim antes a da gente infeliz sem verter uma lágrima, uma lamentação, um
arreganho de renúncia e contrariedade. Até nos lamentos e manifestações, que é
onde mais gritam e esbracejam, nomeadamente slogans
políticos e palavras de ordem… Mas chorar, nunca; exceto no fado, é claro. Que aí
sim, é um mar delas… de lágrimas, digo eu!
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