NUVENS DA VIDA
AS
NUVENS DA VIDA
“No
espelho da visão está a segurança da verdade”
–
Código Visigótico I, 1-2
Na
realidade diária, a nossa planificação, previsões, antecipações,
palpites, são parte intrínseca ao querer consciente, emancipado,
responsável; porém, por mais que nos exercitemos nelas isso não
significa que iremos ter êxito garantido ou observação confirmada,
e que, salvo nos espaços-quando onde se verifique refletida uma
acentuada monotonia e pacatez, o acaso não nos pregue a peça e as
surpresas sucedam. Às vezes é o canto de uma ave; outras, um
sorriso em que reparámos pela primeira vez, embora vejamos a pessoa
que o deu com frequência e, até, repetidamente ao longo dos dias. E
outras ainda, um tropeção no escuro, exatamente no momento em que
nos deslocávamos de uma sala para a contígua, pé ante pé, com o
máximo cuidado para não fazer barulho.
O
acaso é profícuo em casualidades.
Então,
ao reconhecê-lo, tentamos limitar-lhe as ocorrências, retratando-as
ao máximo, reproduzindo-as, tornando-as alegóricas, exemplares,
casos notórios ou notáveis, estórias, quadros, cenas que nos
ajudem a compreendê-las e compreender-nos, bem como a aproveitá-las
(pedagogicamente) sempre que surjam. Tentamos tirar proveito de tudo
aquilo que nos espanta, assusta ou deslumbra. Percebemos enfim, não
obstante o alheamento natural para onde o presente nos atira
irremediavelmente, que o que é importante nem sempre se revela da
melhor maneira, bem como que, por muito pessimistas que sejamos, há
invariavelmente algo ou alguém para quem isso não conta
absolutamente nada. E que, por casualidade, ainda que ninguém os
tenha covidado,
esses nebulosos imponderáveis, aí estão a balizar-nos cada
instante da nossa existência gregária – e terrena.
Não
raros chamam-lhe cultura, havendo inclusive quem diga que é arte.
Franzimos o cenho, torcemos o nariz, alçamos a venta, estancamos de
pronto para manter o distanciamento. E insuflamo-nos de autoestima e
orgulho pela revelação. Mas o facto não é assim tão original nem
inédito como parece, e já inúmeros elementos da espécie humana o
constataram, o reconheceram, e o registaram por mil e uma maneiras
possíveis e imaginárias. Por exemplo, Ovídio (poeta latino n. em
Sulmona 43 a.C. - f. em Tomis 17/18 d.C), há mais de dois mil anos
portanto, na sua Arte de Amar, o resumiu aproximadamente deste jeito:
“a arte não faz mais do que imitar o acaso”.
E
não é que tinha razão!
Joaquim
Maria Castanho
Com
foto de Zélia Mendes
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