A VIDA NOVA

 

Um dia li um livro e toda a minha vida mudou. (…) (…) Estava sentado à mesa e, num recanto do meu cérebro, sabia que estava sentado ali, que virava as páginas e que toda a minha vida mudava à medida que lia palavras novas, virando novas páginas; sentia-me tão pouco preparado para tudo o que iria acontecer-me, tão desarmado que, ao cabo de algum tempo, desviei os olhos, como que para me proteger da força que jorrava das páginas. Foi com terror que notei que o mundo à minha volta se transformara completamente, e invadiu-me um sentimento de solidão que até então nunca experimentara – como se me achasse sozinho num país de que ignorava a língua, os costumes e a geografia.

(…) (…)

Os meus olhos deslumbrados pela luz já não podiam separar o universo que existia no livro do livro que existia no universo. (…) O livro descobrira e trouxera à superfície um tesouro perdido, que dormia desde há séculos no fundo das águas, e eu tinha vontade de dizer tudo o que descobrira nas palavras e nas frases: agora tudo isto é meu, tudo isto me pertence. (…)

Levantei-me, como fazia quando era garoto, fui olhar para a rua, com a testa encostada à vidraça fria. O camião que cinco horas antes, quando eu tinha posto o livro em cima da mesa e começado a ler, estava estacionada do outro lado da rua, desaparecera. A sua carga de armários, de mesas pesadas, de aparadores, de caixas de cartão e de candeeiros tinha sido descarregada. Uma família instalara-se no apartamento vago do prédio em frente ao nosso. Como ainda não havia cortinas nas janelas, pude ver, alumiados por uma lâmpada sem quebra-luz, um casal de certa idade – pai e mãe – e os filhos – um rapaz da minha idade e uma rapariga; estavam a jantar em frente a televisão. A rapariga tinha cabelos castanhos-claros; o ecrã da televisão era verde.”


in A VIDA NOVA

de Orhan Pamuk

(páginas 11, 13, 14 e 15)

Trad. de Filipe Guerra

Editorial Presença, 2006

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