Nas Alfândegas da Fé






As Três Tentações do Seguidor

1. Teoria

"Os intentos de incluir o público – ou o leitor – no processo de criação de uma ficção são bastante vastos. À parte o já mencionado Julio Cortázar, pratica-os MarioVargas Llosa (quando quer que os leitores das suas novelas supram a verdade do que em A Casa Verde, por exemplo, possa ter sucedido com a Casa Verde e as personagens a ela vinculadas), William Burroughs (quando pede que as sequências fold-in sejam encaixadas umas nas outras pelos leitores) e aquele escritor inglês, B. S. Johnson, de cujo romance The Unfortunates disse Stanley Reynolds no New Statesman (21.2.19: «[his] new novel, done up is a box, chapters loose, you can chuffle them about, get the story then, I suppose» – p 264; pratica-os o próprio Onetti em O Estaleiro (quando oferece ao leitor desenlaces do romance) e em A Vida Breve (na qual chegamos a uma sequência durante cuja leitura tive a forte impressão de que os personagens estavam a inventar o autor), e praticam-nos também aqueles autores que usam a segunda pessoa do plural ao descrever alguma acção – como se fosse o leitor quem actua. O escritor alemão Peter Chotjewitz leva ad absurdum estes propósitos quando pede que o leitor escreva alguns capítulos do seu romance Auf dem Bärenaug.
(...) Onetti consegui, pois, e magistralmente, tornar-nos com esta novela "cúmplices" de uma actividade algo vergonhosa e humilhante."
Do Posfácio de O Leitor como Protagonista do Romance
ao livro Os Adeuses, de Juan Carlos Onetti

Por mim, reconheço que o personagem que mais comigo colabora, o que melhor reflecte e pensa o enredo em que está metido, é sem sombra de dúvida o leitor/a, uma vezes difuso e indistinto, digamos abstracto, outras identificado e vincadamente caracterizado, formatado e visível, conhecido e atuado, a quem trato por tu por mor de muito convívio e intimidade, com quem privo não obstante a distância quilométrica e cronológica que nos separa, porquanto estamos os dois no mesmo barco, remando com idêntico esforço e sentido, direcção essa plenamente assumida por ambos, já que queremos saber o fim da história com igual curiosidade e estamos em pé de igualdade a propósito do seu desenrolar. Nem eu nem quem lê, sabe como vai continuar e muito menos acabar. Principalmente porque aquilo que ansiamos é estarmos presentes quando ela acontece, e isso nunca se faz fora dela, nunca evolui afastado da escrita, que é simultaneamente leitura, rescrita como releitura, considerando que a compreensão de uma se faz no momento da outra e vice-versa.
Se me dirijo a ti para me certificar que esse algo que partilhamos, a escrita, está a ser lida pelos dois, é porque ao ler-me estou a ficar no teu lugar que, curiosamente também não prescindes de te colocar na minha posição, rescrevendo e realizando os conteúdos, revelando-os, por assim dizer, como se de uma invenção própria, logo inequivocamente tua, esses significados e significantes deveras fossem. É legítimo fazê-lo? Estão salvaguardados os direitos de autor neste processo? Claro que sim, pois que é por demais evidente que se eles são o que são, na forma e estilo que se apresentam, nos géneros e correntes escolhidos, nas selecções imediatas como nas repensadas, nas revisões contínuas como na fixação definitiva, são-no porque ambos concorremos para que assim chegassem a ser e não tomassem diferentes desenlaces.
Até finais do século passado, isto acontecia mas não tinha registo físico constatável, ou imediatamente visível. Acontecia como simbiose intelectual, comunhão desafecta fomentada por diversos desencontros, alguns dos quais, bastante atreitos à cisão, sobretudo o temporal, sucedendo que não raras vezes o afastamento cronológico entre a escrita e leitura, ia ao ponto de, embora feitos na mesma língua, a evolução lexical verificada determinar que a palavra escrita tinha um significado mas a lida, por o ter sido em tempos diferentes e em virtude de progressão semântica, apresentar um sentido e um significado absolutamente contrário àquele com que foi inicialmente grafada. Actualmente, graças à unidade espácio-temporal do suporte electrónico, esse registo além de verificável é inegável como incontornável. Escrevo e alguém responde, não só lê o que escrevo, mas reage aos seus conteúdos e ao meu acto, participa deles, altera-os e exige desfechos, estabiliza parâmetros de concordância como de divergência, a que é impossível refractarmo-nos. Não só através de comentários, mas também de exemplos; não só por apontamentos à margem, mas igualmente por especificações de sentido e significado interno, de esclarecimento e desvio quanto à interpretação ou análise deste ou daquele constructo teórico; não só por justaposição como pela elipse concernente ao entendimento (circunstancial) mútuo desse algo em causa, motivo, objectivo, estratégia, significado e único habitante da intercepção em que estamos; não só como o terá feito Camilo Castelo Branco, dirigindo-se amiúde directamente às suas leitoras através do narrador – interposta pessoa, convenhamos – fazendo dele apenas um recurso veicular, caminho e meio de fazer chegar a sua missiva à musa do momento, mas também como patamar de descanso nessa subida de comunicar que é a escrita, ou qualquer outra linguagem pela qual nos façamos entender – e nos entendamos de facto –, em que quem pensa apela às companhias de jornada naquele «mas onde ia eu?!» cuja resposta, auxilia no retomar do ponto, sim senhora, todavia mais importância tem pela virtude de permitir aferir, avaliar, medir, constatar, a qualidade do “ouvinte” e o seu grau de atenção, o interesse da palestra, ou mesmo o índice de arrebatamento anexo (complementar) à fantasia (exposta).
Ou seja, aquela mentirinha de raposa matreira do escrever parta a gaveta, para evitar confundir as parras caídas por uvas (que só os cães poderiam tragar), tão atreita aos fazedores de casos sem audiência nem reconhecimento público, deixou de ser o refúgio que facultava a manutenção da auto-estima e narcisismo autoral, considerando que essa gaveta apenas servia para estimular, espevitar, acicatar a curiosidade dos que frequentavam o móvel – alguns maledicentes, dirão traste –, principalmente da mulher-a-dias, que nunca a deixava tal e qual como a encontrara, para que o seu senhor ficasse a saber da “violação” e interesse correspondido, anteriormente rígida, fixa e invertebrada, é agora uma janela de proximidade com exterior, virada para os quatro cantos do mundo, incluindo os do lado de dentro, como uma coutada para aficionados do mister, aficcionados da mesma espécie cinegética, onde se caça sem limites de defeso, claridade diurna, características do cordão (e sua corrente), bem como da qualidade e empenho dos cães (fiéis recursos estilísticos), e que, embora de livre acesso e generalizada frequência, por escancarada estar a todos e todas, não deixa de ser a coutada que só não está vedada aos éticos da estirpe, precisamente aqueles que respeitam as matrizes e as presas, não atirando sobre qualquer ideia e em qualquer circunstância, ferindo-a apenas para depois ir morrer longe, onde apodrecerá certamente sem a mínima serventia para ninguém.




2. Ponto de Vista




No Outono, las niñas
Enquanto caminham
Apanham, folhinhas!


Em Portugal conseguiu-se o inaudito: o que é deveras condenável, não são os crimes de corrupção, os subornos, o tráfico de influências – é a fuga ao segredo de justiça.
Vamos lá a ver se a gente se entende!
Face à tamanha diatribe e hedionda questão da fuga de informação, os crimes praticados parecem ser lana caprina, coisas de somenos e comezinhas, sem qualquer significado para a ética e cidadania nacional. Era isso que esperava da democracia quem lutou (e morreu) por ela? É esse o seu rumo para a transparência, enquadramento constitucional e aprofundamento progressivo do sistema? Tem jeito!
Assim sendo, a desvirtuação sistemática portuguesa dá ao desvio, à corruptela, foros de realidade e atribui à falácia vínculos de veracidade irrefutável, o que, no mínimo, é uma forma de adulterar o sentido de justiça e de autenticidade da sociedade e da “nação” portuguesa, com as dignas aspas para “bem” dela, (res)salvando o que ainda houver para salvar, quando da honra da rés (pública) falamos.
Todavia, a piada vai mais longe…
Tão longe que chega perto, onde os clérigos são atreitos a fugir com as garotas paroquianas mais fogosas e desenxovalhas, ao contrário daqueles outros que pedem perdão, depois de se terem afastado dos garotos dos orfanatos irlandeses com quem se teriam alambazado em romano regabofe, pelo menos a acreditar nas crónicas do Ovídio Nasão, para não falar já dos que traficam armas e influências, pedem pròs pobres e enchem a mula, alinhavam identidades insuspeitas para os seus missionários, ou refugiados, e congeminam revoluções anti-Magalhães.
Tão longe que para encontrar políticos honestos, sem vínculo às mafias e demais suseranias do suborno e da corrupção, é mais fácil encontrar agulhas em palheiro, sobretudo depois da seca e da escassez de pasto prà criação.
Tão longe, que o tradutor de O Idiota, do Fedor Dostoievski, anda a proclamar que não se devem fazer julgamentos na praça pública, mas esquece que quando algum cidadão ou cidadã quer ver o seu problema resolvido, tem que recorrer ao Nós Por Cá, da SIC, pois caso contrário, atiram-lho pràs calendas portuguesas, havendo até já quem proponha dar um subsídio e comenda à Conceição Lino, por serviços prestado à pátria e à cidadania, e atribuir-se à estação televisiva a verba orçada para os aumentos da função pública, nos próximos dez anos, a ver se eles passam a trabalhar em vez de complicar a vida às pessoas comuns, que têm de produzir o seu sustento, mais os impostos correspondentes para facultar o sustento desses funcionários.
Mas tão longe, que a oposição parlamentar de pilhéria em pilhéria lá vai governando o país, obrigando o Estado a pagar juros de mora aos particulares e fornecedores, quando este se atrasa no pagamento das contas e não respeita os compromissos assumidos, adiando para 2011 a entrada em vigor do Código Contributivo da Segurança Social, bem como reduzir e extinguir o Pagamento Especial Por Conta.
Tudo coisas é claro, que os contadeiros de pilhérias vão largando ao giroflé-giroflá da galhofa política, como quem está cá de passagem ou veio ver a Bola, e esta coisa da sociedade da comunicação e informação não vale mais atenção do que o relato de um jogo de matrecos, ou de bisca lambida na associação recreativa de Rabo de Peixe... E que acham que A Face Oculta é mais um comezinho livro sobre parapsicologia e espiritismo, bruxos e feitiçarias, adivinhação e mensagens do Além, do famoso e apaniguado cientista Oscar Gonzáles-Quevedo.
Leva jeito...Oh, se leva!


3. O Mestre Zé

A bem dizer, um escritor, qualquer escritor que seja, à parte do sítio, do tempo e do modo que o formataram, as ideias com que conviveu e privou, os radicalismos que sustentou, os ambientes que frequentou, ou antes, as experiências sociais que o condicionaram, além das habilitações literárias e leituras que cometeu – sim, porque isso da leitura é ainda um crime de nefastas consequências! –, dizia eu, qualquer escritor não passa nunca de um – mais um... – contadeiro de pilhérias. Tece e destece enredos, volteia entre surpresas do acaso, aglutina e atalha congeminações, aventura-se nos labirintos do inconsciente, colectivo como pessoal, até que um dia a necessidade lhe aguça o engenho, coisa nenhuma!, lhe afia a língua e ele dá com ela nos dentes, confessando a quantos o querem ouvir, sem a mínima selecção de qualidade desses ouvidores, como foi que entrou e saiu de tal ou de tais imbróglios, e que estava lá, é um afianço, uma certeza de que ninguém de boa fé desconfia, uma garantia de créditos, por avulso e atacado, pois caso não tivesse estado, há pormenores, minuduências, picuinhices, que jamais alguém notaria se para elas o dito não alertasse, não chamasse a atenção, não reconhecesse valia narrativa ou condição de fábula... E isso é uma escritura para o acto de contar, que apenas assenta por medida em quem viu, sentiu a marca do acontecido (do claramente visto, como referiu o nosso distinto épico), ao gravar-se-lhe a fogo na fria película da memória, ainda que corroída pelas gelatinas peganhosas da motivação, a que não raras vezes se deve essa espécie de alucinações, esse género de visões inconcebíveis, que ora realçam como fundem, ora avivam umas como apagam outras, adulterando-lhe a factualidade, como sumindo-lhe a nitidez, qual lixívia pura caindo em mancha, ou mácula do despropósito e desbotado, do branco linho no diáfano manto da realidade (do Zé Maria, por exemplo). Seja: Ora, Eça!

















(Continua amanhã)

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