Idílio (1)



Praias que banha o Tejo caudaloso,
Ondas que sobre a areia estais quebrando,
Ninfas que ides escumas levantando,
Escutai os suspiros de um saudoso.


E vós também, ó côncavos rochedos,
Que dos ventos em vão sois combatidos,
Ouvi o triste som dos meus gemidos,
Já que de amor calais tantos segredos.

Ai, amada Tirceia, se eu pudera
Os teus formosos olhos ver agora,
Que depressa o pesar, que esta alma chora,
No gosto mais feliz se convertera!


Oh, como então ficaras conhecendo
Quanto te amo, se visses a violência
Com que estão dos meus olhos, nesta ausência,
As saudosas lágrimas correndo!


Tanto neste pesar, que estou sentindo,
O triste coração se desfalece,
E tanto me atormenta, que parece,
Que ao sofrimento a alma vai fugindo!


Mas oh! Qual há de ser a crueldade
Deste terrível mal em que ando envolto,
Se a qualquer parte, enfim, que os olhos volto
Imagens estou vendo de saudade!


Uma serena tarde, já sol-posto,
Te vi sobre esta penha estar sentada;
Ali naquela fonte prateada (2)
Estiveste banhando o alvo rosto.


Dali de quando em quando os olhos belos
Movidos com tal gesto me voltavas,
Que em cada movimento asseguravas
Uma nova esperança a meus desvelos.


Ali na branca areia se estão vendo
Ainda, doce bem, tuas pisadas,
Que entre outras, que vejo assinaladas,
Estou distintamente conhecendo.


Vê como vivamente andas impressa
Nesta alma, que por ti se abrasa, amante!
Mas nem amor ao meu há semelhante,
Nem outra que contigo se pareça.


Por ti sempre dos olhos desatando
As lágrimas estou nestes retiros;
Entre soluços mil e mil suspiros
Em vão ando o teu nome derramando.


Nesta praia não há, nem pelo prado,
Rústica penha ou árvore sombria,
Tenra flor, duro tronco, a fronte fria,
A quem por ti não tenha perguntado.


Talvez se visses quanto sinto, ausente,
Tivesses dó de ver-me em tal tormento;
Mas que importa que vejas meu lamento (3),
Se já teu peito ingrato amor não sente?


Vem colher deste prado as belas flores,
Vem gozar destas sombras a frescura;
Mostra-me ao menos tua formosura,
Inda que armada de cruéis rigores.


Qual a confusa névoa, que escurece
Na luz da madrugada os horizontes (4)
Que logo dos floridos e altos montes
Com a vista do sol desaparece,


Assim eu, neste mísero desgosto,
O pranto que desato pela terra
De meus saudosos olhos se desterra,
Quando o sol aparece de teu rosto.


Ah! Se pudesses ver, doce inimiga (5),
O estrago que me causa esta saudade,
Pode ser que o impulso da piedade
Te obrigasse ao que o amor te não obriga!


(1) O presente Idílio, independentemente da “desgraça” que acarreta, foi endereçado por Domingos dos reis Quita à sua Tirceia, nome poético pelo qual ficou identificada Teresa Teodora de Aloim, admirável mulher que, não obstante, casada, viúva, e seguidamente recasada, protegeu e recolheu o poeta, na miséria como na doença (tuberculose), até ao dia em que finalmente faleceu. Quanto à ausência enunciada, supõe-se derivar da distância que ia de Lisboa à Quinta de Santo António, na Moita, onde morava Tirceia durante o tempo de (ainda) solteira.
(2) Conforme anotação de Rodrigues Lapa, a fonte prateada é um cliché clássico, a cujos modelos (do classismo) o autor terá recorrido “servilmente”, mas sem trazer qualquer novidade para a poesia, além de alguma brandura, certa melancolia, próprias das almas e corpos fragilizados ou combalidos.
(3) Neste vejas meu lamento está patente que o ver inclui também o ouvir porquanto o autor se refere à leitura em voz alta dos seus lamentos escritos.
(4) Nítido tributo – mais um! – ao classicismo.
(5) Oximoro igualmente “herdado” dos inimitáveis clássicos…



Domingos dos Reis Quita – Nasceu em Lisboa em 1728, filho de um comerciante arruinado viu-se forçado a seguir no ofício de cabeleireiro, aos 13 anos, para ajudar a sustentar a família. Nos ócios da oficina, tomou-se de amores pelas letras, lendo com entusiasmo, principalmente Rodrigues Lobo. Começou por experimentar a poesia, adquirindo alguma popularidade, fazendo passar essas primeiras composições como sendo da autoria de um frade que habitava nas Ilhas. Como poeta cabeleireiro frequentava a casa de um amigo, por cuja filha, de seu nome, Teresa Teodora de Aloim, se apaixonou, fez dela a sua musa, dirigindo-se-lhe sob o nome poético de Tirceia. Esta porém casou com outro, e o pobre Quita desfez-se em lamentações.
O terramoto de 1755 deixou-o sem recursos. Então, Tirceia, já viúva, recolheu-o em sua casa, pondo-o ao abrigo da mendicidade. O conde de S. Lourenço, que se interessava igualmente por ele, recomendou-o a Pedro António Correia Garção, tutelar da Arcádia, para onde entrou sob o pseudónimo de Alcino Micénio.
Em 1761 contraiu tuberculose, mas Tirceia, que terá casado novamente, com um médico, intercedeu junto do marido, fazendo-o interessar-se pelo seu caso, promovendo a cura. Essa obra de piedade durou mais nove anos, ao fim dos quais, em 1770 sucumbiu, correndo o rumor (boato mais ou menos infundado) que fora o marido, desvairado pelo ciúme, quem o envenenara, pondo termo à excentricidade caridosa da mulher. A obra de Quita, vertida nos moldes clássicos, não tem energia nem originalidade, e é falha de cultura; todavia, nota-se nela, por vezes, um tom brando, langoroso e melancólico, que anuncia a nova disposição das almas. Sendo, dos árcades, o menos classificado para tal, ensaiou-se também na tragédia e no drama pastoril, compondo Hermione, A Castro e Licore, que resultaram frouxas e sem vincado delineamento de caracteres.

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