LUZIA, uma escritora portalegrense que os portalegrenses quase desconhecem...

Ribeira Formosa – 6 de Outubro

Aqui estou enfim, saboreando as apetitosas migas, esquecendo a civilização e fazendo as pazes com a vida. Não sei se a Joanninha anda de bem com ela… Eu andava de mal há muito tempo. Os homens – que é como quem diz também as mulheres… – tinham-nos indisposto.
Estas árvores, esta divina solidão, no abençoado silêncio, a saudade mais viva «das queridas vozes que se calaram» e… tantas outras coisas deliciosamente indefinidas, estão-nos reconciliando.
Por amor da beleza da terra perdoo a fealdade do coração dos homens – pode sempre acrescentar mulheres, que, entre os dois…
E pela doçura de tudo o que fica, esqueço a amargura de tudo o que passa. Não será duas vezes o mesmo coração em que pus o meu desejo, a minha esperança, mas daqui a muitos anos, se eu voltar, as mesmas sombras discretas me acolherão e, como agora, a terra me sorrirá pacificadora e linda.
Il fait bon… Sirvo-me da doce expressão francesa porque não encontro nenhuma em português que diga tanto. Il fait bon… As manhãs são azuis, luminosas. Não há uma nuvem no céu. De tarde toda a quinta fica banhada em luz cor-de-rosa, a luz dos incomparáveis poentes alentejanos.
Passo o dia na mais vergonhosa ociosidade. Nem sequer leio. Ando em lua-de-mel com este campo, que é o meu. Outro pode deslumbrar os meus olhos, outro posso eu achar mais bonito, porém só a este eu chamo meu… E sabe decerto, Joanninha, que infinita ternura encerra tão pequenina palavra!
Há entre o Alentejo e a minha pessoa mil afinidades. Já reparou quanto influe na nossa maneira de ser a paisagem em que nascemos?
Conheço à légua o alfacinha autêntico que, no colo da ama, frequentava já a Rua do Ouro, subia o Chiado e adormecia ao som dos pregões plangentes…
Conheço o minhoto, conheço o algarvio, conheço o beirão. Todos têm a sua marca inconfundível, mas nenhum é tanto da sua província como o alentejano e nenhum quer tanto à sua província. Corra ele o vasto mundo, passe anos sem a ver… Nunca a esquece. Nunca consegue desenraizar-se. Em toda a parte se acha estranho, tem a nostalgia das longas, desoladas planícies, onde a vista se perde, das charnecas áridas onde só desabrocha a flor da Xara, pequenina rosa selvagem, que se desfolha ao menor contato e dos campos de oliveiras de prata e dos campos de sobreiros com os velhos troncos ensanguentados, e da tristeza que tudo isso exala, tristeza-saudade, ansiosa e vaga; um não sei quê me encanta e faz mal…
A quinta da Ribeira Formosa foi cuidada e linda há… mil anos, quando aqui passei parte da minha alegre e endiabrada infância. Hoje é quase um bosque abandonado que o calor e a seca deste verão ardentíssimo devastaram ainda. Não há uma flor. Muitas árvores morreram. Já não cantam as alegres levadas. Calaram-se as fontes. Na ribeira corre apenas um manso fio de água, mas, à sombra dos pinheiros, está-se bem ainda. O olival conserva o seu bonito loiro cendrado. A vinha enfeita-se de tons vermelhos e quentes.
Demoro-me aqui até quinze ou vinte. Depois vamos para a cidade. Em princípios de novembro estarei em Lisboa.
Hei de ve-la muito. Hei de… Hei de…
Deliciosa coisa fazer planos, embora eles se desmoronem como os castelos de cartas que Therezinha constrói ao meu lado.
In LUZIA, Cartas do Campo e da Cidade, Portugália Editora. Lisboa, 1923

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