LUZIA, escritora portalegrense

AQUI VENHO CONTAR-TE AS MINHAS AVENTURAS (E DESVENTURAS)



"Os homens fizeram as leis deste mundo, tudo a seu gosto. Eles são os senhores. Quando mesmo tenham menos talento, menos dotes do que nós, podem aspirar à Glória, ao Poder, a tudo. Nós, a nada. Para sermos alguma, é preciso ficarmos sempre simples mulheres.


Ne soyons rien pour rester quelque chose."

In FELICIANO SOARES, Luzia – Espectadora das Comédias do Mundo, citando Luzia, num excerto de Lições da Vida.

OS QUE SE DIVERTEM e RINDO E CHORANDO ainda não podem ser consideradas obras elucidativas da originalidade literária de Luzia, porquanto o não são, mas sim como exercícios de estilo exemplares onde a autora giza, delineia, aponta e estabelece os pressupostos gerais do seu discurso, que assim é sujeito a uma depuração contínua através da repetição exaustiva, até este se transformar no diamante lapidado cuja mestria de excecional ficionista é observável em ALMAS E TERRAS POR ONDE EU PASSEI, A ÚLTIMA ROSA DE VERÃO e DIAS QUE JÁ LÀ VÂO, que esses são, pois, indubitavelmente livros da sua inconfundível maturidade literária e peças únicas e raras da genialidade da literatura portuguesa de todos os séculos.

Os diálogos, os sketchs, as cartas de Gracinha, por exemplo, os retratos do pitoresc
o cotidiano, os tipos da fauna social elitista lisboeta, que inicialmente evidenciam uma notória influência idealista, sobretudo nos rasgos de denunciada candura de ingénuo teor platónico, em que o masculino e o feminino se encontram destrinçando as essências do amor e da amizade, a natureza da solidão ou da mundanidade solitária, não escondem a sua típica expressão de tentativas socializadas de uma escrita que, marcada pelas desilusões da vida ou do confronto com a realidade, se vai aperfeiçoar, refinando evoluindo a passos largos para outros diálogos a que a distância, a vagabundagem entre lugares e épocas, e seu concomitante isolamento emprestaram um timbre de monólogos – diálogos de si para consigo – mais ou menos quixotescos, mas indubitavelmente cerzidos com as linhas de uma teia de pessoa a braços com a originalidade solitária que a orfandade tornou única, entretecida e escorando-a vida fora, é certo, embora acrescentando sempre novas modalidades ao orfanato original (materno e paterno), das quais, a últimas, até a tornou órfã de si mesma, com a perda de vista, que não só a amputou da observação dos outros e do mundo, como a impediu igualmente de se ver entre eles e nesse mundo, num isolamento infinitamente ímpar a que só a memória – enfim, preclara no Jornal ou Diário – permitiu aquela ligação essencial à vida e ao ser humano sem a qual a pessoa deixa de existir, nomeadamente para o seu autor ou criador, desde que espelhada (narrada) pelo discurso de um pseudónimo.

Os diálogos são a matriz do discurso luziano. É neles que Luísa inicialmente regi
sta o seu testemunho e observações acerca da vida, das coisas, das ideias, da natureza e do mundo. É neles que ensaia e reflete os seus relacionamentos e afetos, pelo menos enquanto há alguma relação de proximidade e convívio entre si e as pessoas representadas, a que supostamente dá outra nome que não o da sua realidade. Mas essa proximidade, como aliás todas as proximidades, é efémera, breve, limitada, passageira... Portanto, ocasiona que Luísa (ou Luzia) sinta necessidade de prolongar o contato mesmo para além da proximidade, quando a distância a separa delas e se torna incontornável. Como? Escrevendo cartas, se se dirige a uma só pessoa, que Luzia transforma em personagem, ou crónicas, artigos, quadros, bilhetes-postais, quando se quer dirigir a várias, díspares e diversas mas que podemos referir como uma só pessoa coletiva, o destinatário, leitores e leitoras, alvo preferencial de todas as escritas.

Recordemos a este propósito O ESTILO EPISTOLAR DE GRACINHA, que integra OS QUE SE DIVERTEM.

"Lisboa – Março de 1920.

Minha querida Ritinha

Aqui venho contar-te as minhas aventuras, nesta grande capital.
Isto vai por cá uma trapalhada, uma desordem que ninguém se entende!
Na rua andam esquadrões de cavalaria, a correr atrás da gente e diz que é por causa das bombas, que atiram os civis da construção, que são os que querem dar vivas à Rússia e o sr. Batista, que é um gordo, que leva tudo à valent
ona, não quer que eles dêem vivas e eles então deitam bombas, que caem em cima dos cavalos e essa é que é a minha aflição, que já ontem ficou um ferido numa patinha.
E além da questão social, que é o perigo bolchevista de virarem o mundo de pernas para o ar, acontecem todos os dias coisas esquisitas.
Esta manhã, a mãe, que tem aquele génio que não gosta de incomodar os seus criados, quanto mais os alheios, mandou-me entregar uma carta à tia Thereza, que mora aqui defronte, numa casa cor-de-rosa, que tem um jardim e muitas trepadeiras. Eu então pus o chapéu da quinta, aquele que é todo cheio de papoulas encarnadas e
fui entregar a carta...
Depois, como a manhã estava tão bonita que até a cidade parecia um campo, apeteceu-me passear na rua. Então um senhor de uma certa idade, com um ar assim muito respeitável e muito bem vestido, com luvas cor de canário e umas botas que luziam que nem um espelho, começou a seguir-me...
Eu parava, ele parava, eu apressava o passo, ele apressava o passo e eu sempre a voltar-me para trás a ver se ele vinha e quanto mais eu me voltava, mais ele se aproximava, até que veio ao pé de mim e disse-me:
– Permite que a acompanhe?
Eu antes queria ir só, para poder parar à minha vontade a ver as coisas, que é muito divertida uma rua de manhã; há as varinas, que são as que apregoam a pescada, numa voz muito bonita, mas tão triste que até parece que vão chorar e o tio Jorge diz que é por causa da melancolia nacional; e as mulheres da hortaliça, que são as que vendem os legumes; e o homem do azeite doce; mas a mãe recomenda-me se
mpre que seja atenciosa com as pessoas de idade, porque pode acontecer que a gente envelheça um dia e então eu respondi: – Se não lhe dá muito incómodo...
O senhor até se fez vermelho e exclamou: – A menina bem vê que nisso está a minha ventura!...
E depois disse muitas coisas, sempre com todo respeito... Chamou-me flor, jóia, que se eu correspondesse ao seu afeto, a sua generosidade igualaria os meus encantos...
E subimos e descemos umas poucas de vezes a rua. E como eu ando muito depressa, o senhor já assoprava de cansado. E perguntou-me onde vivia e eu disse-lhe que não era de Lisboa e ele perguntou-me se eu gostava de Lisboa e eu respondi: assi
m, assim, e ele aconselhou-me que viesse para cá, porque aqui tinha mais futuro, podia colocar-me melhor e que prometia a sua proteção e que me punha uma casa, se fosse da minha vontade... E depois, como eu já estava farta de correr, rua abaixo, rua acima, e o homem parecia que deitava os bofes pela boca, vim para casa e, já se vê, à porta disse-lhe: – Se V. Exa. quer entrar...
O senhor respondeu: – O quê, será possível tanta ventura? – Mas depois, pôs-se a olhar muito desconfiado para o jardim, para a casa e perguntou ao guarda-portão: – Quem mora aqui? – E quando o guarda-portão lhe disse o nome da tia Maria do Céu, o senhor tirou o chapéu, com um gesto muito comprido, quase até aos pés, e tão vermelho que até imaginei que o sangue ia espirrar-lhe pelo nariz, disse: – Perdão, minha senhora. Foi um lamentável equívoco!
Depois, ao almoço, a mãe ralhou comigo por eu me ter demorado tanto e então eu contei que tinha andado com aquele senhor e que não o podia deixar assim de repente, que era uma desfeita, e a tia Maria do Céu disse:
– Bem-feito, que eu já te recomendei tantas vezes que não deixes a pequena sai
r só...
E a tias Mariquinhas, que é a que doirou o tio Paulo quando casou pela conveniência – chama-se casar pela conveniência quando uma mulher é assim um estafermo e tem automóveis e oiro e então casamento de amor é casar com um pelintra e ir viver na cabana do Pinheiro –, mas então a tia Mariquinhas resmungou: – A mim nunca me seguem... – E o tio Jorge disse, assim entre dentes: – Pudera... E o tio Paulo disse que o senhor era o Sátiro... E depois todos riram...
E, depois, eu e a minha mãe fomos a casa da senhora triste, chamada Josefina, que estava pondo rosas brancas dentro de copos e a cara dela estava assim tão branca como as rosas e como a gente está habituada à tia Maria do Céu, que põe aquela
s pomadas encarnadas nas bochechas, até fazia aflição e parecia que ela não tinha pinga de sangue e que ia morrer ali mesmo, com as mãos a mexer nas rosas...
E estava lá um homem muito alto, muito trigueiro, com uns olhos claros que não dizem com a cara escura, mas, ao mesmo tempo, se alguém lhos tirasse, eu pedia que os pusessem lá outra vez, porque apesar de não dizerem, ficam-lhe bem, e que já deve ter idade porque tem o cabelo a embranquecer nas fontes, mas quando ri, parece que não é, e então ninguém sabe se é... E a mãe disse para eu o chamar tio Pedro...
E depois, a mãe e a Josefina começaram a falar de quando andavam num convento, que a República deitou ao chão e duma cerca, onde havia rosinhas de todo o ano e duma capelinha, onde punham lírios, e de mais coisas, e riam com os olhos cheios de lágrimas, que até me lembrou aquela trapalhada do mês de abril, quando chove e faz sol ao mesmo tempo...
E eu cá estava a olhar para o tio Pedro, porque me faz uma confusão a
queles olhos azuis naquela cara que parecia assim quando as pessoas andaram no campo, sem chapéu, e então ficaram todas queimadas e assim uma espécie de doiradas... E depois, o tio Pedro disse à mãe e à Josefina:
– Falem à sua vontade e não se importem connosco, que nós também temos muito que conversar...
E não fez como os outros, que falam só em coisas que não me interessam, nem entendo, perguntou-me primeiro de que eu gostava, e eu então disse que gostava de cães e de cabras e de cavalos, e de pessoas que têm infelicidades, e de campos, e de águas, e de ouvir histórias de terras onde se vai por mar...
E ele então contou-me que tinha corrido muitas terras dessa qualidade, quand
o era oficial de marinha e que agora já não era, porque a República embirrava com ele ou ele é que embirrava com a República, porque a República tinha indisciplinado a marinha, ou a marinha tinha indisciplinado a República, isso é que eu já não me lembro bem como foi, e que tinha estado no Japão, onde há mulheres iguais às das jarras chinesas, mas verdadeiras, que andam e comem arroz e as cigarras sempre a cantar e as cerejeiras sempre em flor... E tudo muito poético... E depois, na Índia onde há leões bravos, sem ser em jaulas como os do Jardim Zoológico...
E quando ele falava, eu não podia tirar os olhos daquela claridade azul, que são os olhos dele – felizmente que é costume cá de Lisboa a gente pasmar uns para os outros, senão o tio Pedro havia de achar esquisito, mas é verdade que ele também olhava para mim, assim muito terno, como a dizer aos meus olhos: – Não façam cerimónia... Deixem-se ficar...

E então estávamos todos muito bem...
Mas nisto chegou a tia Thereza, que mais parecia um tufão e disse: – Viva a bela sociedade! – E depois, nunca mais se calou, muito excitada, por causa da carestia dos géneros, que são os objetos e outras coisas, e que ninguém devia furar a greve dos consumidores e que até era patriótico, e que então ela, parta não furar a greve, só tinha mandado fazer três pares de sapatos, e para aproveitar uma renda, que tinha em casa, ia comprar seis metros de cetim e para aproveitar o forro do casaco, ia encomendar um tailleur de que não precisava, mas era só por causa da economia do forro e para fazer pirraça ao comércio, e que assim é que todos deviam imitá-la.
E agora tenho que deixar-te, porque a mãe diz que estou sempre a escrevinhar e que faz ideia das tolices que aqui vão, porque ainda escrevo pior do que falo.
E então recebe muitas saudades que manda a
Gracinha

Março, 1920. "


AQUI VENHO CONTAR-TE AS MINHAS AVENTURAS é como uma fórmula universal que atira o leitor para fora do texto. A partir daqui fica-se a saber que vamos contatar com grandes e inimagináveis odisseias, impensáveis peregrinações, descobertas ímpares, viagens fantásticas – maravilhosas, horrendas, fabulosas, oníricas ou profundamente humanas e dolorosas –, como a arriscadas e sublimes missões, além das demais demandas que ao espírito humano é propiciado desfrutar e sofrer, sejam elas à volta de casa, rua abaixo, rua acima, como em toda a costa mediterrânea ou na rota das especiarias, ao fundo do mar como às cidades invisíveis de Marco polo, à Utopia como à Ribeira Formosa, à Cidade do Sol como à Serra de Portalegre, a Pau como ao Jardim do Mar, à Rua Direita ou ao Chiado, à Ibéria quixotesca como à Paris da moda e das fadas dos bulevares, à familiar Rua do Lá Vai Um como a Cascais da elite e da aristocracia. E Luzia fá-lo como quem vagabundeia, sobretudo na língua e literatura portuguesa, ora acompanhando Almeida Garrett em viagens à nossa terra, ora encetando outras rotas com Fernão Mendes Pinto e o tio Pedro, D. Quixote, Cândido (ou Pangloss de Voltaire), o mercador de Veneza, o Amadis de Gaula, Jacinto da Cidade e as Serras, a Menina e Moça de Bernardim, os infernos de Dante e da neurastenia, a loucura de Erasmo de Roterdão ou a dos convivas de Hameau e do Colégio das Salesas; todavia sob o testemunho, ilustração e o relato que Luísa Grande terá esboçada anteriormente no seu diário de bordo, qual capitão-de-fragata que ao deus-dará da vida, ora se perde como se encontra na busca dos tempos perdidos desenhados como dias passados e que já lá vão na correnteza dessa água que é sempre outra dum rio inalterável: o tempo.

Por isso as suas epístolas são mais que simples cartas entre personagens ou entre narradora e seus parceiros de espaço-quando: são recados, balizas, aditamentos ao futuro de um passado ancestral que ambas (Luísa/Luzia) herdaram, povoado por homens e mulheres de autenticidade inegável como a seres fabulosos de não menos e inegável pertinência e atualidade. Porque foram sobretudo eles que atravessaram o tempo e os tempos (passado, presente e futuro), divertindo-se e jogando, livres e intocáveis, enquanto a elas só estiveram reservadas a dor e as rezas, o assinar cheques e escrituras, letras a pagar e penhoras, sem mais nada de seu além do sonho e da fantasia, da imaginação das fadas e das deusas – quer dizer, estátuas – do jardim da quinta alentejana (Vénus e Minerva), a quem a primeira terá ainda feito uma visita ao Jardim do Mar para salvar a sua protegida do exílio e da solidão avassaladora, nesse primeiro inverno que passou na Ilha.

Passou, quem? Luísa Grande ou Luzia? Tanto faz... Enquanto uma escrevia a outra vivia, sim as aventuras que somente aos homens estavam reservadas a serem vividas, pelo menos a dar fé no que nos resta depreender de suas Lições de Vida. Porque o que conta em literatura é a intenção literária e estética da linguagem, do discurso, da poética e da narrativa, pois tudo o mais são tão-só palavras, todas elas muito bem esclarecidas e alinhadas como podemos constatar em qualquer dicionário, ou as construções frásicas de podemos encontrar muito mais perfeitas, explícitas e exímias noutras tantas gramáticas – mas apenas palavras. E dessa intenção está a obra de Luzia repleta, até nos espaços entre elas, as palavras, e alinhadas muito para lá de suas linhas... Sim, nas entrelinhas que se cruzam connosco e com o nosso tempo em ponto cruz de maiores tapeçarias!


Portalegre, 15 de abril de 2012

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