SÓ OS ANIMAIS É QUE NÃO PODEM ERRAR
Ou
ASSIM HAJA BILHAR QUE TACOS TRAZEMOS NÓS




“Este grande e verdadeiro anfíbio cuja natureza lhe permite viver não só em diversos elementos, como as outras criaturas, mas também em mundos divididos e distintos” (in Sir Thomas Browne, Religio Medici), tem quinhentos que não dá pra trocar por miúdos, em duas ou três larachas e parábolas.   

No dia em que Tracy Chapman e Carlos Paredes atuaram no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, eu não estava lá. Não assisti, não vi, nem ouvi, mas reconheço que ter Tracy escolhido Paredes para tocar na primeira parte do seu concerto na capital portuga, depois de ter atuado no ano anterior (1988) em Paris, Roma, Barcelona e Londres com Sting, Peter Gabriel, Youssou N’Dour e Bruce Springsteen, a favor da Amnistia Internacional, ter-me-ia valorizado muito, e subido a fasquia no reconhecimento (público) pelo meu bom gosto, mas principalmente na autoestima. Lamento, lamento, contudo a vida é assim mesmo, e lamento-o com bastos «mea culpa», «mea culpa», de arrefinfar punhadas na peitaça. Não fui, baldei-me, recusei a mim próprio tamanha prenda – o que faz de mim um sujeito muito menos prendado do que podia, de fato, ser. E com todos os realmente que lhe vêm anexados!

A marmelada maior, foi ter sido obrigado a ouvir os dois durante todos os santos dias desse (longo e frio) inverno no café das minhas assiduidades e carraspanas, uma vez que o empregado de balcão, com (legítimas) pretensões DJ, tinha ido, e, pasme-se, não só ficara deliciado e contente com a epopeia, como comprara as gravações em cassete áudio e vídeo, para recordar exaustivamente, repetindo a dose várias vezes ao dia (e da noite), primeiro por ela, de quem era fã ferranho, pela voz, essencialmente, que lhe enchia os tutanos de um formigueiro gostoso, eufórico e ufano, e depois, por ele, por afinidades ideológicas, políticas e partidárias. Era um tempo danado e não havia nada a fazer, que quem mandava na grelha era a classe operária, não obstante o Camilo José Cela ter abichado o Prémio Nobel da Literatura, e os outros galegos que moravam nas redondezas também o terem celebrado orgulhosamente, alguns até com foguetório e bivaques ao ar.
 
Ora, como estais gregos de saber, estas arrelias traumatizam qualquer um, sobretudo se ele é estudante aficionado, daqueles que faz do café mais próximo da escola (em que está matriculado) a sua sala de convívio, de estudo, refeitório e, inequivocamente, também de sala de aula, as mais das vezes, e onde reconhece in loco e com conhecimento de causa, que para quem quer ser alguém nesta vida não basta estudar e ter ótimas notas, pois para alcançar os mínimos para ir ao concurso ele devia já ter sido muitas outras bagatelas antes, tudo coisas que ele nunca poderia ter sido, pela idade e adolescência, a não ser criança, o que, à época não era lá grande “carta de recomendação”, uma vez que as ditas (crianças) não tinha demais direitos, além do de falar, mas só depois da mulher da limpeza (que por sinal abundavam com carteirinha e habilitações mais que suficientes para tal). E desse currículo, o presente vivo e atualizado era exatamente o dito Camilo laureado, nesse ano da graça de 1989, posto que seria escritor, é óbvio, mas também fora antes soldado profissional, toureiro amador (porém com carteira do sindicato), funcionário público, pintor, periodista, crítico, opinion maker e ator de cinema.

Acham pouco? Até para ser músico só o seria quem tocasse no mínimo sete instrumentos, ou na falta, só um mas que valesse por sete. E nisso nada mudou, nem mudaram os tempos com o tempo, que hoje é exatamente a mesma coisa. Só vai para televisão, revistas, certames, semanas pedagógicas, fóruns e jornais, quem já foi muitas coisas exceto aquela pela qual lá vai dar o seu contributo à rés pública… Todavia, essas sumidades de (in)notória excelência, nas anteriores atividades eram (invariavelmente) profissionais, assertivos e rigorosos, que naquela para que foram eleitos (convocados) podem dar-se ao luxo de serem apenas amadores – e humanos, para poderem errar à vontade, já que errare humanum est. E para isso, já não precisam de ser ou ter sido outras coisas? Isto é, para tudo, em Portugal, para ser-se seja o que for, é necessário ter-se sido outra coisa ou muitas outras, mas nunca aquela que quer e está a ser… Grande universidade é o bilhar às três tabelas!
  


“Dir-se-ia que não há agente mais eficaz que outrem para nos fazer dar vida ao nosso universo ou para, com um olhar, um gesto ou uma observação, demolir a realidade de que nos tínhamos cercado”, como salientou Erving Goffman. 

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