LUZIA   NO   REINO   ENCANTADO
DO RECONHECIMENTO LITERÁRIO


"Sim, eu amo os livros. Mais do que tudo na terra? Talvez... Eles têm sido os meus grandes, os meus fiéis, amigos. E realmente há-os espalhados por todo o quarto, sobre as mesas, sobre o fogão, sobre as cadeiras, brochados, encadernados, abertos numa página mais querida, de folhas cerradas, guardando algum mistério, alma, perfume que ainda não se revelou."
In LUZIA, Almas e Terras Onde eu Passei, Edições Europa, p. 52. Lisboa, 1936



O REINO ENCANTADO DE LUZIA
A crónica da vivência e a eterna busca do “Eu”
CLÁUDIA SOFIA SILVA NEVES
Dissertação de Mestrado em Estudos Linguísticos e Culturas
UNIVERSIDADE DA MADEIRA
Novembro de 2012



     Não obstante as múltiplas contrariedades e as investidas dos setores mais preconceituosos e fundamentalistas da sociedade portuguesa, em geral, e portalegrense, em particular, nomeadamente a fina flor dos intelectuais que capricham em fazer vista grossa à condição feminina, o que é certo, é que Luzia, pseudónimo de Luísa Susana Grande de Freitas Lomelino, natural de Portalegre, continua espalhando luz e disseminando a sua obra, rompendo o bloqueio obscurantista de que foi alvo, e foi, desta vez, objeto de estudo e motivo de dissertação de mestrado na Universidade da Madeira, na qual e a propósito, importa referir, consta como referência o artigo publicado nesta revista, no nº 5, de maio do ano passado, intitulado Do Verbo Andarilho das Fadas de Portus Alacer.
A dissertação em causa, de Dra. Cláudia Sofia Silva Neves, merece na verdade uma referência de excelência, não só por nela ter sido abordada toda a problemática inerente ao tempo, obra e vida da escritora portalegrense, sob a perspetiva académica em Estudos Linguísticos e Culturais de O Reino Encantado de Luzia: A Crónica da Vivência e a Eterna Busca do "Eu, que foi defendida com êxito e galhardia exatamente no dia 15 de fevereiro de 2013, data de celebração do nascimento da Luísa Grande, a que foi atribuída a nota final de 18 valores, mas também – sem qualquer hesitação ou risco de incorrer em equívoco – por ser o mais sério, completo, honesto e escorreito estudo até hoje feito sobre esta "polémica" personalidade das letras nacionais. Além de aflorar convenientemente a bibliografia da autora, ter em consideração os mais reportados textos sobre ela, analisar o seu discurso e quadro mental que o sustenta, ou condicionou, cruza e fundamenta sem afetações toda a gama de conjeturas e saberes que assistem à criação literária com expressão feminina num mundo que sempre lhe foi, até aí, hostil, adverso, bem como "quase" vedado, no que desde então e até agora, assim continua em muitas sociedades, embora os anos 60 tenham arroteado o campo para uma libertação possível que abalou sobremaneira as raízes fundamentais e alicerces da desigualdade de género.



Escrever sobre a vida de uma autora, da sua obra, das caraterísticas do seu discurso, das circunstâncias sociais, históricas e ambientais que o balizaram, das relações que estabeleceu com os demais autores de então, do pensamento individual e da época, de uma forma simples e aprazível, sem resvalar no jargão da técnica e da crítica soeiras, é uma tarefa assaz difícil, senão impossível, nos meandros academistas; contudo, a recém-formada Cláudia Sofia Silva Neves, fê-lo com êxito. E fê-lo com desenvoltura, com empenho, com a sagacidade desafetada de quem sabe com que linhas se cosem e entretecem as almas avulsas, humanas e sofridas, ainda que essa alma a que particularmente se refere esteja retalhada pelas brechas existenciais, pelas diatribes da vida, e tivessem estas sido suturadas, cerzidas, pelo indesmentível apego ao livro e à coisa literária, cimentadas nos produtos da cultura, do conhecimento, da civilização e do pensamento do seu tempo, e anterior a ele, com que reforçou positivamente a vontade e qualidade de vida dessa portalegrense do mundo que viveu também na Madeira, mais propriamente no Funchal, terra onde veio a falecer nos meados do século passado. Atitude e registo para os quais muito terão contribuído, saliente-se, o seu percurso formativo, em psicologia, que aliou à vocação inicial das letras, línguas e literaturas, conduzindo-se paulatinamente e investigando na área da biblioterapia, que, tal como o termo indica, se debruça e utiliza o livro para dissolver e deslaçar as facetas da rigidez caraterial que se tornaram patológicas, [posto que esta é, tal como existe desde a Antiguidade, "um método que utiliza a leitura, bem como outras atividades lúdicas a ela adjacentes, para o tratamento de pessoas acometidas por alguma doença física ou mental, e composta por quatro fases distintas: assimilação do personagem, projeção/transferência, catarse e insight", conforme afirma Geyse Maria Almeida, do Departamento de Biblioteconomia da Universidade Federal de Amazonas.]      
   
Com uma estrutura lúcida mas aberta, objetiva mas abrangente, determinada mas flexível, esta Tese de Mestrado abarca diretamente a obra de Luzia, e indiretamente a vida de Luísa Grande, atendendo sobremaneira às particularidades existenciais da motivação e simbiose com o meio sociocultural, traduzindo não só o que sensatamente todos podemos observar e pensar sobre a obra e escritora em causa, mas igualmente tudo quanto as potencialidades e recursos que versam as questões culturais e linguísticas indicam, tornam evidente, esclarecem e dão argumento válido à necessidade de recuperar para a ordem do dia, uma personalidade ímpar das nossas letras, que forças ocultas se têm empenhado em manter no olvido e negação, emprestando-lhe aquela sensibilidade feminina que outorga a empatia para evoluir e se justificar na mesma circunstância psicobiológica, numa perspectiva particularmente salutar e de convívio imaginário, literário, ficcional, cujos reflexos se evidenciam, incondicionalmente, em trabalhos desta natureza.

Estrutura que, gizada sob a orientação de Luísa Maria Soeiro Marinho Antunes Paolinelli, docente da Universidade da Madeira, não só pretende responder à questão de «quem foi Luzia?», como lhe traça os percursos biográfico e literário, o impacto social desta e de sua criação na sociedade da época, envereda pelos e acompanha os seus vagabundeares, se hospeda e habita a sua solidão, dá a conhecer o jogo ilusório de ser/parecer que caraterizava a sociedade portuguesa de então, e reporta as paisagens físicas/territoriais e mágicas que essa fada, mulher, escritora e filantropa atravessou com a verticalidade de uma excelente e autêntica Senhora, mas a quem a morte infligiu também o consentâneo apagamento e irradicação da sua presença dos cânones e compêndios literários patrióticos. Bem como propõe Luísa/Luzia enquanto exemplo de mulher e escritora que, não obstante desde os primeiros anos de vida se tenha apercebido na pele e da pior maneira de como esta é efémera, contatando a doença e a orfandade, se escorou e apoiou na leitura e na escrita para se alicerçar à realidade, e fixar as nuances da existência, denunciando, rindo, chorando, errando pela alma das gentes e dos lugares, reabilitando-se e reabilitando-as, fazendo da fraqueza força, pondo a nu e em carne viva aquilo que a crosta da hipocrisia social (e individual) insistia – e bastantes vezes, conseguia – tapar das consciências resistentes, adultas, emancipadas, ou seja dos leitores e leitoras cuja resiliência se não esgota, nem deixa intimidar pelas vontades e desígnios obscurantistas de ontem, como de hoje, tanto continentais como insulares.



Cláudia Sofia Neves nasceu em Vila Nova de Gaia, 07.05.1984, terra onde viveu e estudou até aos 27 anos, e só tomou conhecimento desta escritora quando chegou à Madeira, mais propriamente nas aulas do mestrado em que ingressara em 2010, o que faz dela uma pessoa insuspeita de interesses no âmbito do marketing territorial, turístico e cultural, económico ou familiar, ideológico ou político, e apenas motivada pela paixão antiga, de adolescente, pelas andanças da leitura e da escrita, que cultivara a par duma outra não menos nobre, que era/é a dos animais, causa de que Luísa Grande foi igualmente defensora, tendo sido uma das primeiras sócias da Protetora dos Animais, em Portugal (“Pertenço a todas as associações desde a S. Vicente de Paulo, para acudir à pobreza envergonhada, até à Protetora dos Animais, que tem por presidente Miss G.”  – In LUZIA, Cartas do Campo e da Cidade, Portugália Editora, pág. 173. Lisboa, 1923).

Essa afinidade, porém, é de pouca monta, considerando que o seu estudo vai muito para além da valorização dos textos, da interpretação subjetiva e identificação ética ou estética. Porque também os analisa, incorpora nos movimentos vizinhos e qualifica nos possíveis enquadramentos teórico e histórico literários. Não se deixa ficar pela visão da parte, mas antes a vê em relação ao todo. Não confunde a primeira com este, nem permite que a visão do todo obstrua a visibilidade da parte. Não desenraíza Luzia do seu tempo, mas também não a obriga a estagnar nele. Dá-lhe espaço, abre-lhe portas de interpretação, oferece-lhe caminhos novos para o seu vagabundear, contudo não lhe impinge a bússola do feminismo antropocêntrico, ou seja, aquele feminismo que faz com que algumas mulheres se libertem da sua condição imitando os homens – coisa a que ela foi sempre contra. Desconstrói, mas não julga. Desmonta sem jogar preconceito nem entabular coscuvilhice. E demonstra que para criticar, estudar, interpretar, analisar, valorizar, ler e servir-se de um escritor, ou da sua obra, não é imprescindível violá-lo no seu pensamento e dignidade de criador, ou sujeitá-lo a espartilhos e modelos escolásticos formatados para o fast-food da literatura de transportes públicos e balcões de centro comercial. Respeita-a, operando-lhe as vísceras do discurso sem ferir nem fazer sangue, ainda que metafórico. E prova que este interessa também à gente nova, não unicamente aos saudosistas e dinossauros da arqueologia da literatura portuguesa.



Essa “eterna busca do eu” que fez de Luzia uma andarilha do mundo, continua a movimentá-la entre nós, entre a sua gente, incluindo quantos e quantas que propositadamente a desconhecem e votam/condenam ao ostracismo, entre os portugueses, sejam madeirenses ou portalegrenses, e a empurrá-la pela sua constante insatisfação, consequente ao enorme sentimento de injustiça a que o destino a votou, e nos enredou, como a melancolia do fado e a angústia existencial comum, comprovando uma vez mais quanto qualquer viagem é igualmente todas as viagens, e o viajante todos os viajantes, na peugada da identidade própria, que, exatamente por isso, ou apesar disso, nunca é um fim em si mesma, mas o princípio poderoso, eficaz, suficiente, transmutável, com propriedades heurísticas e histriónicas, motivadores e capazes para gerar uma obra, isto é, uma vida, ou uma biografia irrefutável. À imagem, enfim, dessa criadora que aos dez anos já estava de luto carregado e era herdeira de uma fortuna considerável, que cruzou os mares e os tempos com essoutra inseparável companheira que foi o seu pseudónimo, com ela, quiçá, iludindo a imensa solidão dos que despertam entre sonâmbulos e incompreendidos e anónimos que naufragam na multidão dos acasos, mas nunca baixou os braços, nunca atirou a toalha ao chão de forma definitiva, nem mesmo quando a falta de vista a impediu de ler e escrever, procurando e arranjando alguém que a ajudasse na tarefa de registar a sua passagem pela terra sob os auspícios da estética, da arte, da língua portuguesa, da portugalidade e de um elevado sentido humanitário. Porquanto a principal evidência dos efeitos e consequências de sua tenacidade e determinação é, pois, este volume de 140 páginas, a que não faltam um glossário de estrangeirismos e um levantamento de autores e/ou obras do seu universo intertextual, como mapa de outras viagens que a autora igualmente empreendeu, visitou, através dessa outra forma de viajar que é a leitura (de incontornável compreensão).

Enfim, é uma tese que constata, e não condena. Persegue a obra, mas liberta a mulher. Subscreve o feminino, e acolhe o maravilhoso, o encantamento, com uma única poção mágica: a da empatia, do entendimento, da cumplicidade. Todavia, sempre com conhecimento de causa, socorrendo-se do testemunho de quantos e quantas anteriormente percorreram o mesmo reino, como Fernanda de Castro (Ao Fim da Memória), Hernâni Cidade, José Martins dos Santos Conde (Luzia, o Eça de Queirós de Saias), Visconde do Porto da Cruz (Notas & Comentários para a História Literária da Madeira), Anne Martina Emonts, Susana Hoe, Ricardo do Nascimento Jardim, Ana Maria Costa Lopes (Imagens da Mulher na Imprensa Feminina de Oitocentos), Luísa F. Lopes da Silva (Roteiro e Subsídios para a História da Cidade de Portalegre), Feliciano Soares (Luzia – Espetadora das Comédias do Mundo – inédito), Luís Forjaz Trigueiros, Fausto Correia Leite (Lados da Vida, peça radiofónica da Emissora Nacional/Antena 1), Teresa Leitão de Barros, etc., etc., que figuram entre os muitos que a Luzia se referiram, e os que melhor, de alguma forma, a caraterizaram, ou ajudaram a caraterizar, alinhando as referências bibliográficas pela bitola da credibilidade garantida, o que alarga consideravelmente o lastro de suporte documental que assiste, ou deve assistir, a todo e qualquer trabalho deste quilate e nobreza.      
              

Joaquim Castanho 

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