FÉ 

A impertinente Felicidade, que ainda é jovem mas se não chama também Maria, estava, num dia assim, exatamente como hoje, fazendo nada, com todo o cuidado e esmero, que é coisa mais difícil de fazer do que qualquer outra que se conheça, quer por experiência tida, como contada, exceto esquecer, pois que para isso, se exige muita perícia na escolha e abnegação na armazenagem, caso contrário, a gente fica a esquecer aquilo que quer recordar e a lembrar tudo quanto importa esquecer.

E do nada surgiu uma flor. E depois um rosto, que embora de corpo oculto, já se lhe podia vislumbrar o espetro das mãos. Precisamente como se fosse um sol incrustado no horizonte da tarde ou uma lua pendurada da noite, suspensa por invisíveis e misteriosos fios (da trama suspeita e, às vezes, até tenebrosa, dos sonhos, que são sempre desconhecidos por nós nela, como pelos efeitos de ressaca com que desassossegam os espíritos, os corpos e as culturas, a que à imaginação e fantasia não têm muita afeição). 

Creio que era um lírio, uma açucena... 

Ante a brisa estremeceu breve. Pulsou num esgar sob as gotículas do nevoeiro vespertino, sorriu para o nada da menina que, encantada com o tamanho prodígio desse nada que lhe foi tudo, suspirou profundo, estremunhada, e cochichou  murmurando para consigo mesma: «Nestes momentos, coisa nenhuma do que me parece é; e, contudo, sem eles nunca serei.» 

Felicidade, quis eu chamar-lhe. Porém, ela metera os pés ao caminho...e, quando finalmente, proferi a primeira sílaba do seu no nome, ela já ia demasiado longe para me ouvir. 

Joaquim Castanho 

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