Lector in Fabula
"No máximo, existe apenas uma objecção, à minha objecção à objecção de Lévi Strauss: se até mesmo os reenvios anafóricos postulam cooperação por parte do leitor, então nenhum texto escapa a esta regra."
Umberto Eco
São partes essenciais do processo crítico, em literatura, desde que este esteja eivado de boa vontade e cooperação semântica, a interpretação, a análise e a valorização do texto, seja ele poema ou ficção, teatro ou ensaio. Todavia há pessoas, e que me desculpem a ousadia de chamar pessoas a este tipo de gente!..., capazes de avaliar a qualidade de um livro, sem que antes o tenham interpretado, muito menos analisado e nem sequer lido totalmente. Pegam num item do leque temático, em que mais à vontade estejam, aplicando-lhe seguidamente todo o seu saber sobre o assunto para, invariavelmente, sentenciarem de cátedra que os restantes capítulos estão a mais. Pretendem, não só saber mais que o próprio autor a propósito da obra, como também, e em superlativo grau, melhor desta acerca do autor ou como ele nela se revela. Melhor dito, já têm tantas ideias feitas acerca do quer que seja, que até para dizer mal de um autor e de suas obras, acham desnecessário pensar, ou procurar outras que pior digam, inovando assim o seu maldizer que apenas reflecte o seu não saber fazer, numa manifestação exemplar e típica daquilo que o povo português, sem eufemismos nem maneirismos de falsos católicos ou falsos ateus, empregando o vernáculo da sua estirpe vicentina, designa por dor de corno. A sinédoque é o seu cavalo de batalha, a ironia socrática o seu estandarte, o sofisma o seu florete, o tráfico de influências o seu escudo e a ignorância enciclopédica a sua estratégia contra toda e qualquer metáfora, ser estranho e extraterrestre ao seu linguajar narcísico, que tem por anáfora incansável o "ama-me" até parecer que sim, à força de tanta repetição, reproduzindo sobre os textos literários o modus operandi da política de massas, cuja propaganda, em mais não consistiu, do que usar o boato, a trocagem de dizer bem do que é mau, até que as estatísticas lhe confirmem os méritos e a sua eleição se verifiquem, demonstrando que o número, em vez de prova de quantidade, é prova de qualidade, pintando um arco-íris virtual e falso na sinestesia da sua existência(e obtusa alma).
Para estes críticos do quem não tem vergonha todo o mundo é seu ou água mole em pedra dura tanto bate até que fura, mas que substituíram a água pelo ácido corrosivo da sua bílis afectiva, a sua destilaria de venenos pessoais, sugando todas as relações para o canal único e edipiano, ou elétrico, do amor-ódio, a qualidade de qualquer manifestação artística reside exclusivamente no seu grau de parentesco ideológico com o autor dela, com a simpatia ou tesão que lhes desperta, e nunca da genialidade ou eficácia, rigor, mestria, domínio da técnica e recursos que a suportam e sustentam. E em face deles, confrontados com a sua evidência, recusam admiti-los, nem que para isso tenham que confessar que não compreendem, que são burros e desinteligentes, uma vez que estão tão habituados a corromper, a justificar com os fins os usos de qualquer meio, que até a si mesmos corrompem e usam, utilizam e violentam, desde que esteja em causa defender a sua causa. Transformar uma grande merda numa obra prima, é tão fácil para estes críticos, e amigos da onça, como fazer o contrário, que é do tornar numa bosta a melhor e mais sublime das criações.
Os clusters de estilo, aquelas ideias ou figuras chave – alegoria, parábola, metáfora, sínquise, imagem, metonínia, sinédoque, ironia, elipse, palimpsesto, etc. –, convenções semióticas ou sistemas semânticos, capazes de impulsionar a criação de conteúdos, estruturas sintácticas e moleculares, inovar dentro de um determinado formato ou modelo, não passam para eles de academismos ou deselegâncias de intelectual armado em sabichão. Pieguices do não-sentir as lamechices do seu contentamento, do seu corporativismo ou, ainda, falange de gosto. Não lêem, não vêem teatro, cinema, pintura, fotografia, não ouvem música, nem admiram a paisagem ou a natureza, a não ser que essas manifestações de beleza possam servir para debitar os seus preconceitos, empurrar a sua falua, rumo à foz dos seus anseios e maquinações, interesses e teses de competição, directa e indirecta.
Conforme salientou Umberto Eco, num outro estudo, acerca da Interpretação e Sobreinterpretação, coligido e dirigido por Stefan Collini (p. 34), é reconhecida geralmente a lenda do califa que ordenou a destruição da Biblioteca de Alexandria, advogando ele que ou os livros diziam a mesma coisa que o Alcorão, caso em que seriam supérfluos (palimpsestos), ou então diriam coisas mui díspares e diferentes dele, caso em que estariam errados como nocivos, pelo que se tornariam igualmente inúteis e cuja perda seria um notório ganho para a humanidade, como, aliás, de facto é qualquer mal intencionada mentira. Portanto, o califa, além de conhecedor da verdade, possuí-a, e achava-se no direito de julgar/avaliar os livros sob o "espírito absoluto" dela, que em si mesmo seria também uma verdade absoluta. Pertencia à noite dos tempos, embora fosse o que melhor aprendizagem usufruíra e o mais sagaz espírito do seu tempo, não dos anteriores nem dos que se lhe seguiram, e muito menos deste tempo que é nosso, enquanto efeito dilecto da modernidade...
Ora, sendo nós apenas leitores e não fazedores de literatura, por mais que nos queiramos impor sobre a informação – sem a adulterar... – veiculada nos textos, literários ou não, podendo eles ser tão-só simples documentos cuja informação está "criptada" numa determinada mensagem, somente essa e não outra qualquer que poderia ser mas não é, o que faz deles aqueles textos ou documentos, e não outros quaisquer, se quisermos descodificar os que eles contêm, que há-de sobretudo ser traduzível num produto cognitivo ou conteúdo cultural, posto que sendo conhecimento tácito será igualmente conhecimento explícito, se não nos outorgarmos outros califas destruidores de livros, teremos de cooperar com o autor dele, como seu codificador inicial, até já não precisarmos dos sinais e marcas que o definiram para o percebermos, pois que assim, grosso modo, estaremos então aptos a avaliá-lo de acordo com a sua lógica, sensatez e gosto explanados, utilidade ou bem-aventurança que manifestem, quer conforme o resultado que dele colhamos, quer pela utilidade ou conhecimento tácito que nos facultou e podemos dar à informação contígua, como pelo conhecimento explícito que nos transmitiu, ou pelo maquinismo com que apetrechou (ou não) a nossa estrutura mental, na medida em que a reforçou ou abalou, consolidou ou degradou, reparou ou abateu, preencheu ou feriu, em termos cognitivos e de superação da vida, o nosso ser, enquanto personalidade plausível de estar entre os demais e influenciável pelo que lhe (e lhes) acontece.
Interpretar um texto, significa explicar por que razões as palavras dele, não obstante poderem significar diversas e diferentes coisas, significam precisamente aquilo que significam, e não carecem de demais ou quaisquer significações para que o entendamos, posto que sendo ler não somente soletrar – Albert Camus, nos seus Primeiros Cadernos, afirmava até que ler é compreender e compreender seria criar, aliás, posição radical que aqui não é subscrita totalmente... –, na tentativa de reconstruir a intenção do texto, distante essa da intenção do autor ao fazê-lo, decifrá-lo enfim, descobrir e enveredar pelos sentidos dele, para preparar a releitura que, essa sim, estabelecerá outras vias de análise, de aprofundamento, de sobreinterpretação, onde se verão esclarecidas, por observância das intertextualidades e entretextualidades vigentes nele, os voilàs e dejà vus passíveis de facilitar identificações, projecções e transferências fundamentais à empatia, e que concorrem para que aquele texto que lemos seja igualmente o outro texto lido mas cuja experiência nos modificou, bem como à nossa maneira de o acatar e entender, sem deixar de ser o anterior nem descambar no simples palimpsesto do primeiro que lemos, seja ele excerto da Bíblia Sagrada ou do Alcorão, da Gata Borralheira, do Assim Falava Zaratustra ou de O Principezinho, ultrapassando definitivamente o "wo Es war, soll Ich werden" (onde era Isso, devo ser Eu) freudiano, envolvido afastamento mas essencial, para reconhecer que, independentemente dos sete sentidos de cada um – gosto, tacto, ouvido, cheiro, visão, propriocepção e empatia –, ou das sinestesias que suscitem, estarem positivamente activos e actuantes, servindo para recuperar o objecto desconstruído, alvo do nosso interesse (o texto, neste caso) e não para o danificarem pela utilização, talvez distorcendo-o sob a nossa intenção ao lê-lo, quiçá destorcendo-o dela em seguida, até já nada do texto restar como intenção de si ou da do seu autor, quando se propôs a redigi-lo que, sem dúvida, nem sempre coincide com aquela que ele espelha depois de pronto.
(Quadro de Ian Cox)
A fábula está aí. Essa é que é a verdadeira fábula em que o animal falou, humano que seja esse animal, artesão no menos, alquimista da palavra, se bem sucedido. E saltar para dentro dela, para ver claramente visto o que nela ocorre, deduzir do seu texto, além do pretexto também o contexto, permitir que da polissemia dos significantes nasçam os constructos semânticos que a identificam, fazem dela aquilo que deveras é e não uma outra qualquer, quebrando a cadeia de palimpsestos que a submergem, emergindo então ela original, se original for, eis então o trabalho do leitor que, finalmente, terá sobre ela o direito de valorização, condenando-a ou absolvendo-a perante os seus juízos e valores.
Agora, se ao entrar nela nos abstrairmos dele, se da fábula não descortinarmos o texto que a elabora, a executa, a realiza, sucumbindo apenas às (primeiras) impressões que nos suscitou, isso pode entender-se como uma leitura desnecessária, uma vez que nós a não queríamos conhecer mas usá-la, coisa que poderíamos fazer com qualquer outra que ela fosse, para nos relatarmos nela, descobrindo-nos nela, revelando-nos não pelo que ela é, e sim pelo que pretendemos que ela seja, tornando-a não um palimpsesto de si mas um palimpsesto de nós. O que irremediavelmente provoca que todas as histórias sejam a mesma história, atribuindo plena razão ao califa (sem dúvida leitor monomaníaco, fundamental adepto da percepção motivada) da Biblioteca de Alexandria, que a queimou por desnecessária, perante a relevância do Corão.
Como os animais, as coisas também falam... Incluindo as palavras, os números, o quotidiano, as cores, as condutas, os objectos, os sujeitos, a memória, a experiência, os símbolos, os sinais. A cultura é feita disso. A arte, também. Principalmente, a ficção e a poesia... O romance e a verdade. A fábula, como a doutrina que lhe subjaza. E ao transportarmo-nos para dentro dela, metemo-nos fora (metáfora) de nós. Os clusters de estilo, são portanto, nesse sentido, estratégias facultativas desse ínterim. Reconhecê-las, ser permeável a elas, é cooperar com o texto, com a intenção dele, como com a do seu autor, que as usou para o balizar, tornando-o naquilo que é, de entre tudo aquilo que ele poderia ser.
Discernir entre as hipóteses possíveis a mais plausível, ou verosímil, é por conseguinte, a mais rudimentar forma de ler, logo, de interpretar, embora esta se revele, assim, como uma maneira de enfabular a fábula propriamente dita, seja ela de cariz realista (caso de consciência, gesta, enigma, locução), seja ela idealista (mito, memória, traço de espírito, lenda ou conto de fadas). Narrativa ou poema. Documento ou informação. Contexto ou conteúdo. Enciclopédico ou semântico, visto ambos veicularem conhecimento, tanto tácito como explícito.
Tal como nos edifícios, perante tantas aberturas (janelas, varandas, sacadas, etc.), desde que neles queiramos entrar naturalmente, sem excentricidades saloias nem intenções malévolas de saqueadores nocturnos, a melhor e mais inteligente, ou expedita, forma de o fazer, é utilizar a porta da frente, se estiver aberta, ou, caso o não esteja, usando a respectiva chave para abri-la, também aos textos, enquanto fachada da mancha gráfica, lhe devemos aceder pelo mesmo processo: pelo item por onde melhor falam – que sempre é o que mais nos surpreende neles, ou aquela característica sua que mais alterada esteja em relação aos outros da sua índole, ou então, pelo contrário, por aquela semelhança tão exaustiva e evidente em relação a alguns dos seus pares que impossível se tona não reparar nela, logo às primeiras e diagonais vistas. E, no caso da fábula, pela fala do animal, que principalmente por ser uma das suas características alteradas e simultaneamente semelhantes, logo alternativa, visto ser a fala aquilo que antes estaria vedado ao animal (ou coisa, ainda apenas que personagem seja...), embora o faça com características tão iguais às da fala humana, que nos chega parecer que muito superior em humanidade é do que quando usada por essa espécie, no seu corrente dia a dia, onde apenas o conhecimento tácito da língua é revelado, facto pelo qual o identificamos ora por narrador, ora por alter-ego, ora por sujeito, ora por voz polifónica, ora por protagonista principal, ora por objectiva que nos filtra, como amplia ou minimiza, a realidade candente nela, que é enfim onde o animal mostra a face hiperbólica da sua natureza, as suas aspirações maiores, os seus feitos superiores, o seu habitat e comunidade, as suas mais fantásticas aventuras e relações, quer com tudo isso como consigo mesmo, incluindo o protocolo do seu relacionamento (hiperligação) com o divino, o onírico e o paranormal. E, grosso modo, com o leitor. O espectador. O olhar do outro que obrigou o autor a meter-se fora de si para facilitar a comunicação com ele.
Eco chamou-lhe leitor-modelo. Todavia, adiante se verá porquê, na geração do autor-modelo, inerente aos modelos literários (narrativos como poéticos) que formatam não só o género, como igualmente a modalidade discursiva (discurso). Por enquanto, a suspeita recai toda sobre a palavra (signo: significante e significado) e o seu crime hediondo que é o de invadir-nos e alterar-nos. Bala que entra em nós para estilhaçar-nos a alma, sem se importar connosco minimamente, nem como no-la deixa, se num vitral perfeito e magnífico a transforma, se num escaqueirado espelho que estonteante e assustadora imagem reflecte. Bala que seja, fala que indubitavelmente é, é através dela que a História se revela na história, quando ela é história palimpsesto, ou que a não-História se revela na história, quando ela é história elipse, por exemplo. Uma pela (às vezes exagerada) presença, outra pela (não menos notória) ausência. Digamos que se a fala fala, o silêncio é outro falar que, em comunicar, a iguala. Logo, igualmente bala.
Em Ian Cox, por exemplo, o céu é vermelho e chove sangue, mas palpita-me que seja apenas tinta de guache sobre papel. Para Eva De Mul, D. Quixote montado no seu rocinante de rodas recicláveis tenta combater as gigantescas centrais nucleares com o protocolo de Quioto, espelhando uma vez mais a sonhadora alienação do cavaleiro da fraca figura. Ziek funde analisador e analisado na mesma cadeira de baloiço ou sofá de psicanalista. Entre o ventre e o seu interior há um voilá a revelar-se na concretização do dejà vu com que se nasce. Ever Meulen não se coíbe de indicar-nos que o estilo é um pensamento especial que serve de combustível ao protótipo de corrida em que molhamos a pena. E os clusters de estilo são a fechadura na qual cabe a figura-chave que há-de abrir-nos a porta da fábula onde o nosso animal (alma, inconsciente, pátria, língua, etc.) nos ensina quem afinal somos. Portanto, se interpretar é entrar no texto, analisar é descobrir as ligações entre a chave e a fechadura, o imbricado jogo entre arestas e ranhuras, que provoca o clique para vermos claramente visto algo que apenas tínhamos a impressão (suspeita) que existia. E após isso, mas só após Ich, depois do animal que fala ter sido superado (Nietzsche) ou suprimido (Amélie Nothomb), só depois de termos desenleado o fio da meada, é que nos é legítimo avaliar se esta ou aquela obra é boa ou má. Mas, nunca antes!
(De Bloedregen, 1975, de Ian Cox)
Umberto Eco
São partes essenciais do processo crítico, em literatura, desde que este esteja eivado de boa vontade e cooperação semântica, a interpretação, a análise e a valorização do texto, seja ele poema ou ficção, teatro ou ensaio. Todavia há pessoas, e que me desculpem a ousadia de chamar pessoas a este tipo de gente!..., capazes de avaliar a qualidade de um livro, sem que antes o tenham interpretado, muito menos analisado e nem sequer lido totalmente. Pegam num item do leque temático, em que mais à vontade estejam, aplicando-lhe seguidamente todo o seu saber sobre o assunto para, invariavelmente, sentenciarem de cátedra que os restantes capítulos estão a mais. Pretendem, não só saber mais que o próprio autor a propósito da obra, como também, e em superlativo grau, melhor desta acerca do autor ou como ele nela se revela. Melhor dito, já têm tantas ideias feitas acerca do quer que seja, que até para dizer mal de um autor e de suas obras, acham desnecessário pensar, ou procurar outras que pior digam, inovando assim o seu maldizer que apenas reflecte o seu não saber fazer, numa manifestação exemplar e típica daquilo que o povo português, sem eufemismos nem maneirismos de falsos católicos ou falsos ateus, empregando o vernáculo da sua estirpe vicentina, designa por dor de corno. A sinédoque é o seu cavalo de batalha, a ironia socrática o seu estandarte, o sofisma o seu florete, o tráfico de influências o seu escudo e a ignorância enciclopédica a sua estratégia contra toda e qualquer metáfora, ser estranho e extraterrestre ao seu linguajar narcísico, que tem por anáfora incansável o "ama-me" até parecer que sim, à força de tanta repetição, reproduzindo sobre os textos literários o modus operandi da política de massas, cuja propaganda, em mais não consistiu, do que usar o boato, a trocagem de dizer bem do que é mau, até que as estatísticas lhe confirmem os méritos e a sua eleição se verifiquem, demonstrando que o número, em vez de prova de quantidade, é prova de qualidade, pintando um arco-íris virtual e falso na sinestesia da sua existência(e obtusa alma).
Para estes críticos do quem não tem vergonha todo o mundo é seu ou água mole em pedra dura tanto bate até que fura, mas que substituíram a água pelo ácido corrosivo da sua bílis afectiva, a sua destilaria de venenos pessoais, sugando todas as relações para o canal único e edipiano, ou elétrico, do amor-ódio, a qualidade de qualquer manifestação artística reside exclusivamente no seu grau de parentesco ideológico com o autor dela, com a simpatia ou tesão que lhes desperta, e nunca da genialidade ou eficácia, rigor, mestria, domínio da técnica e recursos que a suportam e sustentam. E em face deles, confrontados com a sua evidência, recusam admiti-los, nem que para isso tenham que confessar que não compreendem, que são burros e desinteligentes, uma vez que estão tão habituados a corromper, a justificar com os fins os usos de qualquer meio, que até a si mesmos corrompem e usam, utilizam e violentam, desde que esteja em causa defender a sua causa. Transformar uma grande merda numa obra prima, é tão fácil para estes críticos, e amigos da onça, como fazer o contrário, que é do tornar numa bosta a melhor e mais sublime das criações.
Os clusters de estilo, aquelas ideias ou figuras chave – alegoria, parábola, metáfora, sínquise, imagem, metonínia, sinédoque, ironia, elipse, palimpsesto, etc. –, convenções semióticas ou sistemas semânticos, capazes de impulsionar a criação de conteúdos, estruturas sintácticas e moleculares, inovar dentro de um determinado formato ou modelo, não passam para eles de academismos ou deselegâncias de intelectual armado em sabichão. Pieguices do não-sentir as lamechices do seu contentamento, do seu corporativismo ou, ainda, falange de gosto. Não lêem, não vêem teatro, cinema, pintura, fotografia, não ouvem música, nem admiram a paisagem ou a natureza, a não ser que essas manifestações de beleza possam servir para debitar os seus preconceitos, empurrar a sua falua, rumo à foz dos seus anseios e maquinações, interesses e teses de competição, directa e indirecta.
Conforme salientou Umberto Eco, num outro estudo, acerca da Interpretação e Sobreinterpretação, coligido e dirigido por Stefan Collini (p. 34), é reconhecida geralmente a lenda do califa que ordenou a destruição da Biblioteca de Alexandria, advogando ele que ou os livros diziam a mesma coisa que o Alcorão, caso em que seriam supérfluos (palimpsestos), ou então diriam coisas mui díspares e diferentes dele, caso em que estariam errados como nocivos, pelo que se tornariam igualmente inúteis e cuja perda seria um notório ganho para a humanidade, como, aliás, de facto é qualquer mal intencionada mentira. Portanto, o califa, além de conhecedor da verdade, possuí-a, e achava-se no direito de julgar/avaliar os livros sob o "espírito absoluto" dela, que em si mesmo seria também uma verdade absoluta. Pertencia à noite dos tempos, embora fosse o que melhor aprendizagem usufruíra e o mais sagaz espírito do seu tempo, não dos anteriores nem dos que se lhe seguiram, e muito menos deste tempo que é nosso, enquanto efeito dilecto da modernidade...
Ora, sendo nós apenas leitores e não fazedores de literatura, por mais que nos queiramos impor sobre a informação – sem a adulterar... – veiculada nos textos, literários ou não, podendo eles ser tão-só simples documentos cuja informação está "criptada" numa determinada mensagem, somente essa e não outra qualquer que poderia ser mas não é, o que faz deles aqueles textos ou documentos, e não outros quaisquer, se quisermos descodificar os que eles contêm, que há-de sobretudo ser traduzível num produto cognitivo ou conteúdo cultural, posto que sendo conhecimento tácito será igualmente conhecimento explícito, se não nos outorgarmos outros califas destruidores de livros, teremos de cooperar com o autor dele, como seu codificador inicial, até já não precisarmos dos sinais e marcas que o definiram para o percebermos, pois que assim, grosso modo, estaremos então aptos a avaliá-lo de acordo com a sua lógica, sensatez e gosto explanados, utilidade ou bem-aventurança que manifestem, quer conforme o resultado que dele colhamos, quer pela utilidade ou conhecimento tácito que nos facultou e podemos dar à informação contígua, como pelo conhecimento explícito que nos transmitiu, ou pelo maquinismo com que apetrechou (ou não) a nossa estrutura mental, na medida em que a reforçou ou abalou, consolidou ou degradou, reparou ou abateu, preencheu ou feriu, em termos cognitivos e de superação da vida, o nosso ser, enquanto personalidade plausível de estar entre os demais e influenciável pelo que lhe (e lhes) acontece.
Interpretar um texto, significa explicar por que razões as palavras dele, não obstante poderem significar diversas e diferentes coisas, significam precisamente aquilo que significam, e não carecem de demais ou quaisquer significações para que o entendamos, posto que sendo ler não somente soletrar – Albert Camus, nos seus Primeiros Cadernos, afirmava até que ler é compreender e compreender seria criar, aliás, posição radical que aqui não é subscrita totalmente... –, na tentativa de reconstruir a intenção do texto, distante essa da intenção do autor ao fazê-lo, decifrá-lo enfim, descobrir e enveredar pelos sentidos dele, para preparar a releitura que, essa sim, estabelecerá outras vias de análise, de aprofundamento, de sobreinterpretação, onde se verão esclarecidas, por observância das intertextualidades e entretextualidades vigentes nele, os voilàs e dejà vus passíveis de facilitar identificações, projecções e transferências fundamentais à empatia, e que concorrem para que aquele texto que lemos seja igualmente o outro texto lido mas cuja experiência nos modificou, bem como à nossa maneira de o acatar e entender, sem deixar de ser o anterior nem descambar no simples palimpsesto do primeiro que lemos, seja ele excerto da Bíblia Sagrada ou do Alcorão, da Gata Borralheira, do Assim Falava Zaratustra ou de O Principezinho, ultrapassando definitivamente o "wo Es war, soll Ich werden" (onde era Isso, devo ser Eu) freudiano, envolvido afastamento mas essencial, para reconhecer que, independentemente dos sete sentidos de cada um – gosto, tacto, ouvido, cheiro, visão, propriocepção e empatia –, ou das sinestesias que suscitem, estarem positivamente activos e actuantes, servindo para recuperar o objecto desconstruído, alvo do nosso interesse (o texto, neste caso) e não para o danificarem pela utilização, talvez distorcendo-o sob a nossa intenção ao lê-lo, quiçá destorcendo-o dela em seguida, até já nada do texto restar como intenção de si ou da do seu autor, quando se propôs a redigi-lo que, sem dúvida, nem sempre coincide com aquela que ele espelha depois de pronto.
(Quadro de Ian Cox)
A fábula está aí. Essa é que é a verdadeira fábula em que o animal falou, humano que seja esse animal, artesão no menos, alquimista da palavra, se bem sucedido. E saltar para dentro dela, para ver claramente visto o que nela ocorre, deduzir do seu texto, além do pretexto também o contexto, permitir que da polissemia dos significantes nasçam os constructos semânticos que a identificam, fazem dela aquilo que deveras é e não uma outra qualquer, quebrando a cadeia de palimpsestos que a submergem, emergindo então ela original, se original for, eis então o trabalho do leitor que, finalmente, terá sobre ela o direito de valorização, condenando-a ou absolvendo-a perante os seus juízos e valores.
Agora, se ao entrar nela nos abstrairmos dele, se da fábula não descortinarmos o texto que a elabora, a executa, a realiza, sucumbindo apenas às (primeiras) impressões que nos suscitou, isso pode entender-se como uma leitura desnecessária, uma vez que nós a não queríamos conhecer mas usá-la, coisa que poderíamos fazer com qualquer outra que ela fosse, para nos relatarmos nela, descobrindo-nos nela, revelando-nos não pelo que ela é, e sim pelo que pretendemos que ela seja, tornando-a não um palimpsesto de si mas um palimpsesto de nós. O que irremediavelmente provoca que todas as histórias sejam a mesma história, atribuindo plena razão ao califa (sem dúvida leitor monomaníaco, fundamental adepto da percepção motivada) da Biblioteca de Alexandria, que a queimou por desnecessária, perante a relevância do Corão.
Como os animais, as coisas também falam... Incluindo as palavras, os números, o quotidiano, as cores, as condutas, os objectos, os sujeitos, a memória, a experiência, os símbolos, os sinais. A cultura é feita disso. A arte, também. Principalmente, a ficção e a poesia... O romance e a verdade. A fábula, como a doutrina que lhe subjaza. E ao transportarmo-nos para dentro dela, metemo-nos fora (metáfora) de nós. Os clusters de estilo, são portanto, nesse sentido, estratégias facultativas desse ínterim. Reconhecê-las, ser permeável a elas, é cooperar com o texto, com a intenção dele, como com a do seu autor, que as usou para o balizar, tornando-o naquilo que é, de entre tudo aquilo que ele poderia ser.
Discernir entre as hipóteses possíveis a mais plausível, ou verosímil, é por conseguinte, a mais rudimentar forma de ler, logo, de interpretar, embora esta se revele, assim, como uma maneira de enfabular a fábula propriamente dita, seja ela de cariz realista (caso de consciência, gesta, enigma, locução), seja ela idealista (mito, memória, traço de espírito, lenda ou conto de fadas). Narrativa ou poema. Documento ou informação. Contexto ou conteúdo. Enciclopédico ou semântico, visto ambos veicularem conhecimento, tanto tácito como explícito.
Tal como nos edifícios, perante tantas aberturas (janelas, varandas, sacadas, etc.), desde que neles queiramos entrar naturalmente, sem excentricidades saloias nem intenções malévolas de saqueadores nocturnos, a melhor e mais inteligente, ou expedita, forma de o fazer, é utilizar a porta da frente, se estiver aberta, ou, caso o não esteja, usando a respectiva chave para abri-la, também aos textos, enquanto fachada da mancha gráfica, lhe devemos aceder pelo mesmo processo: pelo item por onde melhor falam – que sempre é o que mais nos surpreende neles, ou aquela característica sua que mais alterada esteja em relação aos outros da sua índole, ou então, pelo contrário, por aquela semelhança tão exaustiva e evidente em relação a alguns dos seus pares que impossível se tona não reparar nela, logo às primeiras e diagonais vistas. E, no caso da fábula, pela fala do animal, que principalmente por ser uma das suas características alteradas e simultaneamente semelhantes, logo alternativa, visto ser a fala aquilo que antes estaria vedado ao animal (ou coisa, ainda apenas que personagem seja...), embora o faça com características tão iguais às da fala humana, que nos chega parecer que muito superior em humanidade é do que quando usada por essa espécie, no seu corrente dia a dia, onde apenas o conhecimento tácito da língua é revelado, facto pelo qual o identificamos ora por narrador, ora por alter-ego, ora por sujeito, ora por voz polifónica, ora por protagonista principal, ora por objectiva que nos filtra, como amplia ou minimiza, a realidade candente nela, que é enfim onde o animal mostra a face hiperbólica da sua natureza, as suas aspirações maiores, os seus feitos superiores, o seu habitat e comunidade, as suas mais fantásticas aventuras e relações, quer com tudo isso como consigo mesmo, incluindo o protocolo do seu relacionamento (hiperligação) com o divino, o onírico e o paranormal. E, grosso modo, com o leitor. O espectador. O olhar do outro que obrigou o autor a meter-se fora de si para facilitar a comunicação com ele.
Eco chamou-lhe leitor-modelo. Todavia, adiante se verá porquê, na geração do autor-modelo, inerente aos modelos literários (narrativos como poéticos) que formatam não só o género, como igualmente a modalidade discursiva (discurso). Por enquanto, a suspeita recai toda sobre a palavra (signo: significante e significado) e o seu crime hediondo que é o de invadir-nos e alterar-nos. Bala que entra em nós para estilhaçar-nos a alma, sem se importar connosco minimamente, nem como no-la deixa, se num vitral perfeito e magnífico a transforma, se num escaqueirado espelho que estonteante e assustadora imagem reflecte. Bala que seja, fala que indubitavelmente é, é através dela que a História se revela na história, quando ela é história palimpsesto, ou que a não-História se revela na história, quando ela é história elipse, por exemplo. Uma pela (às vezes exagerada) presença, outra pela (não menos notória) ausência. Digamos que se a fala fala, o silêncio é outro falar que, em comunicar, a iguala. Logo, igualmente bala.
Em Ian Cox, por exemplo, o céu é vermelho e chove sangue, mas palpita-me que seja apenas tinta de guache sobre papel. Para Eva De Mul, D. Quixote montado no seu rocinante de rodas recicláveis tenta combater as gigantescas centrais nucleares com o protocolo de Quioto, espelhando uma vez mais a sonhadora alienação do cavaleiro da fraca figura. Ziek funde analisador e analisado na mesma cadeira de baloiço ou sofá de psicanalista. Entre o ventre e o seu interior há um voilá a revelar-se na concretização do dejà vu com que se nasce. Ever Meulen não se coíbe de indicar-nos que o estilo é um pensamento especial que serve de combustível ao protótipo de corrida em que molhamos a pena. E os clusters de estilo são a fechadura na qual cabe a figura-chave que há-de abrir-nos a porta da fábula onde o nosso animal (alma, inconsciente, pátria, língua, etc.) nos ensina quem afinal somos. Portanto, se interpretar é entrar no texto, analisar é descobrir as ligações entre a chave e a fechadura, o imbricado jogo entre arestas e ranhuras, que provoca o clique para vermos claramente visto algo que apenas tínhamos a impressão (suspeita) que existia. E após isso, mas só após Ich, depois do animal que fala ter sido superado (Nietzsche) ou suprimido (Amélie Nothomb), só depois de termos desenleado o fio da meada, é que nos é legítimo avaliar se esta ou aquela obra é boa ou má. Mas, nunca antes!
(De Bloedregen, 1975, de Ian Cox)
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