A Minha Tia é Uma Baleia, de Anne Provoost


"As lágrimas são para os olhos o que o arco-íris é para o céu"
Ditado popular neerlandês.


Quando uma das relações primárias (do indivíduo consigo mesmo, do indivíduo com os outros indivíduos, do indivíduo com a natureza e seus elementos, do indivíduo com os animais e do indivíduo com a cultura do lugar, a civilização, o imaginário colectivo e os mitos), em vez da consumada realização, encalha, então as restantes quatro vêm em seu socorro, e determinam pôr fim (preencher) ao buraco negro existente na sua existência – com ressalvadas escusas pela impertinência da redundância. Foi o que aconteceu (ou acontece) sumariamente, na minha opinião, que nunca poderá valer por outra coisa além de conjectura, em A Minha Tia é Uma Baleia, quando Tara, pertencente a uma família, em cujos membros têm o nome sempre começado por t, Tony, o pai, Tânia, a mãe, e Tara, a filha, formando a trindade molecular (ou ordem) da sociedade a que o tempo sem contemplações ditou a prescrição, porque inapta, entrecruzando os relacionamentos desta, notoriamente disfuncional, com a da sua prima Ana, absolutamente discernível e funcional, residente no Cabo do Bacalhau, istmo terreno de onde se pode vislumbrar a Europa, e tudo o que esta representa, para facilitar a operação de salvamento, não só das baleias que deram à costa porque tinham o seu sistema de orientação baralhado, mas também, dela, Tara, que está sendo vítima de violentação sexual por parte de seu pai (incesto), recorrendo à ajuda de uma bióloga (a biologia é a ciência da vida...) especializada em acostamentos e que terá, na sua formação, sofrido iguais sevícias, nos danos, embora que apenas de pedófilas características, uma vez que o agressor era amigo da família e não membro dela.
Numa escrita sem afectadas pretensões, nem floreados barroquismos mas descomprometida, onde a narradora contrapõe com o seu inverso, a prima, duas crianças entre os dez e treze anos, cuja paleta metafórica deriva do multicolorido semiótico universal (verde, vermelho e laranja) das emoções à cor fixa da neurose, Ana e Tara respectivamente, que vagueiam pelas dunas entre dois mundos distintos, tão distintos quão o são o medieval ternário (1+1=1=3) e o moderno binário (1+1=2=10), em que, onde a dependência afectiva e material das crianças é ou não aproveitada egoísta ou perversamente pelos adultos de suas relações, e obrigou uma delas a deixar de ser mais uma criança de sete anos a quem foi amputado o direito de construir castelos de areia com telhados de conchas, túneis subterrâneos e autênticas arvorezinhas à volta dos fossos. Escrita onde se entrecruzam ou entretecem, em ponto décimal, porque abre os seus cinco principais temas à duplicidade de leituras – a lenda de Goody Hallet, o mito das sereias (e sirenas), a arqueologia dos afectos, do conhecimento e da família, o incesto e/ou pedofília universais, a Europa simbólica e o Continente-Estado real, da nossa actualidade – na procura da catarse, que, à falta de melhor antídoto para o veneno existencial dos recalcamentos gerados nas relações ambíguas e nocivas ao desenvolvimento da personalidade, ainda continua, desde a psicanálise, hipnose, narcoanálise (Pentotal ou soro da verdade) e o psicodrama (Mário Moreno), ainda continua, dizia-se, a ser a melhor e mais rentável solução para reacertar a visão que cada um tem de si mesmo, com a do indivíduo que realmente é, se não estivesse sob a influência sensorial e emocional do diferencial correlativo em que se baseia e fundamenta a neurose.
Isto é, transforma uma obra literária noutra tesoura (X) capaz de cortar (interromper) o ciclo de multiplicação dos Filipes (amigos dos cavalos, súbditos da aristocracia marialva) violentados, que em adultos serão os transportadores (cocheiros) de outras crianças que submeterão às mesmas sevícias que eles tiveram, posto que é suficiente para gerar a catarse, aumentando para cinco o número de métodos de a conseguir – psicanálise, hipnose, narcoanálise, psicodrama e literatura – além de facultar às famílias um meio de, sem esquecer os recursos da diversão e da pedagogia, escamotear o medo que alimenta o secretismo das relações intergeracionais, onde se geram as taras psicológicas e as perversões sexuais. Abolindo essas divisões da caixilharia editorial barroca, templária e inicial, de que há literaturas para estádios mentais e etários (infantil, juvenil, adulto e idoso), que infantilizam a humanidade, e esclarecendo definitivamente que se existe alguma definição valorativa e dirigida, porque intencional, da literatura, ela está na linha daquilo que serve, se é a vida ou a morte, a arte ou a perversão, o concerto e harmonia social ou a pornografia, enfim, facultam o conhecimento ou o seu contrário – a ignorância.
Porque é preciso calar o silêncio, matar as bruxas que geram o medo e petrificam os "lábios" de quem expõe os seus segredos, salvar todas as baleias em perigo de extinção, sobretudo as suas crias, sejam elas golfinhos, sereias, boca-de-panela ou gigantescas baleias do Mar do Norte que engolem garrafas para gritar ao mundo a sua mensagem de agonia, e espalham o seu sangue vermelho nos oceanos da modernidade. T-shirt das águas e atmosfera no dorso da Terra... Porque também ele quer dizer Stop. E Stop é para parar!
Porque a literatura pode ser o Albatroz IV que devolve as baleias ao mar...

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