O Rosto e as Máscaras



“O poder é o domínio sobre outrem; ao poder sobre si próprio chama-se liberdade.”
Denis Rougemont

“Todas as histórias são autobiográficas. Só que umas começam por EU NASCI EM BUENOS AIRES, e outras começam por ERA UMA VEZ UMA RAINHA.”
Jorge Luís Borges



«Anda a monte. Dói-lhe a careca por dentro», garantiu Ludomila a Barnabiças e Ruffino, quando estes lhe perguntaram pelo sabichão das caligrafias, narrador dos sete entrecostados fritos, migas de pão e tintol sempre alumiado. «Se calhar, carregou a gorpelha, ontem?!?...», cepticou Ruffino, a quem as ausências do literato faziam transtorno na agenda. «Ele desconhece os limites, e depois... estranha!»
Companheiros e amigos, eu fiquei estupefacto, ou de facto feito estúpido, com o que acabava de ouvir, entrementes abri a porta da sala. Mais uma vez as minhas personagens «senhores, sim» sim, as minhas personagens estavam a trair-me, a criar enredos, a tecer imbróglios, a quadrilhar enfim, nas minhas costas. É como digo: não se pode confiar em ninguém. Nem na tinta da nossa tinta, gema do nosso ovo, clara da nossa santa intenção (transparente).
É óbvio que Ludomila sabe coisas sobre mim que nem eu próprio sei, ou desconfio saber. Além do que reconhece que só as mulheres muito bem vestidas merecem ser bem despidas e que há uma grande diferença (institucional ou não), entre ser-se uma menina boa e uma boa menina. Como igualmente sabe que eu desconheço a dissemelhança entre umas e outras e tomo muitas (bebidas). Mas isso não lhe dá o direito (ou esquerdo) de me boatar ao digníssimo esposo nem ao desnobre alimentador, apenas porque me demorei um tantinho superior na casa de banho, em abluções essenciais matutinas, orando pràs mecas, não!...Uma pessoa precisa de tempo para obrar se quer que o best-seller saia com cagança, apurado e perfeito!... Pois. Não pode andar por aí, com ideias de caca, a alardear-se em herói!... Não pode abastecer-se de fluxo comercial e querer qualidade! Nem ser culturalmente imberbe e exigir que os demais lhe prestem vassalagem.
Portanto – confesso... – quando me sentei à mesa de trabalho, de tão enfurecido e irado após a revelação, estava disposto a matar os três (mas especialmente a ela), e com mais do que uma morte torturadora e cruel para cada um, com pelo menos quatro garantidas para esta, a mila dos ludos, a ver se aprendia a não fazer bluffs com quem tanto lhe quer!... Todavia, recalcitrei, respirei fundo, ingeri a poeirada da 1º de Maio, assumi a postura de buda da felicidade, esbajeei um paivante de enrola caseira, e optei por mantê-la debaixo de olho em banho-barnabiças. Isso mesmo, ali, a mamar nos nabos do costume. Havia de engolir a sopinha toda, desse por onde desse, sem poder cuspir uma gotinha, sequer.
Por conseguinte disse-lhes, nas ventas «já é a segunda vez, que vocês me armam a ratoeira para apanhar o gato em contragarra. É bom que se compenetrem que somos uma equipa e não uma telenovela tipo ‘Dallas’, senão levam-nas. Uma equipa coesa, interessada no enredo e fortemente empenhada na narrativa. Ninguém recebe ordens lá de fora nem cá de dentro, como não são permitidas insurgências contra a estrutura romanesca actual. Quem se quiser amotinar ou frequentar outro formato deve sair da história e não levantar palha. Se querem guerrear entre vós quem mais pode, nunca se esqueçam do ditado chinês que diz que entre aquele que na batalha venceu milhares de milhares de homens e aquele que se venceu a si mesmo, este último é o grande vencedor, mas apresentem trabalho e façam a sopinha conforme a trama exige, e não segundo interesses exteriores estabelecidos partidariamente. Aqui não há vedetas nem discriminações de sedimentar e segmentar a colectividade. Deixem-se de panelinhas amaricadas e cumpram a vossa missão. Ok?!?»
O recado estava dado. Os restantes figurantes da tramóia foram entrando um a um, disfarçando o ar de caso que a grossura da atmosfera impunha. Pessoa não veio por andar com os heterónimos constipados (e contundidos); contudo, o era uma vez não se sentiu minimamente prejudicado, indo em frente, na sua determinação de dar de contar. A postos finalmente, entreolharam-se. Das suas entranhas adivinhava-se, dando à tona, o «bué de esquizo» usual em situações que tais, mas não me comovi. Às vezes é preciso ser duro, género Jorge Luís Borges de irredutível sombra, se se quer ditar as regras da história. Sobretudo porque brincadeira não é arte, antes treino, e deviam provar que estavam prontos prò que der e vier da acção literária, capazes de engendrar e assumir as maiores metáforas. Maduros para pertencer à grande família dos que não existem e sem-abrigo. É que senão, isto espalha-se... E depois? Moleza tem nome. E a ela se devem as maiores alcunhas, tantas e afamadas, que muitas chegaram inclusive a ter assento e assinatura nos anais da urbe, entre as demais nobrezas do registo civil. Porque entre a máscara e a pele vai uma distância tão curta que ninguém consegue discernir exactamente onde uma começa e acaba a outra, que chega a haver olhos que até do que vêem desconfiam, e em frente de si mesmos ao espelho jamais souberam se fitam ou são fitados. Se pertencem a uma máscara ou a um rosto... E mais não sabem da vida do que a solidão do ser!

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