As Sombras e os Números




“Uma cerveja e um sonho;
Eis tudo que tenho.
De mim, do inconstante real,
Mais nada – nem bem, nem mal...”



O excitómetro ainda continua a ser o mais antigo e eficaz instrumento de medir te(n)sões, desentendimentos e medos de incompetência, também conhecidos por disfunções sexuais (além das outras que complicam igualmente a vida às pessoas com pouca prática no darem-se a volta a si mesmas, quer o façam por baixo como por cima – as que apenas se supõem ser).
Eram três da manhã. O quarto parecia vazio e, embora tivesse ficado nele anteriormente, algumas outras vezes, estranho. Da mala de viagem aberta, as camisas impávidas e impessoais transbordavam, vivificando em seu desalinho uma estrutura inabitável. Descobria-se dentro delas, adivinhava-se exibindo o clamor do seu sedentarismo frustrado. Cosia-as mais a si. Lembravam-lhe corpos semidecepados – os seus outros heterónimos, à data adormecidos na clandestinidade, empedernidos pela estatuária de qualquer Pessoa no desemprego ou mal instruído pelas manobras da crítica.
Fora ao cinema. Um filme divertido, por acaso. Uma comédia, ou coisa que o valha. Rira-se a bom rir. Depois, regressara àquela redoma de quatro paredes no terceiro andar de um prédio majestoso, entalado entre congéneres. Na avenida paralela ao rio, esse misterioso tesouro onde se situa o museu, e em que tinha decidido pernoitar. E no início desta fica a Ponte, em sua exclusiva personalidade de pedra, cimento e ferro, que nem uma "escultura arquitectónica" mansamente válida e útil na consciência colectiva das políticas corporativistas, na caracterização e identidade de Casal Parado. O que certamente lhe agradaria, quando pela manhã acordasse – pensou.
Mas os planos haviam-lhe falhado. Apenas se tinha deitado há duas horas e já acordara pelo menos quatro vezes. E de todas elas viu precisamente o mesmo: o guarda-fato, a cadeira onde pusera as vestes dobradas pelos vincos, a banca de cabeceira, a janela transparecendo o néon duma loja próxima, e a mala meio desarrumada.
Amedrontadamente imaginou-se, enquanto se esforçava por adormecer, unindo as pálpebras, a rever o irremediavelmente mesmo mobiliário. Viu-se a acordar novamente. Quanto mais se prendia ao pensamento de que era conveniente adormecer, mais essa visão se tornava poderosa. Masturbou-se, e voltou a masturbar-se – esporadicamente isso dava resultado, justificava-se, talvez na expectativa do efeito calmante da exaustão provocada.
Intimamente desejou que algo acontecesse de anormal, qualquer coisa que juntasse pessoas e acendesse a discussão, ou outra actividade barulhenta. Assim, que lhe desse a hipótese de crer que não era noite: um incêndio, uma manifestação, uma corrida de bicicletas, um terramoto, até.
Mas nada. Nada sucedia...
Num ápice levou as mãos à testa; fervia, "fervia ao ponto de fritar um ovo". Içou-se sobre os membros superiores, meditou durante segundos e saltou da cama, aflitivamente quase. Abriu a porta sem ruído e encaminhou-se para a casa de banho. Entrou, acendeu a luz, remodelou o formato da torneira com os dedos trementes e suados, deixou que o líquido escorresse retinente, e viu-se ao espelho.
A feminil ideia que fazia de si sacudiu-o. No prateado do vidro, a face polida e reflectora estava riscada de sabonete, daqueles sabonetes pequenos e duros, difusos, sem cheiro nem tonalidade certos, vulgares e habituais das pensões baratas, e ficou surpreso. Aproximou mais a vista do espelho e apercebeu-se de quatro estenogramas: “Eu preciso de ti”, decifrou ele. Em baixo, ao canto esquerdo do mesmo, um número: 17. Relavou a cara e concentrou-se no facto recém-descoberto. Ou por outra, tentou concentrar-se e raciocinar. Mas impossível!... O número 17 batia-lhe no córtex como vergasta carcereira.
Antes de sair encostou-se ao lavatório, na esperança de que o contacto com a louça fria o descongestionasse. Fez pressão, ansiosamente e até sentir dor. Teve, contudo, que abandonar a posição sem melhoria no seu estado. E o 17 perdeu toda a significação usual, passando a ser um apelo a que não sabia resistir.
No corredor procurou o quarto 17. Era o do canto esquerdo, ao fundo. Sem hesitar experimentou o trinco, e notou que se não encontrava fechado à chave. Entrou.
«Sabia que virias...», murmurou uma voz arrastada, entrecortada, feminina, jovem, cautelosa, sincopada, consumida e soluçada, oriunda da penumbra interior da "caverna" de quatro paredes que cada quarto parece sempre ser, desde que não seja o nosso de cada dia, impressão tão-só adubada pela familiaridade circunstancial dos objectos (significados) quotidianos.
«Tranco a porta?» Perguntou. E no mesmo instante, o número extinguia-se da sua mente... Apagava-se em definitivo.

* * *

De imediato, através da janela, o jorro intermitente da publicidade emprestava ao quarto um salpicado rubro, vermelhão, e lançava na parede da cabeceira, apenas desnivelada pela presença da porta, as sombras dos dois corpos sobre si próprios, em nítido frente a frente. Entre a sombra de cada um formava-se uma pirâmide de luz vermelha, que aparecia e desaparecia tão velozmente como um piscar de olhos. Pouco a pouco, silenciosamente, a figura geométrica foi perdendo os contornos iniciais, e transmutou-se numa agulha gótica, tendo por base os joelhos de ambos. Ao lado das sombras, outra sombra: o abat-jour que, embora bastante desviado, parecia seguir-se-lhes imediatamente.
Depois o candeeiro ficou afastado, definitiva e sombriamente afastado, e entre os seus corpos verticalmente unidos sobre o plano da cama, que marcava a fronteira entre a penumbra e a claridade inconstante, a luz quedava-se impossibilitada de penetrar, liquefazia-se na procura de uma brecha, de um vértice não suturado em que pudesse escoar-se.
Uma das sombras tinha cabelos curtos. A outra, cabelos pelos ombros.
A sombra de cabelos compridos, aglutinadamente ofegante, salivante, febril como a claridade do quarto, de pulsar descontroladamente acelerado, sentiu o cheiro suado da sombra de cabelos curtos, assim como os volumosos contornos do seu espectro. Sentiu o cheiro e o calor. Sentiu a derme e o término neuro-vegetativo afrontadamente electrificados. Sentiu o seu ser encher-se energética e psiquicamente, desejando-se a explodir num caótico grito do profano, até à imensidão da calma divina, ondasuprema do tubo prestes a eclodir para esvair-se no areal das costas.
Os braços e os lábios dos dois fantasmas percorriam-se mutuamente e reconquistavam-se em atropelo, descobrindo ao longo de cada um a certeza de serem o mundo todo. Porque, em declarado egoísmo pretendiam assimilar-se... E usufruíam-se nessa posse insubordinada.
Os seus ventres juntos fundiam a força espiral dos sexos, trocando informação sobre os seus pulsares, numa avareza despótica e cruelmente real. O ritmo de seus contactos assumia gradação ascendente, à medida que com maior frequência eram recebidas e emitidas descargas libidinosas reforçadoras da actividade. Contagiavam-se e incendiavam-se. Reprimiam-se e amachucavam-se. Libertavam-se e submetiam-se. Devoravam-se e ofereciam-se, inesperadamente sôfregos, na acumulada urgência da rebentação.
Meticulosamente os lábios vaginais da sombra de cabelos pelos ombros surpreenderam o vigoroso pénis da sombra de cabelos curtos, que teimosamente insistia em contrair-se, não obstante o extraordinário fluxo sanguíneo que afluía à glande, tentando fugir ao íman que o obrigava a vibrar mais pungentemente. E, enquanto que a boca genética da primeira sombra se armava contrita e espamódica, e dirigia o controlo táctil do musculado apêndice da segunda, formando uma díade pulsante inseparável, buscando a periferia do molho de fibras, os seus membros superiores deslizavam (reciprocamente) no seus dorsos, nas colunas vertebrais, deixando à passagem aquele formigar incandescente característico do despertar vegetal de romper as cascas.
A incansável vagina sugava o febril láscio irresistivelmente, ganhando território a cada entrega, afoitando-se delirante na absorção contínua, num terrível e imperioso desvendar da magia da posse, até que impossível se tornou aumentar o acto por completa a penetração. O contacto do clitóris com o tronco e os pêlos pélvicos conduziam o prazer exterior da sombra, distribuindo-o pelo resto dela, repartindo-o ao lóbulos das orelhas, pelos seios, pela boca, pelos músculos que circundam as clavículas, reavivando a nudez selvática da penumbra. As nádegas contorciam-se, contraíam-se, crispavam-se, e alteravam ligeiramente a pressão sedimentada da vagina sobre o pénis.
O universo estava dentro das sombras, porque era noite e a publicidade invadia o quarto, num arremesso quixotesco de quem quer vingar sobre o brumático torpor da arquitectura dos séculos passados, esporeando os flancos do receio, do recato, da defesa inusitada, almocreve do cavalo do medo que, como freio nos dentes, a toda a brida, à desfilada se disparava para lá do lá, para além do inimaginável na exploração do caos dos verbos sobreaquecidos com ternura solta, intensa mas brava e descomprometida.
Então, o quarto e o silêncio foram as únicas testemunhas, as obtusas testemunhas que se recusavam a retirar, do prazer das sombras que continuaram unidas, a esfumarem-se imperceptivelmente na languidez dos tempos.
A sombra comum e vertical tomou a obliquidade. Desceu aos 180 graus e pairou breves instantes num ballet imagético e soturno, quase fantasmagórico. Mas a luz apagou-se e, quando se reacendeu, a sombra havia-se sumido acompanhada de um baque seco. Depois silêncio... Um silêncio penetrante e duradouro. E persistente.
(.................................................................)
Amanhecia quando um grito inumano e gutural rompeu o quarto e atravessou a madrugada e o sol e o nevoeiro. Um grito vindo do chão. Um penhasco de voz cortante e hirto que queria esconder-se no infinito.
O ciciar dos motores dos primeiros camiões e transportes públicos que se eriçavam pela avenida, deu com-pa-ssa-da-men-te o seu acréscimo num reivindicativo sinal de existência. Homens de olhos vermelhos, raiados de sangue e toxinas, fitavam o pavimento em desafio à vida, à agrura do dia a dia.
Como sombras que eram, saíram de seus quartos e desceram as escadas. Na rua, ao seu lado direito, um empregado de balcão devidamente enfarpelado, abria a porta de um bar para motoristas e viajantes.
«Bom dia. Vai abrir, não é?» Inquiriu ele.
«Sim, sim. Desta vez venho um pouco... Já devia...» Respondeu o indivíduo tentando justificar-se por uma falta que ninguém vira.
«Não faz diferença. Podemos entrar?» Insistiu ele, dado que o empregado na tentativa de se desculpar esquecia-se de se arredar da porta.
«Às ordens...»
Entraram. O serviçal seguiu-os, deu a volta ao balcão e...
«Que tomam, então?»
«Uma cerveja e dois copos» pediu ela, a sombra mulher, já despida de espectro, em seu traje florido de violeta em tecido indiano, a flanar. Neles verteram o líquido cor de sol e mel, que ganhou a espuma das marés sobre as quais navegou Vénus na aurora dos tempos, que ambos sorveram meigamente até ao caramelo da cor, deixando-o escorrer pela língua sábia ainda no agitar das mais profundas e lusas preces.

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