Romance Estilhaçado
RUI E IRENE – FRAGMENTOS DE UM ROMANCE ESTILHAÇADO
Quando mudei, recentemente, de casa precisei de comprar alguns móveis. Entre eles, uma escrivaninha, que era coisa que não tinha, nem cabia na "mansão" antiga. As novas, eram modelos que não se coadunavam com a decoração da casa, e as que descobri nos antiquários ou eram demasiado caras para o meu go$to, sumptuosas, de época, ou estavam em "péssimo mau estado" – e perdoe-se-me o pleonasmo pela exactidão da imagem que nos fornece quanto ao estado de conservação das mesmas... –, carecendo de oneroso restauro, o que igualmente fazia com que as rejeitasse, embora com sério pesar, para o fim em vista. Todavia, tive conhecimento que um amigo de longa data, a quem haviam falecido os velhos progenitores há pouco tempo, com breve intervalo entre a morte da mãe e a do pai, cujo falecimento deste último se assemelhara antes a uma desistência de viver, iria desfazer-se dos trastes que herdara e remodelar o imóvel, que sabendo da minha necessidade, me questionou acerca de querer ou não, a escrivaninha que lhe deixaram. Prometi ir vê-la de imediato, o que cumpri sem demoras, é certo, pois já estava entre outras bugigangas no patim das escadas aguardando sumiço, e foi tiro e queda, porquanto me agradou em simultâneo. Não era antiga, nem moderna. Era firme, rija, austera e apresentava-se em óptimo estado de conservação, tal e qual como eu a queria.
Esvaziou-se de quanto havia no interior e, num ápice, arranjei quem ma transportasse até casa. E ainda nesse mesmo dia foi pernoitar no meu escritório, salvo seja!, se assim pudermos chamar ao quarto vago a que destinei os livros, CDs, DVDs e quadros que amigos me ofereceram, quando souberam que abominava os seus autores, pelos aniversários e na presença de respeitosas e idóneas testemunhas, para assim evitar que me desfizesse deles nos dias seguintes. Segundo eles, as oferendas seriam pedagógicas, para me ensinarem a gostar daquilo que não gostava e perder a arrogância de crítico naïf que emprenhava com as primeiras impressões que uma obra me "inspirava", transformando-as em definitivas e assertivas, não fruto do questionamento amadurecido, mas do preconceito assumido e corroborado pela lei do menor esforço. De facto, jamais o conseguiram, convém esclarecer, mas se de arte se trata, habituamo-nos ao feio e horrível com idêntico apego e fervor com que o fazemos ao belo e maravilhoso, e dá-nos exaltado prurido desfazermo-nos dela, chegando a sentir uma espécie de amputação, mutilação física e essencial, somente com o assomo da ideia de a deitar fora.
Ora, diversos meses depois de a ter recolhido, descobri nela, o fundo falso de uma das gavetas superiores, precisamente na segunda do lado superior esquerdo, a que menos nos lembramos de usar para guardar as minudências de utilização diária, e nele as oito cartas, que passo a transcrever, na esperança de vos propiciar o mesmo misterioso deleite romanesco que me suscitou. Os carimbos dos CTT rondavam os anos oitenta do século passado, sem precisarem ou consumarem um período exacto de tempo, nem se espaçarem nele de forma regular, e os selos não tinham qualquer valor de troca ou a mínima valia (estética ou gráfica) como coleccionáveis.
Carta 1
“ Rui!
As minhas primeiras palavras são de agradecimento pelo conforto das tuas cartas. É na verdade uma maravilha, depois de um dia de trabalho, recebendo constantemente vibrações negativas e palavras de desilusão da pessoa de quem gostamos, especificamente o tipo com quem ando, e chegar a casa, e ler as tuas linhas que nos traduzem algo de belo e de positivo, que nos traz compensação em relação ao dia vivido.
Nem sempre tudo é tão negativo, é verdade, mas hoje que aconteceu isso mesmo, mais que nunca a tua carta me soube a estrelas.
Desculpa não dizer mais nada, mas a partir daqui tudo serão baboseiras em relação ao que sinto
Um beijinho
Irene”
* * *
Carta 2
“Rui: Viva! Viva!
Foi assim que descobri o meu Eu...
Para lá de uma janela.
Dois versos da poesia da Tatiana. É belo encontrar o Eu aos 17 anos.
Eu, com muito mais idade, ainda não consegui encontrar o meu EU. Por vezes julgo tê-lo encontrado, mas rapidamente se esvai e desaparece no ar deslizando por entre os dedos, tal como as espirais de fumo do meu cigarro.
Isto talvez porque ainda não penso – preguiça mental –, e estou assim demasiado alienada. Tento elevar-me, é certo, da socialização, mas apenas consigo subir alguns degraus e logo sinto a escada desmoronar, porque a sua construção não é 100% verdadeira, e volto outra vez ao sítio donde quero fugir.
Será que alguma vez o vou conseguir?
Por vezes, demasiadas, penso que não, que estarei sempre entre cá e lá, mesmo com a ajuda de pessoas como tu. Por isso sei até que ponto mereço a tua amizade, pois que passo demasiadas vezes no jardim obedecendo às tabuletas “PROIBIDO”, mesmo sabendo que elas são a negação dum direito
Um beijinho
Irene”
* * *
Carta 3
“Olá Rui:
Em primeiro lugar vou pedir-te uma coisa: é que não confundas o meu silêncio com o não querer a tua ajuda. Pensei que isso tivesse ficado claro na nossa conversa aí, em Casal Parado?...
Muitas vezes se não escrevo é porque além da preguiça de o fazer, que não é constante, as ideias estão mal arrumadas e sai uma confusão desgraçada, onde digo e contradigo. Mas preciso e quero a tua ajuda, e vou estar empenhada na nossa (tua) obra de arte. Digo nossa (tua) porque eu apenas poderei dar uma centésima parte da colaboração; mas mesmo nessa eu, neste momento, estou fortemente empenhada.
Disseste numa carta que irias fazer algo, não sei o quê, pa’ possibilitar; pois força Rui. Só tenho é de fazer uma coisa: é avisar-te que eu não sou mais um mínimo sequer da personificação do amor. Levei muita porrada, e água mole em pedra dura, tanto dá até que fura. Acabei por levar o suficiente para pôr os ideais de parte e entrar apenas na luta.
Um grande abraço
Irene”
* * *
Carta 4
“Olá Rui!
Os meus parabéns! Acho óptimo essa de redactor do jornal. Acho mesmo muito bom. Assim tens hipótese de transmitir um pouco aos outros a tua imaginação.
O pior é que assim já não podemos passar férias, não? Eu tinha pensado irmos em Agosto, porque eu talvez conseguisse arranjar tenda, mas já agora não faço nada sem saber se tu podes – e diz logo se em Setembro achas ser mais fácil, ou não...
Olha, quanto ao teu livro, estou morta por saber mais coisas, quais os poemas que realmente vais pôr, etc., etc., mas eu ainda nem sequer pensei no motivo para a capa. Penso que para isso seria necessário o teu esboço, que então eu poderia pôr em prática, pois eu aqui estou completamente alienada, vivo apenas para o trabalho, a cabeça fica de tal maneira cheia daquela merda que não consigo pensar em nada absolutamente nada, sai de lá e só dá para fazer coisas que não interessam, por exemplo neste momento estou quase com os copos, talvez por isso me perca, nem imaginas do que me apetecia falar-te...
Em tudo aquilo que me apetecia dizer, resumindo, acho que a vida era muito boa se a soubéssemos viver, mas eu não sei, sou demasiado fraca para viver como deve ser e deixo-me levar pela vida que me rodeia e que sei que a nada me conduz.
Escreve para o endereço do envelope
Um beijinho
Irene
P.S.: gostei muito do poema.”
* * *
Carta 5
“Hôi Rui!
Não sei bem por onde começar... é que estou tentada a pedir-te desculpa. Mas, o que é que isso adianta? E o que é isso para o que tenho feito? Tenho sido aquilo a que se chama uma ingratatona. Tu tens sido extraordinário, com as tuas cartas que transmitem a tua força, tens-me dado alento, e eu nem uma palavra em troca. O eu ir aí sem dizer nada, isso não estranhes, porque eu resolvo sempre à última da hora, não dá para avisar ninguém. Agora quanto a escrever, claro que o podia fazer, mas se o não faço é porque não me sinto à altura de o fazer. Tu dizes que te sentes oco, vazio agora, mas eu Rui, tenho essa doença há um tempo indeterminado; eu quero ser, eu quero fazer, mas não consigo fazer nada, dizer nada. Eu já tentei escrever-te vezes sem conta mas depois chego sempre à conclusão de que não dizia nada e não vale a pena meter uma carta que não diz nada. Rui acredita que sonhei tremendamente com as nossas férias, com o fazer a capa do livro do qual tu eras o autor e ir por esse Portugal que para mim seria por esse mundo fora, vendendo aquilo que tinha sido criado, mas o serviço, o trabalho que eu não gosto, impediu-mo, e eu não senti forças para saltar a barreira. Tens razão: tudo ficou agarrado a uma mesa de café, a um sítio qualquer não importa, importa sim que não consegui ultrapassar as coisas para uma realização e não te ajudei a ajudar-me a ultrapassar isso e é difícil ajudar alguém que não aceita a ajuda que lhe dão.
Desculpa, estou completamente vazia, estou completamente aquilo que não queria estar, estar aquilo que sou, e sou mesmo isto, nada. Mas se sou nada, não posso iludir-me a mim nem a ninguém que sou mais do que isto e é aí que me condeno, acho que te fiz crer que era mais do que sou.
Não consigo dizer mais.
Xau, um beijo
Irene
: põe a direcção completa; a última carta, só a recebi por mero acaso.”
* * *
Carta 6
“Viva Rui! Viva!
Que bom podermos encontrar-nos novamente. Se podes vir é óptimo. Eu estou de férias e tenho andado a saltitar, mas vou estar em Lisboa a partir do dia 1 de Outubro.
Não sei se queres escrever ou telefonar, no segundo caso o telefone de casa é 212746956 e do serviço 217653857/8, extensão 228.
Não vou dizer mais nada agora, vamos marcar encontro à esquina, não é? Bom...
Então, pela nova crença mais perto da vida
Um a b r a ç ã o
Irene”
* * *
Carta 7
“Rui: Olá!
Que o novo ano te traga as maiores venturas e a realização das tuas aspirações, é uma frase gasta, corriqueira e estúpida inclusive, se pensarmos que em cada dia nasce e termina um ano e quem sabe, um ciclo de vida. Mesmo assim apetece-me desejar-te que o período de tempo marcado num simples calendário feito pelos homens e cujo início tem como marco 1/1/19..., seja também para ti um marco do início de realizações pessoais.
Talvez este meu apetite tenha por fundamento o eu ter sentido pela primeira vez a coincidência do virar duma página, a última do calendário e mais uma da minha vida, pura coincidência.
Mas é apenas o virar de uma página, não é mudança, eu não mudei, e sobre isto queria pedir desculpa pois te enchi os ouvidos com esta palavra: MUDEI, MUDEI, MUDEI. Claro que te apercebeste que não tinha mudado não é? Se tivesse mudado não precisaria de gritá-lo aos sete ventos como o fiz, creio que o fazia para me convencer a mim própria, mas não é um facto, é apenas uma hipótese.
Queria agradecer-te as Boas Festas, és maravilhoso, tens sempre algo bonito a dizer, mas apesar de tudo Rui, queria pedir-te que quando escrevesses para mim, escrevesses mesmo para mim.
Eu sei, tu já disseste, que não levasse as tuas cartas à letra, pois que sou neste caso o endereço personalizado das tuas fantasias literárias. Eu sinto-me feliz e honrada pelo facto, mas devo confessar-te que também por vezes confusa, tentando discernir uma palavra para mim.
Rui, manda-me porque eu adoro, a tua literatura nata, mas por favor, a par disso manda de vez em quando um bilhetinho para mim própria, se não é pedir-te muito, e neste momento peço-to porque preciso de facto de uma palavrinha pa mim mesma.
U m grande G R A N D E a b r a ç o
Irene”
* * *
Carta 8
“Olá Rui – Boa Noite!
Talvez seja um pouco tarde para responder às tuas cartas há tanto tempo enviadas, especialmente da última que foi uma maravilha porque foste franco, nem sempre é fácil ser-se sincero, mas tu foste-o comigo e eu te agradeço.
Notei nela, contudo, que algo chega ao fim. O fim do nosso relacionamento (da minha parte tão egoísta), o fim da imagem que criaste para mim e talvez eu mesma de mim própria, mas por vezes é preciso algo morrer para algo de novo nascer. Não respondi a muitas das tuas cartas, porque mereciam mais do que eu na altura podia dar, e a esta última demorou porque tinha de amadurecer primeiro em mim.
Sim, Rui eu não existo, eu Irene imaginada e imaginária não existe mais; essa Irene morreu, mas morreu porque existiu, e existiu graças a ti e a acontecimentos excitantes, mas de facto nada resta dela. Agora existe uma Irene que embora não passe de mais uma peça do xadrez canibal, maquinal, folhetinesco, do carrasco Estado, sendo nada (e é isso exactamente), quero saber mais do que fazer ofícios, mapas, preencher documentos, reescrever minutas, relacionar contas de entradas e saídas, beber copos, vestir convenientemente, ter boa figura e conversas simpáticas ou a propósito, saber jogar pequenas cartadas sociais e manter um ar seguro e determinado, também quero ser eu. Serei eu-nada, mas eu.
No teu Cônscio de que me fiz compreender
Os melhores cumprimentos entendi que puseste fim ao que de facto terminou, e é de cá, deste lado do eu-nada que te agradeço por tudo o que me deste e me ajudou a ser eu-nada; acredita que nunca esquecerei a desinteressada contribuição.
Acredito que irás em frente, de qualquer forma. Do que tenho, o melhor para ti. Um grande abraço, e que a tua fogueira perdure
Irene”
Epílogo
Rui e Irene, quem quer que um ou outra tenham sido, ou uma e outro tenham sido, para não beneficiar o género do narrador, que sem dúvida é masculino, e melhor estabelecerá uma empatia com a personagem oculta, esse de quem não sabemos nada, nenhum detalhe da existência a não ser aqueles que Irene, ao dirigir-se-lhe, nos fornece, dando-nos o seu ponto de vista e respectivamente facilitando-nos o ponto de vista sobre ela, e que ele tem dela, pintando-o de forma fugaz e impressionista, proporcionando-nos uma imagem deveras nebulosa, espectral, do tipo de pessoa que ele é, ou imaginamos que seja, segundo a paleta feminina e sob os traços de Irene, mas que são ambos reminiscências desse passado século dos grandes ideais e das grandes utopias, como das grandes guerras e dos grandes festivais de música, das grandes paradas bélicas como dos grandes inventos e "alunagens", dos acicatados saberes-fazer, dos especialismos e vanguardas às pontualidades minuciosas, que teriam testemunhado como tantos milhões de portugueses também o fizeram, mas que nunca aprenderam a ser, e todavia foram, nem nunca aprenderam a estar, e contudo estiveram, ou por amor entenderam um serviço prestado por vassalagem e suserania, um não-sei-quê em forma de assim, para ludibriar as carências de formação e os defeitos de civilização numa sociedade em constante mudança, esse amor mais propício à abdicação do que à realização, qual almofada de choque para superar o embate com a realidade, em que quase sempre um arrisca tudo, nomeadamente a vida, e ao outro não cabe mais que providenciar a sobrevivência e "despesas" de manutenção dessa relação, superlativamente próprias de uma empresa, sociedade de apelido masculino cuja principal razão de sustentabilidade assiste à transmissão genética de uma família, embora a eternidade (biológica) almejada seja a da mulher quanto a do homem, através dos filhos. E isso, pensaram, lhes bastaria para superarem as incongruências de toda a vida, satisfazendo-os biologicamente e, talvez, dando-lhe a saciedade cultural e criativa consequente ao equilíbrio derivado das relações humanas não equitativas, tão economicamente humanas, que não se realizavam mas antes nelas se investia, sendo uma inequívoca perda ou ganho de tempo, de onde se saiu sempre com a irremediável compensação característica e comum a algo que seria efectivamente bom apenas enquanto durasse. Enganaram-se, é certo, pois que enquanto durou não foi lá grande coisa e, quando acabou, somente deixou um enorme e traumático vazio em seu lugar, um tenebroso buraco negro castrativo quanto ao mister de tentar melhor, procurar uma saída sem dor para o mistério da existência, deixando cada qual à mercê do medo de encetar novas relações e sem a mínima vontade, ou aptidão, para a reciclagem das antigas.
Irene e Rui não têm rostos, faltam-lhes os corpos, são culturalmente omissos, sem medidas, formatos, personalidades, usos e costumes, trajes e tiques, obsessões e residências fixas, indefinidos na época e marginais quanto à vocação. Pouco ou nada se sabe deles, excepto aquele de um intercepta o universo de outro, o que nela cimenta a esperança e ele faz para alimentar as expectativas, que todavia explodem numa nuvem de irrealidade, depositando escolhos de missões por cumprir num mar, invulgarmente, coalhado pelos sargaços da incompatibilidade, mútua ao que parece, uma vez que tanto ele, como ela, preferem iludir o querer sem elucidar e criar o projecto onde esse querer se possa consolidar, sonhar "a coisa" em vez estudar a estratégia para a implementar, desabafar em vez de negociar, afirmar em vez de trocar e/ou partilhar impressões ou pareceres, dizer em vez de dialogar, definir, traçar, gizar caminhos em vez de estudar alternativas, optar por vias, ensaiar consensos.
Ou seja, se adivinhamos estarem ambos em trânsito, desistindo de um caminho falhado e encetando outro igual, logo também propenso ao fracasso, considerando que nenhum analisou a experiência anterior, mas antes cada um se serviu do outro para lhe fugir, sem dificuldade caímos na evidência de que neste rio, além das margens, a água perdura a mesma sob as mesmas pontes, que não ligam "bandas" nenhumas, não tocam a mesma ária, embora se sintam vocacionados para desafinar com idêntico esmero nos mesmos acordes, desacordando, adormecendo em vez de despertar. Ajuizar do quanto estariam errados, ou certos, pouco nos adianta e favorece na actualidade, se não escamotearmos os porquês dessa derrota, como o são todas as relações que, ao estabelecerem-se, mais pródigas se demonstram em ressentimentos do que em afectos genuínos, sentimentos de urgência do que em investimentos e acções de uma empresa de serviços prestáveis, com bónus por perícias várias e prémios por descaramentos ou mentiras não desmascaradas. E, tal como num bom policial, a identidade do criminoso esteve legível desde a primeira linha... Porque o afecto, aquele sal que tempera as relações mais íntimas e profundas, nunca se agradece, retribui-se, e muito menos é confortável – pois desacomoda, inquieta, excita, corta definitivamente com tudo aquilo que tenhamos vivido antes, emprestando nova intensidade a gestos, sentidos e desejos anteriormente bastante suportáveis. É uma companhia cuja ausência nos fica insuportavelmente cara...
Nunca ninguém salvou de nada quem quer que fosse pela via do sentimento de posse, pelo direito de amar, e muito menos se salvarão a si mesmos aqueles, ou aquelas, que se servem de outrem como bóia de salvação para a sua solidão, abandono e incompreensão perante o mundo, considerando que a inequívoca validade do sentir, é nós perdermo-nos mutuamente do quanto éramos, ou supúnhamos ser, e se alguma aflição existencial nos restava por nos desconhecermos, a única que deveras perdurará será a de finalmente nos havermos encontrado reduzidos à felicidade que alguém produz em nós, pelo simples facto de existir, razão que coloca qualquer mérito exterior a essa felicidade e fora de nós. E isso é tudo, pode ser muito bem tudo quanto quisermos que seja, agora o que jamais será é um confortável consolo.
Enfim, no amor como no ser, só amamos e apenas somos, quanto mais nos esquecemos de ser e amar; e exactamente assim é a arte, a literatura: um conto é quanto mais conto, quanto mais se assemelha a outra coisa qualquer, epístola que seja até, da mesma forma que o homem é muito mais Homem, quanto mais se aproxima da mulher.
Quando mudei, recentemente, de casa precisei de comprar alguns móveis. Entre eles, uma escrivaninha, que era coisa que não tinha, nem cabia na "mansão" antiga. As novas, eram modelos que não se coadunavam com a decoração da casa, e as que descobri nos antiquários ou eram demasiado caras para o meu go$to, sumptuosas, de época, ou estavam em "péssimo mau estado" – e perdoe-se-me o pleonasmo pela exactidão da imagem que nos fornece quanto ao estado de conservação das mesmas... –, carecendo de oneroso restauro, o que igualmente fazia com que as rejeitasse, embora com sério pesar, para o fim em vista. Todavia, tive conhecimento que um amigo de longa data, a quem haviam falecido os velhos progenitores há pouco tempo, com breve intervalo entre a morte da mãe e a do pai, cujo falecimento deste último se assemelhara antes a uma desistência de viver, iria desfazer-se dos trastes que herdara e remodelar o imóvel, que sabendo da minha necessidade, me questionou acerca de querer ou não, a escrivaninha que lhe deixaram. Prometi ir vê-la de imediato, o que cumpri sem demoras, é certo, pois já estava entre outras bugigangas no patim das escadas aguardando sumiço, e foi tiro e queda, porquanto me agradou em simultâneo. Não era antiga, nem moderna. Era firme, rija, austera e apresentava-se em óptimo estado de conservação, tal e qual como eu a queria.
Esvaziou-se de quanto havia no interior e, num ápice, arranjei quem ma transportasse até casa. E ainda nesse mesmo dia foi pernoitar no meu escritório, salvo seja!, se assim pudermos chamar ao quarto vago a que destinei os livros, CDs, DVDs e quadros que amigos me ofereceram, quando souberam que abominava os seus autores, pelos aniversários e na presença de respeitosas e idóneas testemunhas, para assim evitar que me desfizesse deles nos dias seguintes. Segundo eles, as oferendas seriam pedagógicas, para me ensinarem a gostar daquilo que não gostava e perder a arrogância de crítico naïf que emprenhava com as primeiras impressões que uma obra me "inspirava", transformando-as em definitivas e assertivas, não fruto do questionamento amadurecido, mas do preconceito assumido e corroborado pela lei do menor esforço. De facto, jamais o conseguiram, convém esclarecer, mas se de arte se trata, habituamo-nos ao feio e horrível com idêntico apego e fervor com que o fazemos ao belo e maravilhoso, e dá-nos exaltado prurido desfazermo-nos dela, chegando a sentir uma espécie de amputação, mutilação física e essencial, somente com o assomo da ideia de a deitar fora.
Ora, diversos meses depois de a ter recolhido, descobri nela, o fundo falso de uma das gavetas superiores, precisamente na segunda do lado superior esquerdo, a que menos nos lembramos de usar para guardar as minudências de utilização diária, e nele as oito cartas, que passo a transcrever, na esperança de vos propiciar o mesmo misterioso deleite romanesco que me suscitou. Os carimbos dos CTT rondavam os anos oitenta do século passado, sem precisarem ou consumarem um período exacto de tempo, nem se espaçarem nele de forma regular, e os selos não tinham qualquer valor de troca ou a mínima valia (estética ou gráfica) como coleccionáveis.
Carta 1
“ Rui!
As minhas primeiras palavras são de agradecimento pelo conforto das tuas cartas. É na verdade uma maravilha, depois de um dia de trabalho, recebendo constantemente vibrações negativas e palavras de desilusão da pessoa de quem gostamos, especificamente o tipo com quem ando, e chegar a casa, e ler as tuas linhas que nos traduzem algo de belo e de positivo, que nos traz compensação em relação ao dia vivido.
Nem sempre tudo é tão negativo, é verdade, mas hoje que aconteceu isso mesmo, mais que nunca a tua carta me soube a estrelas.
Desculpa não dizer mais nada, mas a partir daqui tudo serão baboseiras em relação ao que sinto
Um beijinho
Irene”
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Carta 2
“Rui: Viva! Viva!
Foi assim que descobri o meu Eu...
Para lá de uma janela.
Dois versos da poesia da Tatiana. É belo encontrar o Eu aos 17 anos.
Eu, com muito mais idade, ainda não consegui encontrar o meu EU. Por vezes julgo tê-lo encontrado, mas rapidamente se esvai e desaparece no ar deslizando por entre os dedos, tal como as espirais de fumo do meu cigarro.
Isto talvez porque ainda não penso – preguiça mental –, e estou assim demasiado alienada. Tento elevar-me, é certo, da socialização, mas apenas consigo subir alguns degraus e logo sinto a escada desmoronar, porque a sua construção não é 100% verdadeira, e volto outra vez ao sítio donde quero fugir.
Será que alguma vez o vou conseguir?
Por vezes, demasiadas, penso que não, que estarei sempre entre cá e lá, mesmo com a ajuda de pessoas como tu. Por isso sei até que ponto mereço a tua amizade, pois que passo demasiadas vezes no jardim obedecendo às tabuletas “PROIBIDO”, mesmo sabendo que elas são a negação dum direito
Um beijinho
Irene”
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Carta 3
“Olá Rui:
Em primeiro lugar vou pedir-te uma coisa: é que não confundas o meu silêncio com o não querer a tua ajuda. Pensei que isso tivesse ficado claro na nossa conversa aí, em Casal Parado?...
Muitas vezes se não escrevo é porque além da preguiça de o fazer, que não é constante, as ideias estão mal arrumadas e sai uma confusão desgraçada, onde digo e contradigo. Mas preciso e quero a tua ajuda, e vou estar empenhada na nossa (tua) obra de arte. Digo nossa (tua) porque eu apenas poderei dar uma centésima parte da colaboração; mas mesmo nessa eu, neste momento, estou fortemente empenhada.
Disseste numa carta que irias fazer algo, não sei o quê, pa’ possibilitar; pois força Rui. Só tenho é de fazer uma coisa: é avisar-te que eu não sou mais um mínimo sequer da personificação do amor. Levei muita porrada, e água mole em pedra dura, tanto dá até que fura. Acabei por levar o suficiente para pôr os ideais de parte e entrar apenas na luta.
Um grande abraço
Irene”
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Carta 4
“Olá Rui!
Os meus parabéns! Acho óptimo essa de redactor do jornal. Acho mesmo muito bom. Assim tens hipótese de transmitir um pouco aos outros a tua imaginação.
O pior é que assim já não podemos passar férias, não? Eu tinha pensado irmos em Agosto, porque eu talvez conseguisse arranjar tenda, mas já agora não faço nada sem saber se tu podes – e diz logo se em Setembro achas ser mais fácil, ou não...
Olha, quanto ao teu livro, estou morta por saber mais coisas, quais os poemas que realmente vais pôr, etc., etc., mas eu ainda nem sequer pensei no motivo para a capa. Penso que para isso seria necessário o teu esboço, que então eu poderia pôr em prática, pois eu aqui estou completamente alienada, vivo apenas para o trabalho, a cabeça fica de tal maneira cheia daquela merda que não consigo pensar em nada absolutamente nada, sai de lá e só dá para fazer coisas que não interessam, por exemplo neste momento estou quase com os copos, talvez por isso me perca, nem imaginas do que me apetecia falar-te...
Em tudo aquilo que me apetecia dizer, resumindo, acho que a vida era muito boa se a soubéssemos viver, mas eu não sei, sou demasiado fraca para viver como deve ser e deixo-me levar pela vida que me rodeia e que sei que a nada me conduz.
Escreve para o endereço do envelope
Um beijinho
Irene
P.S.: gostei muito do poema.”
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Carta 5
“Hôi Rui!
Não sei bem por onde começar... é que estou tentada a pedir-te desculpa. Mas, o que é que isso adianta? E o que é isso para o que tenho feito? Tenho sido aquilo a que se chama uma ingratatona. Tu tens sido extraordinário, com as tuas cartas que transmitem a tua força, tens-me dado alento, e eu nem uma palavra em troca. O eu ir aí sem dizer nada, isso não estranhes, porque eu resolvo sempre à última da hora, não dá para avisar ninguém. Agora quanto a escrever, claro que o podia fazer, mas se o não faço é porque não me sinto à altura de o fazer. Tu dizes que te sentes oco, vazio agora, mas eu Rui, tenho essa doença há um tempo indeterminado; eu quero ser, eu quero fazer, mas não consigo fazer nada, dizer nada. Eu já tentei escrever-te vezes sem conta mas depois chego sempre à conclusão de que não dizia nada e não vale a pena meter uma carta que não diz nada. Rui acredita que sonhei tremendamente com as nossas férias, com o fazer a capa do livro do qual tu eras o autor e ir por esse Portugal que para mim seria por esse mundo fora, vendendo aquilo que tinha sido criado, mas o serviço, o trabalho que eu não gosto, impediu-mo, e eu não senti forças para saltar a barreira. Tens razão: tudo ficou agarrado a uma mesa de café, a um sítio qualquer não importa, importa sim que não consegui ultrapassar as coisas para uma realização e não te ajudei a ajudar-me a ultrapassar isso e é difícil ajudar alguém que não aceita a ajuda que lhe dão.
Desculpa, estou completamente vazia, estou completamente aquilo que não queria estar, estar aquilo que sou, e sou mesmo isto, nada. Mas se sou nada, não posso iludir-me a mim nem a ninguém que sou mais do que isto e é aí que me condeno, acho que te fiz crer que era mais do que sou.
Não consigo dizer mais.
Xau, um beijo
Irene
: põe a direcção completa; a última carta, só a recebi por mero acaso.”
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Carta 6
“Viva Rui! Viva!
Que bom podermos encontrar-nos novamente. Se podes vir é óptimo. Eu estou de férias e tenho andado a saltitar, mas vou estar em Lisboa a partir do dia 1 de Outubro.
Não sei se queres escrever ou telefonar, no segundo caso o telefone de casa é 212746956 e do serviço 217653857/8, extensão 228.
Não vou dizer mais nada agora, vamos marcar encontro à esquina, não é? Bom...
Então, pela nova crença mais perto da vida
Um a b r a ç ã o
Irene”
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Carta 7
“Rui: Olá!
Que o novo ano te traga as maiores venturas e a realização das tuas aspirações, é uma frase gasta, corriqueira e estúpida inclusive, se pensarmos que em cada dia nasce e termina um ano e quem sabe, um ciclo de vida. Mesmo assim apetece-me desejar-te que o período de tempo marcado num simples calendário feito pelos homens e cujo início tem como marco 1/1/19..., seja também para ti um marco do início de realizações pessoais.
Talvez este meu apetite tenha por fundamento o eu ter sentido pela primeira vez a coincidência do virar duma página, a última do calendário e mais uma da minha vida, pura coincidência.
Mas é apenas o virar de uma página, não é mudança, eu não mudei, e sobre isto queria pedir desculpa pois te enchi os ouvidos com esta palavra: MUDEI, MUDEI, MUDEI. Claro que te apercebeste que não tinha mudado não é? Se tivesse mudado não precisaria de gritá-lo aos sete ventos como o fiz, creio que o fazia para me convencer a mim própria, mas não é um facto, é apenas uma hipótese.
Queria agradecer-te as Boas Festas, és maravilhoso, tens sempre algo bonito a dizer, mas apesar de tudo Rui, queria pedir-te que quando escrevesses para mim, escrevesses mesmo para mim.
Eu sei, tu já disseste, que não levasse as tuas cartas à letra, pois que sou neste caso o endereço personalizado das tuas fantasias literárias. Eu sinto-me feliz e honrada pelo facto, mas devo confessar-te que também por vezes confusa, tentando discernir uma palavra para mim.
Rui, manda-me porque eu adoro, a tua literatura nata, mas por favor, a par disso manda de vez em quando um bilhetinho para mim própria, se não é pedir-te muito, e neste momento peço-to porque preciso de facto de uma palavrinha pa mim mesma.
U m grande G R A N D E a b r a ç o
Irene”
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Carta 8
“Olá Rui – Boa Noite!
Talvez seja um pouco tarde para responder às tuas cartas há tanto tempo enviadas, especialmente da última que foi uma maravilha porque foste franco, nem sempre é fácil ser-se sincero, mas tu foste-o comigo e eu te agradeço.
Notei nela, contudo, que algo chega ao fim. O fim do nosso relacionamento (da minha parte tão egoísta), o fim da imagem que criaste para mim e talvez eu mesma de mim própria, mas por vezes é preciso algo morrer para algo de novo nascer. Não respondi a muitas das tuas cartas, porque mereciam mais do que eu na altura podia dar, e a esta última demorou porque tinha de amadurecer primeiro em mim.
Sim, Rui eu não existo, eu Irene imaginada e imaginária não existe mais; essa Irene morreu, mas morreu porque existiu, e existiu graças a ti e a acontecimentos excitantes, mas de facto nada resta dela. Agora existe uma Irene que embora não passe de mais uma peça do xadrez canibal, maquinal, folhetinesco, do carrasco Estado, sendo nada (e é isso exactamente), quero saber mais do que fazer ofícios, mapas, preencher documentos, reescrever minutas, relacionar contas de entradas e saídas, beber copos, vestir convenientemente, ter boa figura e conversas simpáticas ou a propósito, saber jogar pequenas cartadas sociais e manter um ar seguro e determinado, também quero ser eu. Serei eu-nada, mas eu.
No teu Cônscio de que me fiz compreender
Os melhores cumprimentos entendi que puseste fim ao que de facto terminou, e é de cá, deste lado do eu-nada que te agradeço por tudo o que me deste e me ajudou a ser eu-nada; acredita que nunca esquecerei a desinteressada contribuição.
Acredito que irás em frente, de qualquer forma. Do que tenho, o melhor para ti. Um grande abraço, e que a tua fogueira perdure
Irene”
Epílogo
Rui e Irene, quem quer que um ou outra tenham sido, ou uma e outro tenham sido, para não beneficiar o género do narrador, que sem dúvida é masculino, e melhor estabelecerá uma empatia com a personagem oculta, esse de quem não sabemos nada, nenhum detalhe da existência a não ser aqueles que Irene, ao dirigir-se-lhe, nos fornece, dando-nos o seu ponto de vista e respectivamente facilitando-nos o ponto de vista sobre ela, e que ele tem dela, pintando-o de forma fugaz e impressionista, proporcionando-nos uma imagem deveras nebulosa, espectral, do tipo de pessoa que ele é, ou imaginamos que seja, segundo a paleta feminina e sob os traços de Irene, mas que são ambos reminiscências desse passado século dos grandes ideais e das grandes utopias, como das grandes guerras e dos grandes festivais de música, das grandes paradas bélicas como dos grandes inventos e "alunagens", dos acicatados saberes-fazer, dos especialismos e vanguardas às pontualidades minuciosas, que teriam testemunhado como tantos milhões de portugueses também o fizeram, mas que nunca aprenderam a ser, e todavia foram, nem nunca aprenderam a estar, e contudo estiveram, ou por amor entenderam um serviço prestado por vassalagem e suserania, um não-sei-quê em forma de assim, para ludibriar as carências de formação e os defeitos de civilização numa sociedade em constante mudança, esse amor mais propício à abdicação do que à realização, qual almofada de choque para superar o embate com a realidade, em que quase sempre um arrisca tudo, nomeadamente a vida, e ao outro não cabe mais que providenciar a sobrevivência e "despesas" de manutenção dessa relação, superlativamente próprias de uma empresa, sociedade de apelido masculino cuja principal razão de sustentabilidade assiste à transmissão genética de uma família, embora a eternidade (biológica) almejada seja a da mulher quanto a do homem, através dos filhos. E isso, pensaram, lhes bastaria para superarem as incongruências de toda a vida, satisfazendo-os biologicamente e, talvez, dando-lhe a saciedade cultural e criativa consequente ao equilíbrio derivado das relações humanas não equitativas, tão economicamente humanas, que não se realizavam mas antes nelas se investia, sendo uma inequívoca perda ou ganho de tempo, de onde se saiu sempre com a irremediável compensação característica e comum a algo que seria efectivamente bom apenas enquanto durasse. Enganaram-se, é certo, pois que enquanto durou não foi lá grande coisa e, quando acabou, somente deixou um enorme e traumático vazio em seu lugar, um tenebroso buraco negro castrativo quanto ao mister de tentar melhor, procurar uma saída sem dor para o mistério da existência, deixando cada qual à mercê do medo de encetar novas relações e sem a mínima vontade, ou aptidão, para a reciclagem das antigas.
Irene e Rui não têm rostos, faltam-lhes os corpos, são culturalmente omissos, sem medidas, formatos, personalidades, usos e costumes, trajes e tiques, obsessões e residências fixas, indefinidos na época e marginais quanto à vocação. Pouco ou nada se sabe deles, excepto aquele de um intercepta o universo de outro, o que nela cimenta a esperança e ele faz para alimentar as expectativas, que todavia explodem numa nuvem de irrealidade, depositando escolhos de missões por cumprir num mar, invulgarmente, coalhado pelos sargaços da incompatibilidade, mútua ao que parece, uma vez que tanto ele, como ela, preferem iludir o querer sem elucidar e criar o projecto onde esse querer se possa consolidar, sonhar "a coisa" em vez estudar a estratégia para a implementar, desabafar em vez de negociar, afirmar em vez de trocar e/ou partilhar impressões ou pareceres, dizer em vez de dialogar, definir, traçar, gizar caminhos em vez de estudar alternativas, optar por vias, ensaiar consensos.
Ou seja, se adivinhamos estarem ambos em trânsito, desistindo de um caminho falhado e encetando outro igual, logo também propenso ao fracasso, considerando que nenhum analisou a experiência anterior, mas antes cada um se serviu do outro para lhe fugir, sem dificuldade caímos na evidência de que neste rio, além das margens, a água perdura a mesma sob as mesmas pontes, que não ligam "bandas" nenhumas, não tocam a mesma ária, embora se sintam vocacionados para desafinar com idêntico esmero nos mesmos acordes, desacordando, adormecendo em vez de despertar. Ajuizar do quanto estariam errados, ou certos, pouco nos adianta e favorece na actualidade, se não escamotearmos os porquês dessa derrota, como o são todas as relações que, ao estabelecerem-se, mais pródigas se demonstram em ressentimentos do que em afectos genuínos, sentimentos de urgência do que em investimentos e acções de uma empresa de serviços prestáveis, com bónus por perícias várias e prémios por descaramentos ou mentiras não desmascaradas. E, tal como num bom policial, a identidade do criminoso esteve legível desde a primeira linha... Porque o afecto, aquele sal que tempera as relações mais íntimas e profundas, nunca se agradece, retribui-se, e muito menos é confortável – pois desacomoda, inquieta, excita, corta definitivamente com tudo aquilo que tenhamos vivido antes, emprestando nova intensidade a gestos, sentidos e desejos anteriormente bastante suportáveis. É uma companhia cuja ausência nos fica insuportavelmente cara...
Nunca ninguém salvou de nada quem quer que fosse pela via do sentimento de posse, pelo direito de amar, e muito menos se salvarão a si mesmos aqueles, ou aquelas, que se servem de outrem como bóia de salvação para a sua solidão, abandono e incompreensão perante o mundo, considerando que a inequívoca validade do sentir, é nós perdermo-nos mutuamente do quanto éramos, ou supúnhamos ser, e se alguma aflição existencial nos restava por nos desconhecermos, a única que deveras perdurará será a de finalmente nos havermos encontrado reduzidos à felicidade que alguém produz em nós, pelo simples facto de existir, razão que coloca qualquer mérito exterior a essa felicidade e fora de nós. E isso é tudo, pode ser muito bem tudo quanto quisermos que seja, agora o que jamais será é um confortável consolo.
Enfim, no amor como no ser, só amamos e apenas somos, quanto mais nos esquecemos de ser e amar; e exactamente assim é a arte, a literatura: um conto é quanto mais conto, quanto mais se assemelha a outra coisa qualquer, epístola que seja até, da mesma forma que o homem é muito mais Homem, quanto mais se aproxima da mulher.
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