Uma História da Estória



Os condicionalismos teóricos e comunitários dominam-nos. A arte toma validade por não desviar os cidadãos da sua rotina, das subidas e descidas dos transportes públicos, do cinema das noites de sábado, das sextas-feiras de pulo na discoteca da berra, da praia ao domingo, e dos serões de Inverno com boa cozinha e excelente vinho, bem como do contagioso frenesim noticioso dos "jornais" multimédia, expondo a escancaradas janelas a sua miopia prò perto, quiçá a principal razão pela enorme falta de leitura que evidenciam, que à semelhança do greguíssimo Tales de Mileto, exímio em ver longe, para lá das estrelas, não enxergou o poço que havia sob os seus pés, no qual se encharcou até à medula, depois de nele ter caído. Uma estória não leva ninguém a perder o comboio! Porquê tanto barulho? Amofinam-se aos milhares pelos bares e cafés. Iludem-se e dão-se por realizados com mais uma aventura turístico amorosa? Contudo, acham o dinheiro mal empregado se o gastam em algo que tenha mais conteúdo que um galão de gasolina e produza menos CO2. Porquê? Porquê? Porquê esse "pensamento sentido" de que estão a ser comidos e levados quando pagam meia dúzia de folhas impressas pelo preço de uma Cuba Libre? Quem não quer ser estúpido não lhe usa os costumes. Se considerarmos o efeito de uma droga leve, sem mortais consequências a curto prazo, e o compararmos com o de uma ideia expressa cuidadosamente, vemos incontestavelmente, ou apercebemo-nos de várias semelhanças, quer pela frugalidade com que as ingerimos e as caracterizam, quer pela culpa e medo de ressaca que nos restam depois do "pecado" cometido. Portanto, desnecessário é afirmar que o nosso Rum é bebido letra a letra...
«Querem com, ou sem mistura?»


Primeira Parte


ACIDENTE INCOMPLETO

Por: José Luís Cebola


Havia quase duas horas que tinham partido de Casal Parado. Tinham-se cruza e encontrado bastante gente pela estrada, alguns até pedindo boleia; porém, esses outros pediam... eles queriam dar boleia... mas no instante de parar, esqueciam-se de o fazer, ou que o iam fazer, e continuavam viagem. Para trás ficavam jovens furiosos, aos berros e a atirar pedras ao carro, a distanciar-se consideravelmente lesto e expedito, ligeiro e conspirando com os donos na plenitude prazenteira do ronronar da sua cilindrada.
Aqueles dois, homem e mulher, marido e esposa, senhor e senhora, cidadã e cidadão, europeia e europeu, eram uns indivíduos deveras estranhos. Tudo quanto faziam sem pensar terminavam, agora, o pior era quando pensavam em fazer alguma coisa... Então, tornavam-se escravos compulsivos dos seus pensamentos e logo de seguida mudavam de ideias. Lá se ia tudo por água abaixo: faziam pirueta com mortal e encetavam novo rumo à versão anterior, não só diversa dela, senão inversa a ela.
Lena “acendeu” o rádio em FM, mas o marido não gostou da música e numa aceleradela brusca, com o joelho direito desligou o aparelho. E o que era apenas mais um gesto gratuito e machista, de imposição e resposta, de reacção a uma acção feminina, sem aviso nem sondagem ao companheiro (de viagem), transformou-se em prenúncio de tragédia na tirania mútua da relação entre ambos.
«Hoje vens de mau humor...», observou ela. «Começo a sentir saudades dos nossos primeiros dias de casados. Tudo estava bem!... tudo quanto fazias estava bem!... tudo quanto eu fazia estava igualmente bem!... o que dizíamos soava bem. Mas agora?... Sentas-te ao volante, calado, abstracto, só!... E eu para aqui abandonada, a teu lado, à espera que te dignes a dirigir-me palavra. É boa, não é? Parece que estás cansado de viver comigo! E que eu é sou o pomo e causa do teu mau feitio! E não ele o principal motivo das nossas desavenças!»
«Olha, queres uma ideia?» Perguntou-lhe ele desagravando-se e como resposta. «E se cantasses qualquer coisa, como nos bons velhos tempos, uma daquelas canções que tu...
o meu cabelo solto
o meu olhar oblíquo
e o meu vestido roto
voam na tua imaginação
... Sim, sim... Canta. Eras outra!»
Ela também tinha começado a trautear, a cantarolar, e cantou e voltou a cantar enquanto ele a acompanhava ao assobio; e os quilómetros pareceram-lhe curtos, pois estavam como que anestesiados por aquela cançoneta que lhes falava de seus corpos a viajar na imaginação um do outro. Era uma canção que reconfortava os seus cérebros cansados de derrotas; fazia-os esquecerem a vida insatisfeita que levavam juntos. Por isso, foi com alegria que saíram do carro, em Porto Perdido (PP), para beber qualquer coisa fresca e comer umas sanduíches manhosas. Só que aquela alegria por pouco tempo iria durar, como aliás, toda a felicidade que nasce da ilusão, e se deitara por hábito entre eles. Que foi quando veio o empregado, a estender-lhes a conta exorbitante, o que pôs novamente a sua (in)disposição a ferver. Ele pelo montante, ela pela avareza dele e contrariedade manifestada em pagar uma refeição, um momento que tinha agradado a ambos, evidenciando essa tenebrosa faceta do prazer, que só é autêntico prazer, quando somente uma das partes do casal goza.
Então voltaram para o carro a fugir, escapulindo-se e a largar palavrões pelo caminho. Ela fazendo atroar os tacões dos saltos altos no empedrado do passeio, ele resmungando entredentes palavrões e impropérios, gesticulando, esbracejando enfurecido.
Depois...
Ignição, primeira, segunda, terceira, quarta e prego a fundo – a partir daí só fariam o que era costume fazerem naquela viagem... Fariam unicamente o mesmo que das outras vezes que fizeram aquele percurso. Tão-só. E simplesmente.
«Quando chegarmos a Vale de Riba... Um bom banho, umas bebidas frescas, e depois cama», alvitrou ela. «Ah, como vai ser bom!...»
«A chave?»
«Não a tens no bolso?!»
«Não.»
«Então, deve estar na mala. Vou ver...»
«Está?»
«Não.»
«Vê no porta-luvas... Também não?»
«Pronto: achei. Olha! Cá está ela!»
«Logo vi. Merda para as tuas ideias! És sempre assim.»
Continuaram na rota e durante onze quilómetros conservaram-se amuados, vingativamente circunspectos, mudos e calados. Por fim, é ela quem irá romper o silêncio, aliás, coisa pouco original entre os dois, considerando que quase tradição e ponto assente, costume, ser invariavelmente ela quem tenta amenizar o clima e a quem mais afecta a natureza ressentida do amuo, porque também é ela, enfim, a mais inconformada com a ansiedade pesarosa remoída do mutismo comum.
«Sabes?! Não se deve pensar; traz sempre maus resultados.»
«Porquê?»
«Não sei. Talvez...»
«Talvez o quê?...»
«Isso. Vês, já me está a doer a cabeça outra vez», lamentou-se Lena. «Foi por tua causa. Única e exclusivamente por tua culpa. Anda, faz qualquer coisa. Vá!... Pára!!»
«Dói-te menos?» E estancou a viatura.
«Arranca!... Pára! Arranca. Pára. Arranca!... Oh, meu Deus: Pára», berrava ela, com as mãos na cabeça, enquanto Augusto obedecia atabalhoado.
Finalmente a dor de cabeça terminou, com o igualmente inesperado da eclosão: “era dor de mulher...”, como pensava o marido, que bem conhecia esse género de achaques. “As tais dores femininas!!...” – E sublinhava mentalmente o tais das dores, por puro gozo próprio. Privado. E secreto. E vingativamente inconfessável.
A conversa, após o tempo necessário para se reconstruírem um espírito obscuro e uma cabeça doída, tornou-se animadora e um tanto fértil em matéria de pensamento e reflexão. Fizeram análise à sua vida em comum. Perderam momentaneamente o medo de pensar, e tal, levara a que se sentissem tão bem, tão limpos, tão... como eles gostariam de ser sempre. “Maravilhoso! Maravilhoso!”, era uma das frases esguichosas e esganiçadas de euforia, que com maior frequência ouviria qualquer presente “desafortunado” mesmo que desatento.
«Já há um bocado que vivemos como num sonho», opinou Lena, realçando o milagre. «Sempre é bom sonhar!... Se na realidade o que pensamos é quase sempre impossível... Contentamo-nos sonhando. Já é qualquer coisa! Traz-nos esperança!»
«Tens razão... Mas acontece que para um homem o sonho não basta. Tem que existir mais do que isso. A ti, o sonho satisfaz-te? Plenamente...»
«Bem, não é bem assim. Não vivo só de sonhos. Temos carro. Temos um cão e um gato. Temos uma casa, uma casa onde ninguém nos incomoda. E temos uns pais que nos adoram, à sua maneira... Não nos falta nada! Ou isso são só sonhos!?... São?»
«Materialmente, não nos falta nada. Mas não só de pão vive o homem. E o amor dos nossos pais e animais não é suficiente. Isto é muito importante! Agora diz-me: desde que vivemos juntos quantas vezes te sucedeu pensar uma coisa e, logo a seguir, antes que esse pensamento fique registado na tua memória, o renuncies, e comeces a pensar precisamente o contrário? O inverso?! Não têm conto! O mesmo se passa comigo inúmeras vezes ao dia!...»
«Mas que posso eu fazer? Acaso serei eu a culpada de que isso aconteça? Sou?...»
«Quem disse tal coisa?! Apenas queria dizer-te que não podemos continuar assim!...»
«O quê?!! O divórcio...?»
«Não... Isso nunca. Temos é que fazer qualquer coisa. Ou nos crucificamos... Ou atiramos esta cruz para o lado. Agora!, a carregá-la durante o resto dos anos que vivermos é que não pode ser! Percebes? É demais para um homem! Não achas que já chega?!» Ela moveu a cabeça em sinal de anuência. «Então, hoje é o melhor dia para acabarmos com tudo», sentenciou ele, por fim.
Por momentos, ambos parecem reflectir. Planeiam a actuação... Lá adiante, à sua frente, estava uma parede com cerca de dois metros de altura. Servia... Ou...
Acelerado ao máximo, progredindo, o carro aumentava de velocidade. Ela, de olhos fechados, apertava firmemente a cabeça com as duas mãos. Ele, de dentes cerrados, com veias e tendões do pescoço em avantajado volume, mãos aperradas no volante, deixava transparecer um sorriso selvagem.
Ela grita palavras sem nexo. Ele petrifica na determinação. Mas não são um quadro; são um gesto, uma atitude, e acima de tudo, uma decisão. A 160 quilómetros por hora, o utilitário de baixa cilindrada em que se conduziam, embateu no muro sem uma única quebra de andamento por desaceleração, travagem ou redução, produzindo um estrondo superior ao que faria a queda de qualquer arranha-céus californiano. Os seus dois corpos saíram voando por entre os estilhaços do pára-brisas, indo cair num campo de trigo, a dezenas de metros, no outro lado do muro.
Curiosamente, deste acidente, somente o carro ficou sem conserto.
Então, Augusto e Lena levantam-se, sacodem-se e caminham, sorridentes, auxiliando-se na tarefa de se livrarem das raras palhas e sarugas que se agarram aos fatos.
E feito é, que quem os quiser encontrar, quem os quiser ver, quem não acreditar na veracidade desta reportagem, vá ao local de embate, ao quilómetro 270 da estrada entre Casal Parado e Vale de Riba, onde seguidamente eles mandaram edificar uma solarenga vivenda – um monumento à vitória das suas vontades – e donde raramente saem.
Apenas com um senão... é que só ainda não têm dois rebentos rechonchudos e reboliços, porque no acidente, Augusto foi amputado dos testículos. Mas pensam seriamente em adoptar um casal de filhos duma família pobre das redondezas.


Segunda Parte


OS TESTEMUNHOS


Primeiro Testemunho

Conheci o Autor precisamente na mesma data que ao Augusto e à Lena. Penso, sinceramente, que o A. foi cruel, demasiado pessimista e insolente em relação à vida do casal. O que se passava, na verdade, nada tinha assim de tão catastrófico. Eles eram somente mais um par em que nem ele, nem ela, se assumiam como marido e mulher, o que suscitava situações conflituosas de pouca monta. Nós discutíamos amiúde os porquês das suas atitudes, e fomos sempre divergentes. O A. considerava a problemática de uma forma extravagante e atribuía à determinante social e económica a total responsabilidade pelos seus comportamentos. O facto de eles serem filhos únicos de burgueses provincianos, de não precisarem de lutar para sobreviver, dizia o A., é que os levava a inventar barreiras no quotidiano que os impossibilitava de alcançar gozo com o prazer, ou angústia com a dor. Nunca vi com bons olhos essa suposição... Para mais sabia que a educação do A. não fora religiosa (nunca assistiu a qualquer missa, jamais se confessara e nem o Pai Nosso sabia!) o que, como é óbvio, o induzia a desprezar o aspecto estritamente humanitário e moral do ocorrido. Do que Augusto e Lena mais careciam era de paciência! Fé e compreensão! Dias houve em que os encontrei extraordinariamente, repito: ex-tra-ór-dii-nná-ria-mente!, felizes. A Lena era nervosíssima. Imenso. O Augusto também, é claro. Só apareciam quando não havia achaque de maior, mas eu fui imensas vezes à casa deles, e, à Lena principalmente, foram inúmeras as alturas em que lhe servi de confidente. É por isso que estou mais à vontade! Ela sempre teve problemas de ovários e durante o período menstrual sofria dores horríveis, hó-rrí-véis!, ficando inclusive com a pele, a facial era mais!, lacerada e cheia de borbulhas. A. dizia que a ocorrência não tinha significado e em pouco isso podia alterar as suas maneiras de ser. Mas não! Não é assim! A Lena possuía um sentimento de culpa bastante vincado pelo mau humor do Augusto, tendo por base esse facto. Achava-a insuficiente sexualmente, ou qualquer coisa no género, e embora não precisasse de vestir bem para seduzir qualquer homem, porque era muitíssimo bonita, fazia-o. E de forma ex-tra-or-di-ná-ri-a-mente agradável! Já se vê que no mundo actual, uma pessoa como ela, de imensamente grandes olhos castanhos, cabelos fortes, ondulados de preto asa de corvo, lábios grossos, dentes certos e favudos, entre o metro e cinquenta e o metro e sessenta de altura, musculada, rosto oval, com boas maneiras e suficientemente inteligente para manter uma conversação simpática e culta, jamais precisaria de tais apetrechos. Aliás, só os nervos podiam justificar os seus medos, e medos que considero incoerentes, absolutamente infundados!... Hoje, francamente, vejo-os assim. Na época apenas o entendia como absurdos e complicados! Ao Augusto não faltou bom gosto... Achei-o divertido, com sentido prático, espírito de observação, saudável e imaginativo – enfim, atraente. Atlético latino! Conhece, não é? Mas à excepção do futebol e uma patuscada de quando em vez, muito caseiro e agarrado. Esporadicamente autoritário e embirrento; nunca teimoso e bastante sentimental. Até romântico. Tinham bons empregos e raramente faltavam. Eram bem considerados, e influentes social e profissionalmente. A Lena trabalhava numa repartição de finanças, e ele como funcionário administrativo dos CTT. Têm o sétimo ano. Ambos. E foram colegas antes de casar... A casa onde viviam tem boas comodidades, e várias noites lá dormi. Passava-se o serão conversando, se havia artigo de jeito na TV, que até era digital-plus e tudo – e também tinham vídeo! –, ou vendo filmes. Ouvíamos música, bebia-se para desinibir, e nunca depois das duas da manhã, sossegava-se. O ritmo quotidiano não era mauzinho... Regras? Algumas! Mas no que estavam mais selectivos, era na escolha de companhias e amigos. Nem toda a gente lhes servia... Não gostavam nada de excêntricos, e, tanto os intelectuais como os demasiado estúpidos, não eram lá muito do seu agrado. Mas adoravam-me! Até me arranjaram emprego! Cuido que para além dos pais, era eu a sua preferida!... Talvez imerecidamente, claro. Nunca se sabe... Mas retribuí! Possivelmente, não de acordo com as suas expectativas, mas de uma forma compreensível para as minhas possibilidades. Dei-lhes um quadro autêntico, au-tên-ti-co!, repito: au-tên-ti-co!, do Abel Salazar, que foi mais tarde avaliado em 150 contos – e que era da minha tia Alice, que falecera pouco antes de os conhecer... Uma solteirona recatada e fina que nem uma raposa!...

Segundo Testemunho

Sou amigo do José Luís Cebola (JL) desde a escola primária. Costumávamos fazer os trabalhos de casa juntos, e após eles, íamos prà retouça os dois. Jantávamos igualmente juntos; umas vezes na minha casa, outras na dele, e se um estava em aflições, o outro também. Éramos uma espécie de gémeos não naturais (nem biológicos). Depois do secundário, quando começámos a namorar a sério, é que se tornou mais ocasional a nossa companhia. Lembro que quando fiz o exame da quarta classe o meu pai deu-me uma viola por prenda; cantámos então muitos poemas dele, sendo meus os arranjos musicais. Era uma boa parelha! Não conheci pessoalmente o Augusto e Lena de quem ele fala, e desconfio que nunca existiram – é tudo invenção dele! Aliás, para quem o conhece como eu é fácil depreender tal... Tem uma filosofia de vida danadinha! Diz ele que a existência de uma pessoa se encontra resumida num globo, em que, sendo um hemisfério o espelho do outro, se entra de acordo com o grau de verdade ou autenticidade de que somos capazes. E por Verdade entende ele o resultado da função cujos termos são a Lucidez, Objectividade, Disponibilidade e Apoio-Exterior: V=f(L,O,D,A-E). Pensa que os principais valores humanos são a liberdade, o bem-estar e o amor, a segurança, a imaginação e o amor, o poder físico, a saúde e o amor, o trabalho, a sabedoria e o amor. É uma porra, porque mete o amor em tudo! E na dele considera que quanto maior for grau de Verdade, maior será o grau de amor conseguido, que é o capital essencial, suficiente e necessário, para produzir tudo o resto. À parte isso, dessa teoria chata, tinha alguns acessos de ironia e fazia escritos interessantes. Passo a ler um, que encontrei há dias num dos livros do ciclo, no de geografia.
“O homem que andava a correr atrás da memória e tudo registava num bloco notas virou-se para o burguês, e disse (no fim de reflectir três vezes):
«Ora amola-te, que és pífio!»
Sim: que lhe importavam os feitos de um sacana que gostava de seduzir mulheres para se masturbar na frente delas, isolado na sua Ilha dos Amores, deixando-as amarradas e nuas até que ejaculasse o esperma nos dedos suados e peganhentos? Hãn, que lhe importava?!...”
Se lia?... Também. Líamos os dois. Tínhamos até uma técnica para nos ficar mais barato, isto além de usarmos a Gulbenkian, que era a de comprarmos os livros a meias, e que vendíamos, para com a receita voltar a comprar outros. Recordo que o livro que mais nos encantou, porque era estúpido e sem interesse nenhum, foi o DE BATA BRANCA, do Dr. Sem Pio. Era por demais fascissizante e ridículo. E fumámos droga, sim senhora. Liamba e haxixe. Às primeiras passas só os dois, mas, não sei bem por que carga de diabos!, simpatizou com uma fulaninha de nome Fátima – um nome que tem tanto de santo como de rafeiro, já que é árabe, e tem um culto celta com ritual católico – ou Fatinha, como ele lhe chamava, uma tipinha pequenininha, lourinha de olhos azuis, grandes de água e céu, e muito vivos, que depois de ele lhe ter feito um poema meio roskov, também alinhou. Ainda tenho esse soneto palerma, de pés quebrados, a que costumávamos chamar fodeto, dado a tantas F... que a ambos proporcionou.
Anda! Vamos fumar este porro

Anda! Vamos fumar deste cigarro a meias...
Há-de ter a doçura de um sonho todo vivo!
Há-de ser pequeno, castanho-alourado, cativo,
E lábios gostosos, num mundo de luas cheias.

Anda! Hoje o trabalho não vai ter velhas feias...
Faremos o mundo à nossa medida... no diminutivo!
E com esses grandes e lindos olhos de amor inventivo
Viveremos num jardim verde de fumo sem peias,
Como se vêem nos teatros ambulantes de marionetas
Dos vagabundos que nos encantam pelas tardinhas
Em que se regressa a casa por ruas ao carinho despertas.
E assim... silenciosos, enquanto o sol declina,
Camisa de xadrez e calças de ganga apertadinhas,
Este porro vai saber-nos a amor de boneco com menina!...


E tem piada como nesse tempo nos achávamos magestosos conhecedores das profundezas humanas e boémias! Os copos, as farras de grupo, as discussões académicas, ou pseudo-académicas, como lhe queiram chamar!, absorviam-nos grande parte do dia a dia; e assim, onde houvesse debate aguerrido, a penada da sapiência exibicionista, era dito e feito nosso. Que nem ginjas! Gostávamos de criar a confusão, e depois, ala que se faz tarde! Ridiculizávamos pessoas e situações, autoconvencidamente, claro está!, mas quem estava a ser ridículo, não haja dúvida, éramos nós. Há alguma coisa mais parva do que a competição mesquinha sem frutos monetários? À viva força, não era ao jeito, nós tínhamos que ter sempre razão. Para modelo de bons portugueses, cá estávamos nós pelos ajustes! Pelintras, mas felizes!... Má fé, gozões e egoístas; eis as tábuas. (Pouco mais que rasas!) Curtidos? Também. Filiações partidárias? Três: PCP, PS e PPD/PSD. Jogávamos de tripla num emprego! Ementa preferida? Pudim. Horas de retornar a casa? Quatro horas da matina, como ideal. Saída das aulas: 9 e 15 t.m.g., da madrugada quero dizer, se pudéssemos – um quarto de hora, como q. b. de cozedura, e aprendíamos tudo. De afianço!!


Terceiro Testemunho
(Augusto Cera Preta)

Sou um homem de bem. De bem, ouviu?! Esse gajo nunca teve boas ideias. Parvo fui eu em o admitir à nossa mesa! Metediço! E gingão, farejando a Inês. Percebi-o desde o primeiro dia. E cortei-lhe as voltas!... Dela, não levou nada! Isso lhe garanto eu! Adivinhei-lhe o pensamento, mas nunca esperei que fizesse o que fez. Tratámo-lo como é hábito a toda a gente, educadamente. Emprestámos-lhe dinheiro quase todos os meses, no fim, porque não ganhava e a mesada era curta. Conheceu bastantes pessoas através de nós, e nunca lhe demos o mínimo de trabalho. Acha que merecíamos ser assim tratados?!... Festas a que íamos, desde que pudéssemos, convite também para ele. Boleias que lhe arranjávamos, não têm conto. E o besta é assim que nos agradece?! Nos retribui?! Foi mais uma lição: pronto, há pessoas a quem se não pode dar confiança. Vê-los?!, só pelas costas!... Ainda se precisássemos dele... Pois. Mas não! Era ao contrário; ele é que precisava de nós. Depois, toma! Parece-me que até se drogou, e tudo. Se calhar veio daí a baixa moral... Quem sabe! Esses fulanos não têm a mínima consideração por ninguém; nem pelos próprios pais, lhe digo eu!... Olhe, posso contar-lhe o que se passou no dia em que fizemos a festa dos dez anos de casados. Foi há cinco anos, se me não engano... Foram comprados frangos, lagosta, camarão, carne de porco prò churrasco, doces, um bolo, e, depois de tudo preparado, fomos buscar a Inês, o José Luís, a Antónia – amiga deste último – e o Alberto, que é meu primo. Às sete horas, mais coisa menos coisa, estávamos à mesa, bebendo vinho vermute e trincando outros aperitivos. Enquanto se não embededou ninguém o ambiente foi de graçolas, alegre e sem (a)tropelias. Mas logo que o José Luís se enfrascou?... Bom. Diz o povo que se queres conhecer o coração do teu vizinho, dá-lhe pouco pão e muito vinho, e é bem certo!... Primeiro, começou por vomitar os cortinados; depois foi com a António para a minha cama, onde fizeram o que lhes apeteceu, e com o lápis de sombras de Lena escreveram as paredes do quarto com frases do tipo: “Antónia! Antónia! Este quarto está surpreendido!; Viva a masturbação de dez anos! Punheta a dois e jura de Bíblia!; Que é melhor? Maricas com lagosta ou lagosta de maricas?; Casamento e Estado – impotência bonificada!” A sorte foi eu não ter visto aquilo, a não ser no dia seguinte... nunca mais lhe falei. Que faziam vocês se convidassem para vossa casa um fulano e ele vos fizesse o mesmo? Sim: que fariam, hãn?!... O tipo é asqueroso, e o que escreve tem que sê-lo como ele. É obtuso, pedante e complexado. Debaixo daqueles olhos de marrã mal morta, castanho postiços, cabelo cerdoso de barrasco de montado, luzidio, viscoso, sempre aprumado, como quem engoliu um espeto, e preocupado com o vestuário, vaidoso, rosto de fuinha bicuda e corpo franzino, está um verme indesejável. Era bom que todos o soubessem... Compreende? Era mesmo muitíssimo bom... Para se precaverem!!...


Quarto Testemunho
(José Luís Cebola)


Aquilo não foi uma questão de inveja, nem de ciúme. O que se passava era isto: eu andava bestialmente apaixonado pela Inês, e eles, na sua ingenuidade e mesquinhez, porque de burgueses não lhes faltava nada!, davam-lhe uma protecção que ameaçava o êxito da conquista. Seria para mim mais uma mulher ou não? Não sei... Mas que eu tinha que os deitar abaixo, e levá-la a perder a confiança e suposta amizade “desinteressada” do Augusto e da Lena, lá isso tinha! Andava exaltado e inseguro, e via-os a ganhar terreno. Ia hesitar?! Qual quê! Se os fins são de valor, os meios não precisam de justificação. Honestidade, amizade, pudor, moralidade e outras que tais, são tudo balelas! Por outro lado, tinha uma necessidade imperiosa de vingar sobre o pessoal com quem convivia e discutia literatura, arte e assim por diante. Eles falavam, mas eu faria. Eles falavam, muitas vezes com mais senso do que eu, confesso, mas eu queria rematar a conversa com um simples “afinal, quem é que é aqui o escritor?!”, de lhes barrar o diletantismo com uma autoridade. Queria impor-me, arranjar uma posição de destaque, e ficar com um campo próprio de actuação. A ocasião pareceu-me propícia, e fi-lo sem mais nem aquelas. Em relação à Inês, quis que fosse ela a tomar a iniciativa de considerar o casamento um estado enfadonho e tedioso, rotineiro, somente interessante e atraente nos primeiros dias e meses. Havia medo em mim, pois havia! Ainda hoje o tenho. A queda do amor, o deixar de gostar de alguém ou o deixar de ser amado, é um facto que me assusta brutalmente. Talvez este medo seja só meuinho e de mais ninguém, ou até tenha muito de doentio; mas o que é certo, é que ainda agora o sinto. Um contrato é um contrato: então, porque é que o casamento há-de fugir à regra? O idealismo, o amor eterno, o platonismo, impuseram esta faceta; estava na hora de alguém pensar e agir pelo modo contrário! Foi o que fiz. E não estou arrependido, embora não tenha conseguido engatar, vá lá, porque não este termo?, a Inês. Aliás, Estórias... Quem as não faz? A imaginação das crianças prova que ninguém precisa de diploma para inventar pequenos universos onde alguém ou algo se move e actua, fala e pensa, cria, procria e morre. Defendia eu à data. E se em primeira mão o fazia para atacar os compinchas mais intelectualizados, em segundo plano dizia-o para encontrar uma vulgarização que desse uma margem de erro onde pudesse evoluir, sem ficar bloqueado pelo medo de errar. Inês idolatrou escritores modernos, acatou e interiorizou muitos conceitos deles, e tentou sempre sobrepô-los à estimativa popular (e nossa). Não gostei. Foi uma provocação... Daí, que a posição tomada não passou de uma defesa. Uma defesa avançada, como se diz no futebol. E dei livre curso aos meus impulsos. Apoiei-os com o pensamento. E esta táctica nada teve de maquiavélico. Se todos fazem o que querem, um estoriador também não tem que submeter-se a padrões limitativos. Desde que historie a dor! A literatura é aquilo que os homens de letras quiseram que ela fosse. Para mais, pouco me importava que os leitores gostassem ou não, compreendessem ou criticassem, usufruíssem ou aniquilassem, a conclusão ou tese tentada. A certeza de que Inês não iria ficar indiferente, saciava-me. A busca de um querer-sem-querer, para futura desculpa, conduziu-me ao género. O propósito era claro; urgia que o meio o fosse igualmente. Augusto e Lena eram nossos conhecidos, e, como o processo descritivo é moroso, sendo unicamente perfeito após apresentar uma panorâmica pormenorizada, facilitavam-me a tarefa. Foram peças fundamentais no tabuleiro onde jogava – o romantismo prosaico. O sonho de todo o artista é produzir uma bela mentira rodeada de verdades eternas, e delas suspensa (quase). Que sirva de medida na qual a verdade se iguala, por comparação. É falso pensar-se que já foi escrito tudo quanto era possível narrar-se – e equivale à morte da arte. Faria dela um lago estagnado na imaginação do homem. Quem não consegue imaginar o suficiente para voltar a amar de novo, está acabado! E era isso que eu queria... Voltar a amar, a render-me, a sentir que pertencia a Inês; consegui-lo, perdoava-me de tudo, absolvia-me das atrocidades cometidas. Foi o que foi.


Quinto Testemunho
(Lena Garbo Greta)


Desculpe, mas não me apetece falar disso – foi um grande susto – estou chateada – fui violada – mas agora o que me preocupa são os meus pais – por nada deste mundo eles podem ler a escabrosa estória – não sei o que hei-de fazer – sabe de algum bom cardiologista? Não há médicos de jeito em Portugal! – Gosta de cinema? E flores? Já conhece esta variedade? São goivos. O meu único gáudio. Temporões. – Mas o que é que quer? Bolas!! Julga que vou pôr-me prà’qui a falar, falar, falar, falar, enquanto você exibe esse sorriso idiota de quem está aqui a assistir a uma representação de fantoches?... Pois está enganado. E muito! ISTO É ESTÚPIDO. Onde já se viu um quadro tão imbecil? Vá... Diga. Apetece-me bater-lhe. Dão-me ganas de esbofeteá-lo até ficar cansada. Sabe?, você está a irritar-me. Pensa que vai ficar mais gordo depois de o conseguir? Vá à fava, homem! À fava! Vá-à-fá-va!! Ouviu? – Bem, não quero que fique com má impressão minha. Mas estou ofendida, sabe? Fui violentada na minha dignidade!... – Mas pronto: Desculpe. Desculpe, pois estava a ser pateta. Vamos lá, então! O Zé?... Ora! É um asténico. Um indivíduo que quando se lhe mete uma coisa no caco, não há quem lha tire. É uma personalidade orgulhosa, desprezível, mas submisso e subserviente quando lhe interessa, e muito virado para as coisas da alma. Ou daquilo que ele pensa que ela é. E quando queria até conversava ou desenvolvia ameno contacto. Gostava que a malta lançasse louros às suas tiradas intelectualóides. Bastante oportunista... Não deixava escapar uma oportunidade de se autopromover e publicitar. Talvez vá longe! Só as pessoas boas é que nunca têm sorte. Essa é que é essa! Não tenho diploma para o poder afirmar que às vezes se comportava de forma patológica, mas posso dizer que representava muito bem o papel de agressivo catatónico e doentio. Mantinha uma agressividade constante, e mesmo quando não lhe frustassem os desejos. Molestava-nos, espicaçava-nos, fazia-nos sentir mal propositada e gratuitamente. A ironia não lhe era alheia. Nem o sarcasmo e o vilipêndio. Discutia com as pessoas, sem mais nem menos, só por discutir, e quando as via exaltadas, deixava-as, sorrindo presunçoso, apresentando um ar de satisfação de quem tem o dever cumprido. É lógico que sendo assim como é, quis foi rir-se à nossa custa. Mas exagerou... Não haja dúvida. É inconcebível, depois de quanto por ele fizemos. Não só pelo apoio material, como também pela consideração que lhe emprestámos. A credibilidade. E que ele mais tarde destruiu. As influências perniciosas... As más companhias com que andava contribuíram razoavelmente para agir dessa forma, vil e egoísta como agiu. Andava com toda a espécie de marginais: ciganos, drogados, prostitutas, traficantes, rafeiros de rua, rockeiros e sabichões. Acompanhava com os campónios, de tasca em tasca, gente sem escrúpulos, e políticos radicais que servem exclusivamente para lançar a confusão. E isso nunca poderia dar em nada de bom. O que se viu! Pois deu no que deu...











Post Scriptum





Guião de reportagem, exploração exaustiva de uma notícia sensacionalista, story-board para prancha de vanguarda, documentário sobre uma infelicidade travestida, jogo de espelhos (entrevistas) para uma experiência psico-sociológica de reflexão sobre os (des)afectos interiores evidentes no desenvolvimento da (re)ligação entre as duas metades de uma alma controversa, qual composição em art deco para a geometria do stress, enciclopédia habitável de nós todos, condomínio fechado do existencialismo actual, tão prudente quanto senil numa humanidade esgotada de soluções de desagravo e desculpa perante a Vida, que está aqui propositadamente com inicial maiúscula, porque mais que mais que substantivo é substância, mais que verbo é símbolo, mais que palavra é valor; perante a urgência capital de converter a humanidade desempregada, ou mal empregada, desperdiçada, que merece melhores arrelias que essas inventadas por pessoas compulsivas que até para respirar precisam de tomar balanço, e mesmo assim saltam de olhos fechados por terem medo do que vai suceder a seguir. Pessoas que se servem daquilo que a sociedade põe ao seu dispor, não para criar ou usufruir, mas para impedir que outros criem e sejam felizes exactamente por isso, que fizeram das suas vidas um inferno pegado de que apenas sentem alívio quando estão a infernizar a vida dos demais, que por terem o quanto esses outros não têm, em termos materiais, incluindo um trabalho útil o efectuam somente quando podem vingar-se e recompensar dos seus ressentimentos por alguém, fazendo o bem se com isso puderem fazer mal a alguém, comunicando com este e aquele para marcar a diferença, acentuar o desprezo por aquestes e aqueloutros, dando a uns se puderem roubar a outros, emprestando o que nunca foi deles e investindo para benefício próprio aquilo, o recurso, que todos produziram mas lhe deram a guardar, a fim de melhor o administrar e rentabilizar.
Poderá ser um capital valioso esse, o da cultura e do entendimento entre os géneros, se não for travado como uma batalha, um trampolim sexista para voar rumo a idealismos castrativos, que nada de belo manifestam se exceptuarmos deles o fotograma imediato desse filme onde se armazenam todas as frustrações e incapacidades humanas, facturadas no quotidiano com que aspiram subir na vida amarfanhando e destruindo o labor, empenho e qualidade dos seus semelhantes. Colmatar a sua insuficiência para o amor, tiranizando os que se aventuram a considerá-los dignos de respeito e afecto, de ternura desinteressada e comovida. E que, mais que tudo isso, tentam desesperadamente dominar, submeter, aprisionar, censurar, escravizar quem diga livremente aquilo que eles não autorizaram que fosse dito, quanto denuncie o seu inferno, o muito que se apostaram evitar e calar toda a vida: que só deixarão de sentir claustrofobia mental quando encerrarem todas as Ágoras no mesmo bunker de peste emocional que construíram para si e para o seu medo de Viver.
Na história da estória entre Lena Garbo Greta e Augusto Cera Preta, há o fluxo e o tabu da história popular feminina, sobretudo desses meios supersticiosos consentâneos ao realismo mágico, onde as mulheres são o produto da maldição a que os homens as votaram, que as levou a esconder a sua menstruação na metáfora, dizendo que estão com a história quando querem dizer que estão com a menstruação, pois é crime grave estar indiferente aos efeitos da fertilidade viril, não se ter rendido a sua feminilidade perante o sedutor poder do espermatozóide valente que amarfanhou, venceu, derrotou e aniquilou a vontade e êxito dos seus gémeos, ejaculados pelo mesmo orgasmo. O mesmo embate contra o muro a alta velocidade, o mesmo clímax resultante desse acelerado movimento rumo à morte, o mesmo acidente incontornável de que potencialmente eclodirá uma nova vida, ou uma nova ilusão dela, outra teórica ficção dela, tal como se costuma chamar ao conto, a propósito do qual muitos já disseram, entre os o quais me incluo, serem as duas únicas coisas que lhe são superiores – a teoria, e o conto. A motivação e a fantasia. Enfim, a ideia e a sua concretização.

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