Cultura e Civilização, o que são?
A Generosa Perfeição da Dúvida
"Ó deusa Sol de Arina, rainha de todos os países!
No país hitita, tens o nome da deusa Sol de Arina,
Mas no país que tu fizeste país dos cedros,
Tens o nome de Hegat!"
da Tabuinha de Puduhepa
Se até quanto à denominação dos mesmos deuses nos sucede às vezes adorar um sob o nome de outro, ou outro com igual nome daquele que invocamos, então, a mínima dúvida há de ser sempre preferível à maior, absoluta e mais preciosa e pura das certezas, no X de um voto sobre o quadrado da existência.
Desconheço quais sejam, efetivamente, os motivos e argumentos que levam alguns pensadores da atualidade a separar o conceito de cultura do seu congénere, o conceito de civilização, posto ser impercetível a fronteira entre ambas, cujas funções e estrutura se igualam e identificam, como igualmente se aplicam ao quotidiano, na sua crítica à natureza, principalmente à natureza humana, se no universo da ética navegamos, afastando cada vez mais o indivíduo das suas origens, ou o homem do animal que deriva e o suporta fundamentalmente.
Entre muitos que assim fazem, conheço eu um, que não nomeio, pois como os demais desta fornada, é dos que gostam de interpretar cada crítica às suas afirmações como um ataque pessoal, uma ofensa, uma injúria, não obstante número de diplomas e certificados académicos que tem em carteira, que o faz, fazendo-o como muitos antes e provavelmente outros tantos depois dele o farão, garantindo que «um indivíduo culto é o que possui abundantes bens de espírito; [e] um indivíduo civilizado é o que faz uso desses bens no decorrer do seu viver diário», tal como nós costumamos separar os portugueses (provincianos) pela sua opção religiosa, dizendo que todos são católicos, embora apenas alguns sejam praticantes, querendo com a especificação sublinhar que do total dos batizados como tal, só uma pequena porção cumpre os preceitos da hóstia, assistindo aos cultos e participando nos rituais.
E fá-lo sem o mínimo pejo ou qualquer receio de estar menos correto, quiçá, errado mesmo, uma vez que ao fazê-lo também o afirma, oralmente e por escrito, sem temer o risco que corre quem se habituou há muito a ter razão, ser incontestado, que quando a não tendo, supondo essa remota como remotíssima hipótese, então sabe que lhe advirá o consequente apoio de Deus e da Fé, que a tornam elástica e extensível a tudo e todos quantos sob o Sol se erguem desde há, pelo menos, dois mil anos, que é a idade do antropocentrismo cristão à face da Terra. Trigo limpo, farinha Amparo.
Todavia, o busílis não residiria em haver alguém superiormente formado dizer "tamanha verdade", senão em haver uma longa prol de bem formados e melhor pensantes que o subscrevem, citam, repetem, ou até defendem e propalam, seus discípulos, por considerarem que assim estão a fazer (e dar) o seu melhor na formação dos futuros quadros da portugalidade, reivindicando não só estarem a ajudar a edificar o espírito e clarificar as vontades daquelas gerações sobre as quais, sem a menor dúvida, recairá o ónus da responsabilidade dos desígnios nacionais, da gestão da riqueza e do bem da nação, da sustentabilidade cultural de um povo com oito séculos de história – e civilização –, como também a contribuir para a qualidade mental e psicológica da lusofonia, cujo período de validade expirou nos meados do século passado, em virtude da hegemonia global do inglês e pensamento anglossaxónico, com fortes indícios já espelhados na queda da Bastilha e o ressurgir do humanismo existencialista, nem sempre atreito à transmissão/disseminação de valores seculares de incontestável primazia como a Igualdade, a Fraternidade e a Liberdade, tão queridos aos patrícios do quarto império (romano) quão prezados pelos conquistados e vencidos do terceiro império, em Atenas sediado, e na retórica da ironia/mauêutica celebrados, pela verve socrática e platónica difundidos, refinados, apurados, e multiplicados na sua heurística (pro)criadora.
Portanto, a gravidade, nesta problemática, como noutras similares, não está no facto de alguém pensar assim, ser aplaudido, publicado e publicitado por isso, etc., etc., mas exactamente na constatação circunstancial de ninguém ousar vir a terreiro "denunciá-lo" como inconcebível e prejudicial, socialmente negativo e antidemocrático, lamentar a sua lucubração na noite provinciana do subdesenvolvimento nacional, e alertar para as consequências nefastas da proliferação deste tipo de clichés na edificação basilar de uma sociedade, por medo de retaliação censória e inquisitorial, ou sujeitos à acusação de heresia, escondendo, ou desconhecendo, que as ideias – e sentenças –, por mais toscas e tacanhas, desde que se não discutam e não suscitarem o dialéctico confronto, tendem a perder a sua principal razão de ser, motivo de génese, que é a faculdade de espevitar a luz, gerar conhecimento que nunca poderá ser passivo nem de cómoda aceitação, porquanto os conceitos de civilização – "conjunto complexo de fenómenos sociais, de natureza transmissível, apresentando um carácter religioso, moral, estético, técnico ou científico e comuns a todas as partes de uma vasta sociedade ou a várias sociedades relacionadas entre si", conforme avisa o Dictionnaire de Philosophie, de Lalande –, e cultura – "a totalidade dos comportamentos e artefactos de uma sociedade, na medida em que esses comportamentos e produtos podem ser apreendidos e partilhados", segundo a opinião de Ralph Linton, por exemplo –, acarretam em si uma responsabilidade formativa bastante superior a qualquer outro conceito que esteja associado às normas e atitudes de socialização sustentável, contínua, positiva e eficaz, uma vez que lhe é inerente a qualificação da arte, da tecnologia, da ciência e do pensamento que estruturam o desenvolvimento de um povo ou de uma região. A guilhotina ou as SS nazistas de Hitler, são elementos de uma civilização, é claro e inegável, porém a cultura que os gerou e valorizou é a da morte e da opressão, que de todas as conhecidas é a menos desejável em termos sociais, nacionais, europeus ou globais.
Um indivíduo civilizado e culto não é somente aquele que tem bastos conhecimentos e os utiliza no dia-a-dia, mas sim aqueloutro que tendo-os igualmente escolhe entre eles os que sendo-lhe úteis a si, não prejudicam, e antes beneficiam os demais, o ecossistema, o habitat, o seu nicho como a totalidade da humanidade e ecosfera.
Confundir, propositadamente (!), cultura com propriedade, e civilização com a exploração dela, não se me avizinha serem as melhores formas de demonstrar o grau, ou nível, de maturidade e consciência ética com que se está em ambas, outrossim expressam quanto elas têm sido confundidas com o amanho das terras atreito ao mediavelismo bucólico e selecionista deserticador das mentes e tutanos lusófonos, que nos atiraram para a mediocridade vigente, posto que se há produtos culturais e conteúdos como produto de cultura, pelo menos todos aqueles que sendo matéria o não sejam exclusivamente, sendo também espirituais, alguns de elevado teor civilizacional, o que é certo, embora sempre entendidos como plataforma de intercâmbio, de transbordo, de navegação, de interface, entre o mundo físico e o mundo ideal, eles jamais serão propriedade alguma, seja de quem for, a não ser do entendimento, da compreensão, e nunca uma propriedade palpável, rotulável, atestável, com cadastro e diploma, passível de ser arroteada e explorada, como filão aurífero ou poço de crude, e sim veículo de aproximação entre o conhecimento do sujeito e o objecto cognoscível, sem outra deriva civilizacional além da curiosidade metódica e cientificamente condicionada, que assistem a quem esclarecidamente está disponível para contribuir para o bem-estar e felicidade geral, porquanto deles dependem impreterivelmente os seus. E isso é tão velho como a Lei dos Profetas, já pré-bíblica e anterior ao (Grande) Dilúvio!
"Ó deusa Sol de Arina, rainha de todos os países!
No país hitita, tens o nome da deusa Sol de Arina,
Mas no país que tu fizeste país dos cedros,
Tens o nome de Hegat!"
da Tabuinha de Puduhepa
Se até quanto à denominação dos mesmos deuses nos sucede às vezes adorar um sob o nome de outro, ou outro com igual nome daquele que invocamos, então, a mínima dúvida há de ser sempre preferível à maior, absoluta e mais preciosa e pura das certezas, no X de um voto sobre o quadrado da existência.
Desconheço quais sejam, efetivamente, os motivos e argumentos que levam alguns pensadores da atualidade a separar o conceito de cultura do seu congénere, o conceito de civilização, posto ser impercetível a fronteira entre ambas, cujas funções e estrutura se igualam e identificam, como igualmente se aplicam ao quotidiano, na sua crítica à natureza, principalmente à natureza humana, se no universo da ética navegamos, afastando cada vez mais o indivíduo das suas origens, ou o homem do animal que deriva e o suporta fundamentalmente.
Entre muitos que assim fazem, conheço eu um, que não nomeio, pois como os demais desta fornada, é dos que gostam de interpretar cada crítica às suas afirmações como um ataque pessoal, uma ofensa, uma injúria, não obstante número de diplomas e certificados académicos que tem em carteira, que o faz, fazendo-o como muitos antes e provavelmente outros tantos depois dele o farão, garantindo que «um indivíduo culto é o que possui abundantes bens de espírito; [e] um indivíduo civilizado é o que faz uso desses bens no decorrer do seu viver diário», tal como nós costumamos separar os portugueses (provincianos) pela sua opção religiosa, dizendo que todos são católicos, embora apenas alguns sejam praticantes, querendo com a especificação sublinhar que do total dos batizados como tal, só uma pequena porção cumpre os preceitos da hóstia, assistindo aos cultos e participando nos rituais.
E fá-lo sem o mínimo pejo ou qualquer receio de estar menos correto, quiçá, errado mesmo, uma vez que ao fazê-lo também o afirma, oralmente e por escrito, sem temer o risco que corre quem se habituou há muito a ter razão, ser incontestado, que quando a não tendo, supondo essa remota como remotíssima hipótese, então sabe que lhe advirá o consequente apoio de Deus e da Fé, que a tornam elástica e extensível a tudo e todos quantos sob o Sol se erguem desde há, pelo menos, dois mil anos, que é a idade do antropocentrismo cristão à face da Terra. Trigo limpo, farinha Amparo.
Todavia, o busílis não residiria em haver alguém superiormente formado dizer "tamanha verdade", senão em haver uma longa prol de bem formados e melhor pensantes que o subscrevem, citam, repetem, ou até defendem e propalam, seus discípulos, por considerarem que assim estão a fazer (e dar) o seu melhor na formação dos futuros quadros da portugalidade, reivindicando não só estarem a ajudar a edificar o espírito e clarificar as vontades daquelas gerações sobre as quais, sem a menor dúvida, recairá o ónus da responsabilidade dos desígnios nacionais, da gestão da riqueza e do bem da nação, da sustentabilidade cultural de um povo com oito séculos de história – e civilização –, como também a contribuir para a qualidade mental e psicológica da lusofonia, cujo período de validade expirou nos meados do século passado, em virtude da hegemonia global do inglês e pensamento anglossaxónico, com fortes indícios já espelhados na queda da Bastilha e o ressurgir do humanismo existencialista, nem sempre atreito à transmissão/disseminação de valores seculares de incontestável primazia como a Igualdade, a Fraternidade e a Liberdade, tão queridos aos patrícios do quarto império (romano) quão prezados pelos conquistados e vencidos do terceiro império, em Atenas sediado, e na retórica da ironia/mauêutica celebrados, pela verve socrática e platónica difundidos, refinados, apurados, e multiplicados na sua heurística (pro)criadora.
Portanto, a gravidade, nesta problemática, como noutras similares, não está no facto de alguém pensar assim, ser aplaudido, publicado e publicitado por isso, etc., etc., mas exactamente na constatação circunstancial de ninguém ousar vir a terreiro "denunciá-lo" como inconcebível e prejudicial, socialmente negativo e antidemocrático, lamentar a sua lucubração na noite provinciana do subdesenvolvimento nacional, e alertar para as consequências nefastas da proliferação deste tipo de clichés na edificação basilar de uma sociedade, por medo de retaliação censória e inquisitorial, ou sujeitos à acusação de heresia, escondendo, ou desconhecendo, que as ideias – e sentenças –, por mais toscas e tacanhas, desde que se não discutam e não suscitarem o dialéctico confronto, tendem a perder a sua principal razão de ser, motivo de génese, que é a faculdade de espevitar a luz, gerar conhecimento que nunca poderá ser passivo nem de cómoda aceitação, porquanto os conceitos de civilização – "conjunto complexo de fenómenos sociais, de natureza transmissível, apresentando um carácter religioso, moral, estético, técnico ou científico e comuns a todas as partes de uma vasta sociedade ou a várias sociedades relacionadas entre si", conforme avisa o Dictionnaire de Philosophie, de Lalande –, e cultura – "a totalidade dos comportamentos e artefactos de uma sociedade, na medida em que esses comportamentos e produtos podem ser apreendidos e partilhados", segundo a opinião de Ralph Linton, por exemplo –, acarretam em si uma responsabilidade formativa bastante superior a qualquer outro conceito que esteja associado às normas e atitudes de socialização sustentável, contínua, positiva e eficaz, uma vez que lhe é inerente a qualificação da arte, da tecnologia, da ciência e do pensamento que estruturam o desenvolvimento de um povo ou de uma região. A guilhotina ou as SS nazistas de Hitler, são elementos de uma civilização, é claro e inegável, porém a cultura que os gerou e valorizou é a da morte e da opressão, que de todas as conhecidas é a menos desejável em termos sociais, nacionais, europeus ou globais.
Um indivíduo civilizado e culto não é somente aquele que tem bastos conhecimentos e os utiliza no dia-a-dia, mas sim aqueloutro que tendo-os igualmente escolhe entre eles os que sendo-lhe úteis a si, não prejudicam, e antes beneficiam os demais, o ecossistema, o habitat, o seu nicho como a totalidade da humanidade e ecosfera.
Confundir, propositadamente (!), cultura com propriedade, e civilização com a exploração dela, não se me avizinha serem as melhores formas de demonstrar o grau, ou nível, de maturidade e consciência ética com que se está em ambas, outrossim expressam quanto elas têm sido confundidas com o amanho das terras atreito ao mediavelismo bucólico e selecionista deserticador das mentes e tutanos lusófonos, que nos atiraram para a mediocridade vigente, posto que se há produtos culturais e conteúdos como produto de cultura, pelo menos todos aqueles que sendo matéria o não sejam exclusivamente, sendo também espirituais, alguns de elevado teor civilizacional, o que é certo, embora sempre entendidos como plataforma de intercâmbio, de transbordo, de navegação, de interface, entre o mundo físico e o mundo ideal, eles jamais serão propriedade alguma, seja de quem for, a não ser do entendimento, da compreensão, e nunca uma propriedade palpável, rotulável, atestável, com cadastro e diploma, passível de ser arroteada e explorada, como filão aurífero ou poço de crude, e sim veículo de aproximação entre o conhecimento do sujeito e o objecto cognoscível, sem outra deriva civilizacional além da curiosidade metódica e cientificamente condicionada, que assistem a quem esclarecidamente está disponível para contribuir para o bem-estar e felicidade geral, porquanto deles dependem impreterivelmente os seus. E isso é tão velho como a Lei dos Profetas, já pré-bíblica e anterior ao (Grande) Dilúvio!
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