Mudam-se os tempos mas a crise é sempre a mesma

Os Amigos da Dívida


"Tu estás tão acorrentado
À sombra que tens ao lado
Não consegues apagar
As marcas desse passado
(...)
Mas se isso acontecer
És mais um a flipar
Mas se tu queres acabar
Ó que tu queres é drunfar

Toma um comprimido
Toma um comprimido
Toma um comprimido que isso passa"

António Variações, in Toma o Comprimido

A China produz, os chineses vendem. E compram. E negoceiam. E até endossam ou emprestam, se nisso perspectivarem benefícios chorudos.
Ainda sou do tempo, apetece dizer, para melhor o registar, como memória futura (???), em que se acreditava que os japoneses, a potência da sua economia, os seus elevados desenvolvimento, crescimento e situação financeira, seriam os "chineses" que nos salvariam das profundas agruras de uma crise (exaustivamen¬te) anunciada. Confirmada. Útil. E continuamente sujeita a novos ajustes e actualizações, agravamentos ou dificuldades, que afinal são o idílico sonho de qualquer político, para camuflar (ou disfarçar) a sua incompetência e inaptidão para as estratégias do desenvolvimento e da sustentabilidade, sobretudo desde que essas exijam ação e discernimento, que aliás muito diferentes são, em resultados, eficácia e elucubração, dos da retórica do bom, do mau e do assim-assim inerentes às marceladas das marias e dos manéis oportunamente televisionadas e sucintamente difundidas.
Fui dos que acompanharam as comitivas de altas individualidades governamentais e financeiras nipónicas por esse Portugal adiante, comendo e bebendo do bom e do melhor, tudo a expensas do erário português complementado pelas verbas do FSE e do FEDER. Em ação. Nomeadamente a dos núcleos empresariais e associações comerciais. Lembro, inclusive, que também estiveram aqui, em Portalegre, no Governo Civil, na Estalagem da Serra e na Fábrica da Rolha, quer dizer, na Robinson, que lhes foi mostrada de alto a baixo, de fio a pavio, da rolha ao granulado, com salamaleques e Porto de Honra, negócio garantido com compra afiançada e injecção de capital para marketing e modernização. Eram a salvação dela, e de uns quantos postos de trabalho, im-pres-ciiiiin-díííí-veis. Tudo parra, que uva nem vê-la. Águas de bacalhau e algumas verbas que voaram, como as pombinhas da Catarina, de mão em mão. Anéis de pouca dura, como se veio a confirmar.
Porém, de vez em quando, ei-los – os salvadores, dando à costa para gáudio da vilanagem política e eleitoral. Tudo favas contadas. As eleições consumam-se e nunca mais ninguém ouve falar dos beneméritos das pátrias amigas... da onça, se nos deixarmos enrolar na fumaça da ocasião. Sejam chineses ou venezuelanos, os meridianos podem ser diferentes que a conversa é igual. «A gente ajuda a diminuir o buraco», prometem, ao que os políticos presentes, esfregando as mãos de contentes, adiantam (mentalmente): «Boa, que nós fazemos outro, ainda maior... Vamos a ver quem ganha!» – «É a política!», esclarecem os analistas e opinion makers, «estamos todos do mesmo lado, de Portugal. O barco há de virar», para cumprir o acordo ortográfico pondo o hífen de molho, molhando a sopa. Acondutada com a certeza e confiança partidária, nos seus quadros e líderes, que garantirá o engenho e arte de inventar uma crise, o buraco, não irreversível, uma vez que isto do nem o pai morre nem a gente almoça também cansar, e ou bem que é, ou bem que não é, já chega de crises em picotado, a esgarrar-nos os tutanos e fé na nacionalidade, a esfarelar-nos a resiliência, façam essa crise durar, porra, o tempo suficiente para nos habituarmos, que isto do vai acima e vai abaixo das flexões pode inspirar músculo sim senhora, mas também exige muito feijão com couve! E osso da suã.
Todavia o mais surpreendente, é que só agora quando atravessamos o medo e a fraqueza, a informação se vai tornando franca, real e informativa, ao contrário da costumeira declaradamente deformativa, e passa ainda além da retórica conjugável no cagativo do diz-que-disse, pondo o enfoque – termo de que sinceramente desconheço a significação portuguesa, visto ser mais um estrangeirismo aportado ao oceano do nosso léxico pela via do politiquês jornalístico –, ou ênfase, nos tabus de gestão da rés que é coisa, como dívida, leilões de dívida pública, défice público, défice externo, mercado e mercados (primário, secundário, ... e superior!?), despesa intermédia, despesa corrente, investimento de risco, sustentabilidade enganosa, efeitos incontornáveis da ignorância e diminuída formação cívica, conduta democrática das autoridades e órgãos colegiais, desígnio nacional, interesse e solidariedade social vigente, corrupção e egoísmo corporativista, sentido de oportunidade e abuso de poder, prémios e luvas indevidas, etc., etc., como se eles pudessem ser simplesmente destabulizados e a partir daí, perdessem como por artes mágicas de um exorcismo excomungável, irradiados das nossas preocupações da grande família lusófona que tem por lar este erm(íni)o torrão viriatejo. É ousado, isso, convém salientar, mas se não for para manter, acaba num exercício de estilo vulgar, demonstrativo de quanto conseguimos ser verdadeiros e imunes ao espírito mercenário dos que fazem mal por bem, batem para educar, proíbem para extinguir, aumentam a mesada para não dar chatices na escola, quer dizer, no Parlamento Europeu, nos centros de decisão internacional, no melhor pano que a nódoa invariavelmente cobiça. Porque adultera, desacredita, cria a impressão geral de andar tudo e andarem todos a brincar ao faz de conta.
Ora, é de supor que tal não apareça por acaso, o que já de si é bastante grave e pejorativo, mas seja o resultado, a consequência, o efeito directo da entrada no mercado de trabalho dos "profissionais" oriundos das novas oportunidades, quiçá em período de estágio (não remunerado), que ainda não aprenderam a respeitar "a cartilha do há coisas que não se dizem" que as administrações e/ou gabinetes de publicidade costumam fazer circular nas redações do Natal ao dia S. Cristóvão, de cada ano, sob o formato e bitola da simplicidade conciliadora dos leads de encher chouriços numa paginação avisada... Ou, então, o rescrever dos livros de estilo, por exigência da entrada em vigor do Acordo Ortográfico, sabendo nós, que o ler, falar e escrever são um resultado do pensar, e que nisso do pensamento só quem é livre o faz condignamente, e em contiguidade, o que leva desde logo a pensar que alguém anda a usar a crise para melhorar de dívida, leiloando-a ao desbarato até que os "japoneses" de agora lhe peguem, a transformem, e no-la vendam como produto de sua genuína autoria e fabricação.
Dando, enfim, a entender que a dívida que eles nos compram, há de ser a pílula indicada para a nossa retoma económica. Se fosse! Mas não é, que do juro à mais-valia, os únicos bolsos em alta vão ser as bolsas com reflexos em Pequim. E basta de comprimidos para amenizar mercados, pois o que deveras precisamos é de uma operação radical que extraia os maus políticos e gestores deste nação doente, que de crise em crise, vem atravessando a História aos solavancos do exterior, desde o berço ao catratumba, pumba, pim, paz, catrapaz da palhaçada que se avizinha, para dito e feito do Acordo. Pois. E exactamente. Sem espinhas, nem pontinhas queimadas no sussurro dos ministérios. Tomando comprimidos, para deixar passar o passado, como dizia o António.

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