Entre Bocas e Bocanas, assim passam as semanas

"Estava-se nessas desconformidades quando surgiu em nossa frente um cabrito malhado. O bicho destoava das solenidades. O administrador arreganhou em surdina:
– Quem é esse cabrito?
– De quem é... – o secretário corrigiu, discreto.
– Sim, de quem é essa merda?
– Esse cabrito não será dos seus, Excelência?"
In O Último Voo do Flamingo, de Mia Couto
Há bocanas e bocanas. E se cada um é como cada qual, sendo no todo ou em parte diferente do outro, seu semelhante, posto que ímpar e sem igual, no feitio como nas atitudes, o que é certo, é que são todos uma cambada de sacanas. Incapazes de sentir empatia, abespinham os demais, desde que em algo eles sobressaiam daquilo com que os rotularam, ou a ideia que deles fizeram, cultivaram, difundiram e admiraram. Insistiram e determinaram. Atribuíram como única possível, concebível e lógica.
Por exemplo, quando desgostam de uma pessoa, mas gostam/simpatizam com outra, que é sua familiar ou irmã, e se esta, a quem atribuem sempre tudo o que é mal feito ou indesejável no seio de uma família, faz algo de apreciável mérito e notório, então, para lhe retirarem o talento e os louros do feito, justificam a feitura às qualidades do outro, que nunca lhe pertencerão a não ser por cópia ou

Em Tizangara, ambiente social e lugar onde se desenrola a ação, no livro acima citado, de Mia Couto, a situação, aliás comum às famílias e meios provincianos do interior português, essa clareza tem nome para as entidades oficiais, chamando-lhes merda, para evitar subsequentes equívocos. A crueldade criancista de nomear as coisas pelo nome, assim o exige, exorcizando a tendência civilizada para os eufemismos, contudo, não podemos negar que as nomeações nada acrescentam nem retiram aos seres e pareceres sociais, já que não é por este ou aquele indivíduo desafetar a carga pejorativa a alguns rótulos que o veneno das discriminações deixa de produzir os seus efeitos, e muito menos, se considerarmos que até podemos dizer que um fulano é um "querido" quando pretendemos chamar-lhe "filho da puta", ou que é engraçado se nos apetecer denominá-lo de bobo e bocana. A fluência das significações é muito superior à estirpe lexical que as sustenta, considerando que cada língua, cada vocabulário, particulariza apenas parte daquilo que a expressão generaliza, o sentimento humano, a emoção, a racionalidade, a sublimação, e a espiritualidade universalizam. Ter raiva a, ou sentir inveja de alguém, existe no seio de diversas culturas em diferentes modos, com significados normalmente aspergidos numa panóplia semântica que apelidamos facilmente de polissemia, pondo na esfera polissémica de um termo, numa língua, termos e significados que pertencem à esfera de outro ou outros, independentemente da linearidade, e correspondência literal, das traduções. "Um pai galinha" em português é um pai extremoso, atencioso, dedicado aos filhos, porém se o interpretarmos de acordo com o universo de significação brasileiro, é um indivíduo mulherengo, um D. Juan, e que se preocupa mais com o fornicar muitas mulheres do que ajudar-lhes a criar, proteger e educar os filhos, por exemplo.
Mas a minha televisão já tomou providências e começou a tratar do assunto, pondo nova ordem no aferir significativo das cores, confirmando quanto importa aos multimédia tomar decisões que visem concertar, dissolver e harmonizar os conflitos que a sociedade gerou para evoluir, mas que impreterivelmente tem que ultrapassar se quiser continuar essa evolução: alterou automaticamente, e sem qualquer

Nada. Conformei-me. Já não admito que a realidade queira pintar o real realmente de outras cores que não aquelas que aprendi a ver como reais. As árvores são azuis. Os telhados verdes. Os pretos são brancos, e vice-versa. Os mulatos são cremes. E os cabritos, se alguns vejo, cor de tijolo quando cai, que os muros e paredes se foram criados levaram caiação moderna com mestiçagem às avessas, deixaram de ser biombos de resguardo das espécies e raças, e passaram a ser elos de ligação e unidade entre gentes separadas, que cultivavam a simetria como perfeição.

Então, onde está o problema de se verem outras bandeiras em nações que se tornaram mais justas e soberanas, civilizadas e cultas, modernas e atuais, solidárias e conscientes, responsáveis e livres?
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