Entre Bocas e Bocanas, assim passam as semanas


Entre Semanas, Bocas e Bocanas

"Estava-se nessas desconformidades quando surgiu em nossa frente um cabrito malhado. O bicho destoava das solenidades. O administrador arreganhou em surdina:
– Quem é esse cabrito?
– De quem é... – o secretário corrigiu, discreto.
– Sim, de quem é essa merda?
– Esse cabrito não será dos seus, Excelência?"
In O Último Voo do Flamingo, de Mia Couto

bocanas e bocanas. E se cada um é como cada qual, sendo no todo ou em parte diferente do outro, seu semelhante, posto que ímpar e sem igual, no feitio como nas atitudes, o que é certo, é que são todos uma cambada de sacanas. Incapazes de sentir empatia, abespinham os demais, desde que em algo eles sobressaiam daquilo com que os rotularam, ou a ideia que deles fizeram, cultivaram, difundiram e admiraram. Insistiram e determinaram. Atribuíram como única possível, concebível e lógica.
Por exemplo, quando desgostam de uma pessoa, mas gostam/simpatizam com outra, que é sua familiar ou irmã, e se esta, a quem atribuem sempre tudo o que é mal feito ou indesejável no seio de uma família, faz algo de apreciável mérito e notório, então, para lhe retirarem o talento e os louros do feito, justificam a feitura às qualidades do outro, que nunca lhe pertencerão a não ser por cópia ou imitação, afirmando que o fulano, nessa etiqueta ou quadrante, «sai ao irmão», como se isso fosse possível, uma vez que a herança dos genes jamais será transversal e fraterna, mas de linha directa por descendência, como sucede de avós para pais e destes para os filhos. Se um cabrito nasce no seio de uma família branca tudo quanto faz de mal é herança do sangue negro que há nele, e se, pelo contrário, algo de louvável pratica, então foi a sua quota-parte de brancura que veio ao de cima. Ao invés, desde que nascido numa família predominantemente negra, tudo quanto é indesejável no seu comportamento será consequência directa do sangue branco que lhe ainda corre nas veias, e de bom, se algum houver, resquícios emergentes da sua negritude. Quando para uns casos é pessoa (cabrito de cor), para outros é animal(cabrito, filhote de cabra).
Em Tizangara, ambiente social e lugar onde se desenrola a ação, no livro acima citado, de Mia Couto, a situação, aliás comum às famílias e meios provincianos do interior português, essa clareza tem nome para as entidades oficiais, chamando-lhes merda, para evitar subsequentes equívocos. A crueldade criancista de nomear as coisas pelo nome, assim o exige, exorcizando a tendência civilizada para os eufemismos, contudo, não podemos negar que as nomeações nada acrescentam nem retiram aos seres e pareceres sociais, já que não é por este ou aquele indivíduo desafetar a carga pejorativa a alguns rótulos que o veneno das discriminações deixa de produzir os seus efeitos, e muito menos, se considerarmos que até podemos dizer que um fulano é um "querido" quando pretendemos chamar-lhe "filho da puta", ou que é engraçado se nos apetecer denominá-lo de bobo e bocana. A fluência das significações é muito superior à estirpe lexical que as sustenta, considerando que cada língua, cada vocabulário, particulariza apenas parte daquilo que a expressão generaliza, o sentimento humano, a emoção, a racionalidade, a sublimação, e a espiritualidade universalizam. Ter raiva a, ou sentir inveja de alguém, existe no seio de diversas culturas em diferentes modos, com significados normalmente aspergidos numa panóplia semântica que apelidamos facilmente de polissemia, pondo na esfera polissémica de um termo, numa língua, termos e significados que pertencem à esfera de outro ou outros, independentemente da linearidade, e correspondência literal, das traduções. "Um pai galinha" em português é um pai extremoso, atencioso, dedicado aos filhos, porém se o interpretarmos de acordo com o universo de significação brasileiro, é um indivíduo mulherengo, um D. Juan, e que se preocupa mais com o fornicar muitas mulheres do que ajudar-lhes a criar, proteger e educar os filhos, por exemplo.
Mas a minha televisão já tomou providências e começou a tratar do assunto, pondo nova ordem no aferir significativo das cores, confirmando quanto importa aos multimédia tomar decisões que visem concertar, dissolver e harmonizar os conflitos que a sociedade gerou para evoluir, mas que impreterivelmente tem que ultrapassar se quiser continuar essa evolução: alterou automaticamente, e sem qualquer possibilidade de retorno ou reparação, a paleta de cores, dando a ver verde, naquilo que era – e é – vermelho, azul no que antes foi verde, lilás no amarelo, rosa-choque no que antes fora azul, o castanho virou creme, e assim por diante, com tal magnificência e pertinácia, que eu passei também a ver a realidade conforme esta matriz de tons, uma vez que passo mais tempo a ver televisão do que a andar na rua, e a achar que a realidade, as paisagens e quadros vivos do quotidiano, andam mal pintados ou debaixo uma luz deveras sinestésica - e suspeita. A princípio tive dúvidas de que a máquina tivesse uma propositada intenção na baralhação das cores, julgando tratar-se de avaria, comentando de mim para mim «esta, está a dar o badagaio!...», não obstante, depois do contato com o técnico local de TVs, testes com aparelhómetros vários, o diagnóstico foi o sem espinhas «não tem qualquer problema, e está em melhor forma do que muitas das novas que ali tenho para venda ao público», vi-me na incontingência de aceitar o fato como capricho consumado de um ente que reivindicava participar na formação – e formatação – do mundo que espelhava, reproduzia e muito ajudara a criar. Ver os telhados das casas verdes quando cobertas do canelado mourisco, inicialmente, foi confuso e digno de tenaz resistência, repetindo a mim mesmo, oral e mentalmente, que eles, os telhados, eram sim, mas vermelhos, desde que não fossem de vidro ou de placas de “lusalite” com amianta memória. Depois, porque isto não é tempo de andar a mudar constantemente de electrodomésticos, engoli a mudança nos cambiantes por ela impostos, como quem assobia prò lado perante uma contrariedade corriqueira, e deixei de inculcar a memória cromática mal me apercebia de que a bandeira portuguesa tinha ganho outras cores e humores, flanando com verde, azul e lilás com o igual empertigamento de antanho onde o vermelho e o amarelo tinham notória presença. E idem para o estandarte da UE, a quem o rosinha com estrelas lilases dava um requinte feminino, porquanto primeiro foi estranho depois se entranhou, e afinal, mais consentâneo e conforme à felicidade do lar num casamento a vinte e sete... E agora, que fazer?
Nada. Conformei-me. Já não admito que a realidade queira pintar o real realmente de outras cores que não aquelas que aprendi a ver como reais. As árvores são azuis. Os telhados verdes. Os pretos são brancos, e vice-versa. Os mulatos são cremes. E os cabritos, se alguns vejo, cor de tijolo quando cai, que os muros e paredes se foram criados levaram caiação moderna com mestiçagem às avessas, deixaram de ser biombos de resguardo das espécies e raças, e passaram a ser elos de ligação e unidade entre gentes separadas, que cultivavam a simetria como perfeição.
Portanto, quando ouço dizer que fulano ou sicrano são uns merdas, ninguém me tira da ideia que são preciosos e ricos, de genial talento como os que em vez de saírem a seus pais saem aos seus irmãos, pois sei que, de certeza, quem assim os classifica por húmus fértil, tem a televisão avariada. Até porque não há filhos do pai quando estão com a mãe, nem filhos da mãe quando estão com o pai. Há seres humanos, na totalidade dos seus direitos e responsabilidades, e isso ninguém lhes pode negar, ainda que os bastonetes e cones lhes soneguem as cores originais, na mensagem que distorcendo veiculam ao cérebro de quem os toma por objectivos. Pintar o mundo sem ouvir as bocas de alguns bocanas, é uma tarefa para máquinas inteligentes que não se envergonham do que querem e são. Digam o que disserem, as cores são um privilégio de quem vê, não de quem crê ver.
Então, onde está o problema de se verem outras bandeiras em nações que se tornaram mais justas e soberanas, civilizadas e cultas, modernas e atuais, solidárias e conscientes, responsáveis e livres?

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