Genialidades
As Receitas e o Estilo
"E, no entanto, já Horácio se referia a tal trabalho através da alegoria da abelha que recolhe o néctar de todas as flores. Esta exegese plural irá ao encontro de um princípio que se designa por multiplex imitatio, ao qual hão-de ser favoráveis os movimentos humanistas que tão receptivos foram aos clássicos; mas acaba por ganhar outras implicações quando se admite que na referencialidade literária temos que considerar o envolvimento cultural da obra. É a escrita própria do seu tempo, os compromissos retóricos, a estilização paródica, as citações, a recorrência das figuras, enfim todo um conjunto de referências ao corpus literário em que tal obra se situa. Falaríamos de intertextualidade. E a intertextualidade é também memória. Há reminiscências ou vestígios diversos que se actualizam: e o sentido de uma obra resultará desses múltiplos e emergentes sentidos."
– In Fernando Guimarães, A Obra de Arte e o Seu Mundo (pp 45,46)
"Tal como a abelha pousa de flor em flor, lhe retira o néctar, o pólen e a seiva, para depois a abandonar sem lhe ter provocado qualquer dano, assim o sábio passeia pela aldeia."
– Provérbio Popular Chinês (PPC)
Há quem insista, pessoas bem formadas, a tal ponto que chegam a ser formadores de (de)formadores, que as estórias apenas são válidas, quiçá preciosas, pela sua inutilidade didáctica e pedagógica, moral e socialmente, ética e esteticamente. Não porque à semelhança do sábio do PPC vão recolhendo os seus autores entre as gentes remotas lições de vida, costumes e atitudes, que depois lhe devolvem em obras de arte por palavras compostas, mas sim porque pensam que o grau zero de qualquer coisa é a máxima (perfeição) metafórica da sua carreira, do seu carácter, do seu conhecimento e do seu ideal. Fazem na tela, como na vida, um borrão de tinta amarela, sobre a qual colocam de seguida quatro pintelhos, a que chamam adivinha do qual é a coisa qual é ela, e não se evitam, nem hesitam, em propalar que essa miscelânea é o suprassumo do bom gosto e do bom senso, sabendo todos nós, quantos calcorreámos os campos à procura de espargos ou tortulhos, que a isso que eles apelidam de arte, demos muitas vezes pontapés, por não passarem de bufas-de-lobo *.
Ora, esta acuidade intelectual é o néctar de que se alimentam as almas do pão sem sal, os apologistas do quando não percebo marro, ou do não me comprometas que o meu narcisismo já me dá trabalho de sobra, com que tentam impingir a sua falta de saber estar e saber ser, justificando-a pelo esforço que despenderam quando tentaram aprender a fazer e aprender a aprender que lhes garantiu a cátedra. Carência essa, aliás, que foi gerada precisamente pelo não consumo dessas estórias que tanto condenam, o que facilitou a formação de Quasimodos em vez de pessoas socialmente desejáveis.
A literatura, os contos, as pequenas narrativas, não apareceram por acaso. Foram a escola da noite quando as crianças eram uma mão-de-obra imprescindível às famílias, como às comunidades, que se sentavam ao redor de quem as contava junto ao fogo, se era Inverno, ou ao Luar se pela estação quente. Fizeram com que a humanidade se tornasse mais humana, expedita e funcional. Ensinaram-lhe o valor do outro como o reconhecimento de si. Povoaram-lhe o imaginário, como lhe edificaram os sonhos e utopias. Trouxeram-lhe a vida para além da realidade. Transportaram para esta coisas que eram da fantasia e do espírito, e criaram ideias e formas essenciais com elementos da realidade que depois elevaram à categoria de "coisas" espirituais, como as noções de ética e de moral, de mensagem e conteúdo, de significado e referente.
Portanto, deixem de impingir o vosso gosto e prazer em macaquear a vacuidade insana, como se ela fosse a bandeira da sabedoria, uma vez que ela não passa de um farrapo de mediocridade parasitária intelectualóide. Sejam homens e mulheres e deixem as crianças aprender a sê-lo também. Que mal pode haver numa estória que tem como fundo a própria História senão dá-la a conhecer, propô-la nas discussões e na ordem do dia? É preferível contar e ouvir estórias, edificando sociedades e indivíduos, do que gerar filhos da puta enquanto clones da má-formação dos formadores de (de)formadores. Deixem zunir as abelhas e metam os insecticidas no canudo que os habilitou a serem inúteis – mas bem pagos por isso. Pagos por uma sociedade que compra assim a sua própria destruição e insustentabilidade.
E, convenhamos, é engraçado haver uma comunidade que assalaria indivíduos que ensinem "doutores" para destruí-la... Só mesmo cá!
Ah, calino: é de génio!
*Bufa, do italiano buffo (jocoso, cómico), foi o nome dado às operas burlescas, cujo género musical foi criado por S. Landi, com La Morte d'Orfeo, e seguidamente muito cultivado pelo teatro napolitano, tendo alcançado a sua maior perfeição nas obras de Pergolesi e Alexandre Scarlatti.
Comentários