Fato literário
O Fato Literário
“Costuma andar seguro hum desarmado
Entre gente esforçada & generosa,
Que não ofende o forte ao descuidado.”
In Francisco Rodrigues Lobo, Égloga VI: Carta ao Leitor, com a Égloga seguinte contra a murmuração
Não importa que algo seja uma declarada mentira, ou que nos afiancem ser uma autêntica peta, daquelas coisas em que o impossível e o desfasado da realidade mais se revelem, em que nem o Diabo acredita, adiantamos, mas se estiver tão bem contada que, para nós, até mereça ser verdade, então a literatura acontece. Os escritores odeiam a realidade e declaram guerra aos desimaginados da vida. E os leitores, é precisamente por isso que os apreciam, ficam em suspenso das suas obras, as tornam na parcela de atualidade onde melhor se acomodam e repousam. Mesmo quando elas os inquietam, agitam e denunciam perante a mundanidade vigente.
Portanto, pretender que a literatura tem fins definidos e está ao serviço de causas maiores, até de ideologias que seja, é desconhecer em absoluto o que é um fato literário, isto é, desconhece que este é tão-só um transporte (veículo) de ideia, sentimento, emoção, artefacto, produto cultural, sensação, deleite ou provação, entre um mundo e o outro, entre o universo dos espíritos e das essências e o universo da matéria e das formas. Escrever é fazer aparecer ou desaparecer coisas que antes não existiam, ou existindo, ninguém as via dessa maneira. É milagre; é – mas não desses que transcendem o ser e migram para as esferas do divino e do paranormal. É milagre; é – mas somente porque embriaga sem álcool ter. E todavia, mesmo quando nada muda e nada altera, tudo muda em nós como fora, incluindo quanto do assim que fora sempre e imutável parecera, mas de um momento para o outro se transfigurou e assumiu qualidades jamais observadas.
Isto é, porque um fato pode ser um fato mas também é literário, o que faz toda a diferença. Ter uma fotografia de uma terra ou uma descrição das vivências tidas nessa terra, embora a mão que registou ambas seja exatamente a mesma, torna-as caprichosamente díspares, podendo nelas haver igualmente aquela intenção estética que transforma uma fotografia numa obra de arte, ou uma reportagem numa peça literária. Quanto escuto um fato literário, sem que ninguém haja pronunciado qualquer som ou palavra, faço uma coisa muito diferente de ler um enunciado escrito numa das línguas que consigo decifrar. Escuto-o com imagens que não me estão acessíveis pela visão. Compreendo-o, deixo que ele altere todo o meu sistema consciente e inconsciente, os meus órgãos, vísceras, sentidos, ânimo, atividade cerebral e motivação, reagem-lhe, às vezes até de forma aversiva, mas eu não posso fazer nada para o evitar. Quanto muito, reconhecerei que gosto ou não gosto, que pode haver ou não coerência entre as suas partes, admitir que lhe correspondem um princípio, meio e fim, bem como uma indivisibilidade insofismável, porém, sem a mínima possibilidade de interferência nesse processo.
Posso até colaborar ou implicar com o autor, reconhecendo-lhe valia ou não; todavia, se a sua literalidade já foi definida, tal como ao seu criador, estou totalmente impotente quanto a inverter ou reiterar essa classificação. É literário, logo ninguém mais terá mão nele. Mete fora do conceito de realidade toda e qualquer noção que dele se possa fazer. Posso mesmo criticá-lo, interpretá-lo, analisá-lo, valorizá-lo, que tudo lhe será indiferente. Os outros podem ainda subescrever a minha crítica, ou serem-lhe opositores, que jamais o beliscaremos.
Ou seja, conforme lembrou Francisco Rodrigues Lobo lá no longínquo da sua Corte de Aldeia, onde o século XVI se espraiava com a espuma dos dias, e o tempo se media pela curvatura do Sol, não carece ao fato literário andar armado em sabichão e pretensioso erudito, nem escorar-se na filosofia das verdades incontestáveis ou (estatísticas) da realidade inegável, para andar seguro e reconhecido, desde que frequente ambientes de gente esforçada e generosa, a quem o mundo nunca acaba na ponta do nariz, para se ver entendido e admirado. Porque ele é o grão de que se há de fazer o pão que saciará os esfaimados de sonho e de esperança, que são os quantos nunca esquecem que das maiores invenções que a humanidade teve conhecimento foi ela mesma. E a literatura o espelho onde pode ver-se, refletir-se, admirar-se, abonecar-se, maquilhar-se, sublinhar-se, repetir-se, distorcer-se, cristalizar-se e sublimar-se. Enfim, o seu argumento essencial…
“Costuma andar seguro hum desarmado
Entre gente esforçada & generosa,
Que não ofende o forte ao descuidado.”
In Francisco Rodrigues Lobo, Égloga VI: Carta ao Leitor, com a Égloga seguinte contra a murmuração
Não importa que algo seja uma declarada mentira, ou que nos afiancem ser uma autêntica peta, daquelas coisas em que o impossível e o desfasado da realidade mais se revelem, em que nem o Diabo acredita, adiantamos, mas se estiver tão bem contada que, para nós, até mereça ser verdade, então a literatura acontece. Os escritores odeiam a realidade e declaram guerra aos desimaginados da vida. E os leitores, é precisamente por isso que os apreciam, ficam em suspenso das suas obras, as tornam na parcela de atualidade onde melhor se acomodam e repousam. Mesmo quando elas os inquietam, agitam e denunciam perante a mundanidade vigente.
Portanto, pretender que a literatura tem fins definidos e está ao serviço de causas maiores, até de ideologias que seja, é desconhecer em absoluto o que é um fato literário, isto é, desconhece que este é tão-só um transporte (veículo) de ideia, sentimento, emoção, artefacto, produto cultural, sensação, deleite ou provação, entre um mundo e o outro, entre o universo dos espíritos e das essências e o universo da matéria e das formas. Escrever é fazer aparecer ou desaparecer coisas que antes não existiam, ou existindo, ninguém as via dessa maneira. É milagre; é – mas não desses que transcendem o ser e migram para as esferas do divino e do paranormal. É milagre; é – mas somente porque embriaga sem álcool ter. E todavia, mesmo quando nada muda e nada altera, tudo muda em nós como fora, incluindo quanto do assim que fora sempre e imutável parecera, mas de um momento para o outro se transfigurou e assumiu qualidades jamais observadas.
Isto é, porque um fato pode ser um fato mas também é literário, o que faz toda a diferença. Ter uma fotografia de uma terra ou uma descrição das vivências tidas nessa terra, embora a mão que registou ambas seja exatamente a mesma, torna-as caprichosamente díspares, podendo nelas haver igualmente aquela intenção estética que transforma uma fotografia numa obra de arte, ou uma reportagem numa peça literária. Quanto escuto um fato literário, sem que ninguém haja pronunciado qualquer som ou palavra, faço uma coisa muito diferente de ler um enunciado escrito numa das línguas que consigo decifrar. Escuto-o com imagens que não me estão acessíveis pela visão. Compreendo-o, deixo que ele altere todo o meu sistema consciente e inconsciente, os meus órgãos, vísceras, sentidos, ânimo, atividade cerebral e motivação, reagem-lhe, às vezes até de forma aversiva, mas eu não posso fazer nada para o evitar. Quanto muito, reconhecerei que gosto ou não gosto, que pode haver ou não coerência entre as suas partes, admitir que lhe correspondem um princípio, meio e fim, bem como uma indivisibilidade insofismável, porém, sem a mínima possibilidade de interferência nesse processo.
Posso até colaborar ou implicar com o autor, reconhecendo-lhe valia ou não; todavia, se a sua literalidade já foi definida, tal como ao seu criador, estou totalmente impotente quanto a inverter ou reiterar essa classificação. É literário, logo ninguém mais terá mão nele. Mete fora do conceito de realidade toda e qualquer noção que dele se possa fazer. Posso mesmo criticá-lo, interpretá-lo, analisá-lo, valorizá-lo, que tudo lhe será indiferente. Os outros podem ainda subescrever a minha crítica, ou serem-lhe opositores, que jamais o beliscaremos.
Ou seja, conforme lembrou Francisco Rodrigues Lobo lá no longínquo da sua Corte de Aldeia, onde o século XVI se espraiava com a espuma dos dias, e o tempo se media pela curvatura do Sol, não carece ao fato literário andar armado em sabichão e pretensioso erudito, nem escorar-se na filosofia das verdades incontestáveis ou (estatísticas) da realidade inegável, para andar seguro e reconhecido, desde que frequente ambientes de gente esforçada e generosa, a quem o mundo nunca acaba na ponta do nariz, para se ver entendido e admirado. Porque ele é o grão de que se há de fazer o pão que saciará os esfaimados de sonho e de esperança, que são os quantos nunca esquecem que das maiores invenções que a humanidade teve conhecimento foi ela mesma. E a literatura o espelho onde pode ver-se, refletir-se, admirar-se, abonecar-se, maquilhar-se, sublinhar-se, repetir-se, distorcer-se, cristalizar-se e sublimar-se. Enfim, o seu argumento essencial…
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