adivinha

Se ao lusco-fusco foi encontrada,
Então, como se chama a moura encantada?

Conta-se que noutros tempos, em que ainda o sal era a moeda de troca corrente, com o qual se pagavam todos os bens comprados ou serviços prestados, de onde derivou o termo salário, tão em voga hoje pela sua escassez, quando estas terras hermínias e interiores da foz do Rio Guadiana até ao Cabo Finisterra, actual La Coruña, eram governadas por iberos, frígios e hititas, comummente conhecidos por celtiberos e mais tarde denominados lusitanos, seria senhor e rei da Aramenha o pai de uma linda rapariga, a princesa Amahya, ditosa e afamada mil léguas em redor tanto pela ímpar beleza como pela sua generosa bondade, afabilidade no trato e nobreza de carácter, aliás facilmente testemunhados por quantos, súbditos, estrangeiros e escravos, consigo tiveram a honra de privar e conviver.
Ora, atribuíra-lhe seu pai como dote, no dia em que fizera dezasseis anos, o senhorio e posse de todas as terras e povoados sitos entre a nascente do Sver e o desaguar do G'bora, cujo castro principal veio depois de romanizado a ser conhecido por Portus Alacer, importante entreposto de passagem das caravanas do sal para o continente europeu de aquém e além Pirinéus, extraído das salinas exploradas, no litoral sadino, por fenícios e gregos, sede do território que governou exemplarmente durante oito anos, até à idade de vinte e quatro, altura em o pai fora morto, à traição, pelo rico e próspero mercador estrangeiro que desposara no dia do seu 23º aniversário, sábado, 23 de Maio de 101, da era de César, e se veio a confirmar posteriormente ser um capitão romano, espião infiltrado nos seus domínios com a missão específica de preparar a tomada do reino de Aramenha pelas hostes da Roma imperial. Que se albergara em seu coração para lhe assassinar quem lhe dera o ser e o sangue. Que cativara, escravizara e possuíra o que de mais de sagrado em si havia, lho incendiara com o fogo da paixão e da entrega, mas também o destruíra fazendo correr nele o veneno da morte e da traição. Estilhaçara cruelmente com a dor, o desespero e loucura da desilusão, por fidelidade ao império. Que destruíra o amor trocando-o por Roma, num só golpe de adaga.
E nesse mesmo dia, domingo, 24 de Maio do ano 102, em que sentira o maior desgosto que à alma humana pode afluir, o de saber-se traída e amaldiçoada por aquele a quem se rendera e confiara em votos eternos, recolhera numa trouxa quanto ouro tinha e carregar pode, salvas de prata e pedrarias preciosas, diademas, brocados, braceletes, colares, correntes e canas de estáteres, lídias, dracmas e cestércios, e correu a refugiar-se na charneca com Mnemósine, sua aia e madrinha, depois de terem passado a vau a ribeira onde puderam, sem serem avistadas do castro nem pelos guardas da portagem, escondendo-se na Gruta dos Ladrões até que outra melhor forma de sobreviver se lhe oferecesse. Porém, o choro e soluços de Amahya eram tão violentos e incontroláveis, angustiados e desesperante, tão infinitamente coitados, que Mnemósine temendo serem denunciadas por eles, postas ao perigo dos lobos, como dos facínoras e salteadores, guardas romanos e avantesmas da noite, usou de seus poderes mágicos fechando a gruta quase totalmente, deixando-lhe apenas no alto larga clarabóia de respiração e luz, para que no seu interior permanecesse o perpétuo lusco-fusco do ocaso, encantando nela a sua princesa e assim lhe sossegasse o coração, o sono purificador o restaurasse e, num futuro longínquo para lá do lá e dos séculos dos séculos, viesse a nascer nele novamente a luz da entrega e da paixão, do puro prazer e do amor secreto, infinito e universal, que lhe acalentara a vontade e alegria de viver, até ao momento em que soubera da morte de seu pai, quem o matara e em que circunstâncias tal acontecera. Onde ainda hoje está, embora diversas vezes tenha dela saído se alguma alma pura e fiel ao seu amor lhe passa perto, numa saudosa necessidade de o confirmar com seus olhos, a fim de beberem a esperança que é a única energia que lhe alimenta o corpo e a psique, para que estes se não diluam no nada e esquecimento de si, que é de todas as mortes a mais definitiva e ímpia.
Como o sei eu? Não, não é invenção minha... Foi minha avó que me contou que a bisavó dela soubera de sua trisavó, que um pastor dos Fortios, de dezassete anos, seu familiar e com quem muito privara na mocidade, a vira por essa hora, em que no céu surge Vésper a pontificar a tarde, iluminado o espectro translúcido do lusco-fusco, quando regressava num sábado de folga, igualmente 23 de Maio, mas do ano 1500 da era cristã, em que se demorara além do costume junto de sua conversada, mais nova que ele um aninho e a servir em casa nobre do burgo, namorando até depois do sol se pôr, e que ao passar junto do local agora chamado Cova da Moura, precisamente a meio caminho entre a ermida e a cruz, na Serra da Penha, pelo único carreiro que ligava então as duas povoações, encontrara aí sentada num tamborete bordando, uma linda rapariga vestida de tules, sedas e brocados, de longos e anelados cabelos negros, sob o véu carmesim que o diadema cingia à fronte alva, sorriso de ninfa e olhar amendoado, em tudo mais linda que as princesas das iluminuras dos contos de fadas, que tinha a seus pés uma salva de prata com figos em passa, e o sorrindo celestialmente o saudou, oferecendo-lhe os apetitosos frutos secos. Milagre nem visão seria, pensou o moço, que bem a via e ouvia dizendo «toma, serve-te de quantas te aprouver, para comeres no caminho», mas o certo é que a muita sorte e inesperada beleza também assusta os humildes, e ele da bandeja, em precipitação e receio, apenas tirou três passas, que meteu no bolso sob o intento de as atirar fora antes de chegar a casa e longe da visão da senhora que lhas ofertara, pois comê-las nem o pensara sequer, por temor de mesinha ou feitiço. E pernas para que vos quero, que se bastante pressa tinha com redobrada ficou, deitando a correr lesto e ligeiro pela vereda, olhando diversas vezes para trás a confirmar se seguido não seria. Não era. Por isso, mal avistou o seu lar, eis que meteu a mão ao bolso para aventar as ditas, mas nela encontrou em vez de passas três libras de ouro, a refulgir como estrelas sobre a palma da mão... Deu-lhe o coração um baque e ia jogá-las nos silvados, quando a razão lhe ditou que seriam suficientes para fazer a sua casa e casar, trazer a namorada para junto de si, libertando-a de servir os demais que a exploravam e oprimiam. O que, em verdade, veio imediatamente a acontecer!
E confirma que nem toda a lenda é apenas fantasia, pois como me disse minha avó, que era sábia e conhecida dos mistérios da serranias e florestas, Mnemósine ali escondera, naquela gruta de ladrões, Amahya que fugia do assassino traidor, obstruindo-lhe a entrada num ocaso, à hora de vésperas do dia 24 de Maio, do ano 102, da era de César, por sinal um domingo, primeiro dia da semana, habitando desde então o lusco-fusco das galerias subterrâneas do ser, onde cada portalegrense a acalenta e rejuvenesce sempre que a paixão o arrebata. E a minha avó jamais me mentiria, pois era tradição da família, que remontava ainda de muito antes de ter nascido a bisavó da trisavó dela, nunca enganar as crianças, nunca lhes mentir, nem conspurcar a sua inocência ou atrofiar a sua liberdade e imaginação, porque delas é a roda em que giram e dançam, vestidas de sonho, feito verbo em tecido branco, e esperança, com que geralmente se coroam de flores de giesta, representando o diadema nupcial de casar as vésperas com o amanhã, o futuro, a aurora, vontade e alegria de viver. Como lhe aconteceu também a ela, criando nos netos uma prova sua. Portanto, qual é o seu nome? Quem o sabe dizer?

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