As Pequenas Memórias e Vinte Quatro Horas na Vida de uma Mulher

As Pequenas Memórias
José Saramago

Quaisquer memórias que sejam, minúsculas ou enormes, claras ou obscuras, espontâneas ou intencionais, realistas ou mágicas e fantasiosas, serão sempre pergaminhos, uns bem conservados, outros menos, mas sem dúvida registos ambos duma existência, posto que remota, podendo embora o não ser, por recém-nascida como tida, e actualizadas em diferente suporte; primeiro, o seu tempo dentro do tempo todo, depois apenas deste, enquanto olhar que se debruça sobre o outro, o inicial enfim. E nisso o título de José Saramago em nada nos espanta, nem impõe valores acrescentados pela escolha. Agora, que elas sejam pequenas é que já é mais suspeitoso, pois algo só pode ser grande ou pequeno em relação a outro algo, que não pode comparar-se o quer que seja relativamente a si próprio, sobretudo no tamanho e importância, sem espelho especialmente, visto uma coisa ser o si em si mesmo e outra, ainda que imagem fidedigna nunca será a própria coisa, mas a sua (in)confundível representação, uma vez que a primeira é sempre obrigada e irreversível, quando a segunda, além de optada, apetecível, como em condições de comunicada. E até gerida. Porque tudo aquilo que um autor viva, toque, leia, pense, bem assim os locais por que passou, podem transformar-se em literatura a qualquer momento, sendo o mínimo que lhes pode acontecer, de uma elevada gama de acontecências e hipóteses, além do que a pior delas, das sucedâncias consequentemente, será a de tornarem-se exemplares ou irrefutáveis, fazerem-se fascículos de credo, porta-vozes facciosas e modelo de encíclica interpretação.
Retomando a parábola dos estorninhos como dos sonhos de alguns deles, será que este mago do deserto, também dito Saara da planície, das dunas como da feminilidade bíblica, ou dessa Sara alentejana, incertamente distante dessa outra princesa dominadora hebraica, Sara da Conceição (ou da concepção) de mulher como de mãe, preenchida em ressonâncias judaicas como célticas, pagãs como cristãs, esposa fiel e incansável, de fraco reconhecimento e pior vida, habitante do chão levantado, que só é figura principal do processo de criação quando o homem se ausenta, esse pássaro gregário, negro e voraz, estorninho que seja, animal de bando e voo arruaceiro, barulhento, estridente, mas que teme tanto perder-se deste viver entre e com os demais, que sonha ser a ave solitária que resiste, mas do qual acorda quando o solitário voo em pesadelo se transforma? Ou essa inquietação ancestral em desperceber porque insiste em brilhar a luz num mundo onde raros a vêem, de quase nunca como quase únicos? Ou porque havendo mortos e vivos lhes separam os mundos, se jamais uns poderão ser uns sem terem sido outros, nem serem estes senão o fim último dos demais, dando-lhes presentes diferentes quando tiveram iguais passados para idênticos futuros? Para que há-de arrumar o universo pela tômbola do tempo se a sua principal característica é precisamente desarrumá-lo?
Porque estas memórias do nobel português, não são simplesmente umas memórias pessoais, ainda que suportadas nelas, inspiradas pela infância e adolescência do autor, época em que lhe teria sido inculcada a tendência para reconhecer o quanto de fabuloso e fantástico e inaudito a vida encerra, o despertar para essa coisa maravilhosa que é reconhecer que a sabedoria não é uma só e absoluta, mas diversa e miraculosa, pois surge inesperadamente naqueles que tiveram menos recursos para a adquirir, não tiveram outra formação além da conseguida pelo facto de serem humanos, terem de resolver os problemas do seu quotidiano recorrendo apenas ao seu coração e raciocínio, inseparáveis um e outro, sempre reconhecendo que o pensamento é inconcebível sem o afecto, mesmo se firmado na linguagem fria e dura dos números, ou que sentir sem calcular o valor desses sentimentos é tonteira obscena e imoral, dado que amar sem o pensar para melhor saber fazê-lo é tara de egoísmo criancista, já que ninguém em seu perfeito juízo pode alhear-se do significado cognitivo de gestos primaciais como resguardar no seu próprio leito os porquinhos que lhe garantem o pão ou despedir-se, antes de morrer, de cada árvore do quintal como se de familiares, que em verdade foram, deveras se tratassem, o que faz delas, destas memórias, uma, mais uma diremos nós, novela de ajuste de factos para restabelecer o pacto com a narrativa alegórica, usando a técnica do labirinto e respectivo fio de Ariane, a reiteração, para desvendar, percorrendo-o, um espaço-quando precioso ao realismo mágico ibérico que é o tempo da infância bucólica, residente nas lembranças dos meninos e moços, independentemente de serem ou não as do autor, ou seus autores. Porque o leitor também é autor dessas memórias, na medida em que as recria confrontando-as com as suas, ou, se acaso possui imaginação e conhecimentos que lho permitam, retira delas ensinamentos para si comparando essas com outras memórias, semelhantes como diferentes, do mesmo ou de outros tempos.
Dito isto, quando nos referimos a memórias diremos novela, que por tal as podemos ler, pois assim lendo-a reconhecemos mais facilmente que esta relata aquele momento, porventura único na obra total de um escritor, universal ao caso, convém não esquecer, em que as personagens se tornaram mestres e o autor seu dedicado aprendiz, podendo legitimamente concluir-se dela, nela, por ela, quanto a literatura transforma a pessoa, não só ao ponto de lhe modificar o presente, alterar a intenção de futuro, mas igualmente de sublimar-lhe o passado, sobretudo naquelas situações em que a memória menos viva deixou em aberto um espaço para preenchimento com a teoria da vida, que por remotas careceram de atenção pertinaz, associações tão livres quanto controversas e subjectivas, e, por isso mesmo, essencialmente nucleares ou homem em que se tornou, se fez, se teceu e reinventou, no imbricado da escrita, poeta que seja, ou ficcionista – mas sempre, e indubitavelmente, Saramago, ou também planta para esparregado de pobre e expatriado, alimento de animais de criação, coelhos e porcos, por mealheiros apelidados nos canhenhos lexicais campesinos, cuja flor de quatro pétalas foi, é, elemento substancial na dieta do pensamento mediterrânico e peninsular. Que por duas vezes tida pode achar-se nela a rosácea, como em José primeiro nome comum a Dinis, seu homónimo parceiro das pescarias no Almonda, lavador das Azinhagas do mundo, ruelas com foral desde o décimo terceiro século, alagador de lezírias ladeado por choupos, que fazem um todo verde e sonoro, pois de ramo em ramo acorda o canto das aves que lhe moram e pipilam o curso sinuoso, o cheiro a limos, a macieza quente do lodo vivo, caldo de vida, onde nadam os peixes como em lava de sangue, oscilando entre duas águas que nem apelos imprecisos da memória, ou enfim, digamos antes, da narrativa ao aquele que anteriormente ele fora. E a propósito convém recordar, como também as de Garrett foram e não grandes, porém precisas e de mestria, embora contrárias por que rio acima, tidas onde estas desaguam, exactamente por isso pertencentes ao mesmo caudal onde se fizeram as navegações interiores românticas, oriundas dos afluentes que ao Tejo engrossaram e fizeram maior, mas respigadores ambos de tormentos, significados e sentimentos, idos no fandango dos dias, qual leiva de coragem escorrente nos esteiros com que irrigaram o cultivo de sonhos, soeiras redolentes de caçar maias enquanto se guardavam rebanhos de metáforas no plantio dos seres convexos à lusitanidade da fala...
Houve quem afirmasse, ou mais precisamente, escrevesse, que este livro de Saramago consta única e exclusivamente de memórias, "memórias sem plano rigorosamente concebido, cronológico ou outro, antes acorrendo às páginas de forma casual, um facto lembrando outro, uma figura chamando outra", como se um escritor, qualquer escritor pudesse fazer isso depois de ter escrito cinco livrinhos somente, demais a mais tratando-se de um laureado com o Nobel e dezenas deles, como factualmente é, evidenciado claro está, quem tal afirmou, que muito pouco tem escrito, quer criando como avaliando escritos alheios, e da escrita ou seus modelos narrativos, semiótica ou interpretação analítica, esclarecimento dos efeitos da psicanálise na literatura, bem como nesta se revelam a introspecção e o método das associações livres, pouquíssimo o preocupem, uma vez que estas noções deveras circunscritas pelos glossários técnicos e científicos, raramente são exercidas ou exemplificadas pelos autores, que reservam esse mister aos seus personagens se caracterizados estão dentro de tal universo, o que são duas coisas assaz distintas e diferentes, pese embora partes integrantes e complementares do mesmo processo: a ficção narrativa. Ou relato em prosa que jamais se poderá enquadrar na biografia, na história ou no jornalismo.
Provavelmente por as não associar – às memórias – a outros textos onde terão inicialmente vindo a lume, como discursos, entrevistas, crónicas, recensões, onde essas memórias já teriam sido reproduzidas, estampadas, fixadas, retorcidas ou adaptadas aos enunciados pretendidos, enquadradas, coladas e adaptadas, e a que posteriormente, não sem de novo terem sido trabalhadas, foram retiradas para depois serem alinhadas segundo o espectro de memórias, perspectivadas de acordo com o modelo homérico, circunscritas num esquema e simbologia mnemónico, que embora parecendo desfiadas sem preocupações estruturais, formam um amplo painel de quadros bem precisos e reunidos segundo determinada ordem: a de quem navega à bolina, sem forçar a memória a poder de remos ou demais recursos mecânicos, além das correntes e marés. Enfim, da naturalidade (dis)cursiva. Principalmente, porque a criança que o autor foi não viu as paisagens nem as pessoas que lhe estavam associadas, da mesma forma que o adulto que ele é, e em que se tornou por mor dessas "visões", os vê a fim de os relatar, pois a criança estava nessas paisagens, convivia com essas pessoas, vivia-as realmente sem as interpretar para as transcrever. "Estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não a interrogava, não dizia nem pensava", como o próprio afirma na página 15, se trepava ao topo do freixo distinguia coisas, mas agora quando se imagina a fazê-lo essas coisas viram significantes e seus significados, distintos daqueles outros que então vislumbrava. Até um cheiro é diferente da recordação desse cheiro, e ao odor de outrora o sujeito, ainda que sem o querer, lhe empresta alguma saudade de si. As figuras do passado seriam, nas tintas, no traço, nos vincos de personalidade, mutáveis conforme o ânimo ou situação a que foram acopladas; mas as descritas, incluindo as situações ou cenas que as integram, estão todas elas pelo propósito que se tem ao fazê-lo, metamorfoseando-se à semelhança do que sucedeu, por exemplo, com os avós maternos, Jerónimo e Josefa se chamavam, analfabetos ambos, mas acerca dos quais terá reconhecido imensos e incomuns sabedorias, a quem fez viajar até à Suécia através do discurso aí pronunciado na academia, que começa precisamente por esse reconhecimento ao proferir que "o homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto meia dúzia da porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. (...) No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto da água dos cântaros gelar dentro de casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salva-os de uma morte certa." Mas esta não é, sem dúvida alguma, dentro das memórias em livro, a única repetição, o único dizer acerca do que já anteriormente terá sido dito, sob vários motivos e diversos ângulos, que podemos constatar na obra, aliás metamorfose de passados escritos e memórias. E isso é ficção. É conjectura sobre conjecturas ainda que elevado grau de fidelidade as sustente. Sempre. Excepto nas excepções que confirmam a regra, o que este livrinho não é, ainda que excepcional!

Vinte e quatro horas da vida de uma mulher
Stefan Sweig


Não é pelo facto de alguns livros serem relativamente pequenos que serão menores obras, mas antes pelo contrário, que se um homem tem algo para dizer ao seu semelhante, di-lo, sem fosquices nem maneirismos, afectações ou impertinências, envieses ou maus-olhados, complicados de sabujo ou papagaiice de cocote, pois que importante seja, isso se faz com pouca lambança e menos artifício, diz-se de uma só vez e está dito, fica seguro e firmado entre emissor e receptor, assegurado e de olhos nos olhos, como um aperto de mão, um beijo, um abraço, um soco, um pontapé, sem o mínimo equívoco, salamaleque ou astuciosa manigância, engenhosa mentira de subalterno ou complexa aritmética da artimanha nas rasteiras da fala. Fica ali de pronto, exposto como um brado, um marco geodésico, um rio que corre entre montanhas, uma cruz no alto do outeiro, um uivo de lobo ao luar, de pé e hirto na paisagem da noite, a interromper as passadas ou a rasgar as nuvens, estabelecendo ligação imediata entre o céu, a alma dos homens, e a terra negra de cultivo, o chão estercado e fértil, ou entre os ossos de pedra cinzenta e vulcânica dos esqueletos maternos e os seios ancestrais que nos abocanham a fome de pecar, de comer o fruto das paradisíacas frondes. Não carece de enfeites nem de néons suplementares, de carnavalidades natalícias nem de pisca-piscas de sedução e convencimento alheio, mas joeira o grão da rabeira como se fora uma acesa vela no breu da madrugada, uma fresta de luar na clarabóia do telhado, uma árvore milenar no relevo da planície, uma bica de água cristalina a jorrar dos confins da contramina na serra do tempo. Porque nele, normalmente, pode e é dito tudo quanto deve ser dito e havia para dizer, sem remorsos nem escusas de falsa e hipócrita virgem.
É o caso de Vinte e quatro horas da vida de uma mulher, de Stefan Zweig, coisa de 160 páginas em formato de bolso e tipo médio, publicado pela Livraria Civilização – Editora, na tradução de Alice Ogando, antiga senhora das adaptações radiofónicas dos clássicos portugueses como estrangeiros, pelo menos dos não censurados clássicos, dos regimentais e incontroversos individualistas, todavia etiquetas pouco aderentes à pele do autor, pacifista, cosmopolita dos sete costados, deveras dado ao convívio e amizade, sustentáculos do Mundo de Ontem mas igualmente renovados no Brasil, país do futuro, cuja panóplia de companheiros vai desde Freud, Dalí, Romain Rolland, Jules Romains, onde estabelece definitivamente que ler nunca é, nem pode ser, um acto falho de imaginação, mas ao invés, antes exige o exercício acuidado da descodificação de numeroso rol de símbolos, números, figuras geométricas, designações alfabéticas, cabalas, sem as quais os pequenos livros não sobreviveriam para lá de suas ralas páginas, e que balizam a mensagem que inspirou a sua criação e escrita. Porque ela está lá e indicava, ao tempo, o único caminho possível para o povo judaico da Alemanha nazi, se se quisesse subtrair ao genocídio hitleriano, que seria, conforme o próprio fez, o caminho do mar até ao novo mundo ou país do futuro, e cuja inobservância pelos seus compatriotas esteve na génese do suicídio a dois, dele e da mulher, aliás também este à imagem e imitando aqueloutro de Kleist e Henricheta, seus biografados, repetindo-o, sendo-lhe analogia, tal como nesta novela Henricheta repete Mrs. C, reflexo intencional desse jogo de alegorias e seu espelhamento, processo de repetições em catadupa, de imagens que se multiplicam noutras suas derivadas, transformações apenas possíveis pela actividade heurística da metáfora, alegorias que se desdobram em analogias que, por sua vez, outras figuras alegóricas geram e espelham, a que afinal é a ficção romanesca, o discurso narrativo apoiado na metamorfose e inquietude do (dis)curso da história.

Porque, confesso, aquilo a que assisti sobretudo na leitura, não foi tanto as 24 horas na vida de uma mulher, mas sim 24 anos (por exemplo, entre 1918 e 1942) na vida da Europa, esse continente entre guerras, ditos assim dez anos antes do seu terrífico apogeu, em 1932, numa reunião, tão suspeita quanto ocasional, de sete pessoas numa pequena pensão da Riviera, de onde, porque lateral e paralela, era possível bisbilhotar a alta burguesia da época, enquanto mediática clientela do excelso, e em moda, Hotel Palace. Ou cada passo dos ponteiros no mostruário de um relógio de estação, símbolo de uma época que tem por núcleo fundamental a revolução industrial, simultaneamente imagem emblemática do cosmos, do tempo mitológico ou Cronos, mas igualmente do tempo anual das quatro estações, cruz cardeal global sobre o espaço-quando absoluto, para (re)desenhar nele os oito pontos cardeais da Rosa dos Ventos, fazer renascer nela, ou por ela, O Cavaleiro da Rosa, estrangeiro à cruz grega, mais tarde de malta, como se fora um Santo André, cuja crucificação em X, acoplada ao cristianismo, traduz o preciosismo barroco da Rosa Cruz, significando ela mesma um ciclo de renovação, indicativo da urgência de fuga ao povo judaico, caso este não queira lhe venha a suceder o que outrora aconteceu a essas duas ordens (Hospitalar de S. João e Santo André) sob o jugo beneditino, decisão que carecia de imediatez, de pressa, pois corria-se contra o tempo, aumentando-lhe o risco, pois quanto mais tardia, mais se tornaria arriscada essa fuga, como enfim se veio a demonstrar mesmo impossível e mortífera para milhões de pessoas, chacinadas nos campos de concentração nazis.

Principalmente porque nela, nesta novela, tão iniciática quanto fantástica, está lá tudo isso dito mas calado, visto que carece de ser entendido usando a imaginação, estabelecendo relações entre termos anteriormente pouco relacionáveis, dito e sublinhado em diferentes e repetidas formas alegóricas, em analogias transformadas, incluindo essa quase pleonástica fórmula cabalística, derivada do modo de interpretação e análise do Antigo Testamento, cujo trajecto consiste em repetir as repetições, muito didacticamente traduzindo o alfabeto na sua expressão numérica, para assim ganhar a certeza de vir a ser compreendido por todos, entendido pelo maior número de pessoas, ou de leitores envolvidos e interessados, como se fosse necessário explicar tão exaustivamente uma coisa, um cenário, um enredo, uma situação, uma chamada de urgência a alguém incapacitado de ver com os olhos, mas sobretudo incapaz de imaginar tudo aquilo que vá para além daquilo que as fere e impressiona. Isso, a urgência de partir mar fora sem receio de perder tudo o que ficara, antes se conseguira com engenhoso sacrifício e a tenacidade de povos eleitos na provação divina.

Porque escrever é transferir segredos, forjar cumplicidades anteriormente tidas por impossíveis e somenos recomendáveis, revelar inconfessáveis sentimentos, prospectivas e opiniões, transgredir os limites do racional através do inaudito, estabelecer ligações entre diferentes identidades, rasgar absolutos, renovar e multiplicar as possibilidades de ser quando em sendo se esculpem verbo, tanto o do seu criativo como do leitor, que assim se insurgem para lá das fronteiras restritas da significação e soletrações ordinárias. É iniciar humanidades onde antes apenas havia percepções e sentimentos através da transfusão de metáforas, acalentar a liberdade pela expressão máxima da sua capacidade de disseminação e sobrevivência, anexá-la à teoria de vida de cada indivíduo tornando-a tão multifacetada quão diversa, e, por isso mesmo, não somente diversa e diferente como geradora de diversidade, rasgando não um mas tantos caminhos para a eternidade quantos os leitores, criadores e demais intervenientes que a interiorizam ou a expõem, assimilam como divulgam, e dispostos estão a reproduzi-la, recriá-la, aspergi-la em cada outro, semelhante, familiar, estranho ou simples "espectador esporádico e momentâneo" com quem contactem no seu dia a dia.

Pelo que se pode afirmar que a verdadeira tragédia de Stefan Zweig foi essencialmente fruto da sua humanidade, da sua crença no ser humano e sua inteligência, por quem acreditou ser suficientemente lúcido paras ver além do visível e capaz de querer acima do seu egoísmo, necessidade de desenrasque adjuvante ao salve-se quem puder da sobrevivência animal, instinto e sentido de defesa particulares à visão antropocênctrica, narcísica, niilista, ortodoxa aos cânones bíblicos do mundo e da existência, pois uma vez desiludido se aniquilou, rendeu ao suicídio, transformando a morte num acto público de denúncia, um grito de alerta como de revolta, chamando a atenção para a incontinência xenófoba e fazer retroceder a marcha aos nacionalismos, inverter as directivas burguesas, corporativistas e industriais que os geraram, a todos eles, bem como a sua vontade de poder na tentativa de domesticar a liberdade, servindo-se dela para oprimir outras nações e povos, e instituir a consciência colectiva como seu principal refém para obstruí-la ou amputá-la a quem se lhe opusesse, afinal tão comum ao século passado como ao actual, ao abrigo dos conceitos e convenções de defesa contra os terrorismos utilizando práticas terroristas, legitimadas no quorum das nações pelo medo e prevenção deles.

Visto que só um louco desumano, ou ser perverso de baixíssima índole, seria capaz de assistir à captura, humilhação e morte dos seus amigos, sem tentar contrariar positivamente isso, sem lutar por eles, alertando-os dez anos antes, e muito antes de todos os mais, naquele jeito de ir sempre à frente expondo-se exemplarmente, indicando o caminho do futuro sob a imperiosidade da fuga, usando a suas principais armas, a ficção romanesca e língua, como gesto de denúncia e brado de incitamento, deveras ansioso conforme lhe caprichou a vida e é comum a quem, até na morte, se quis demasiadamente impaciente: fazendo desta obra a sua carta para os conhecidos e amigos, também eles possíveis vítimas dum amok europeu que germinou do obscurantismo para contaminar toda a intelectualidade vienense, naquela indiscritível loucura que é a guerra – mundial para quem lhe assistiu de fora, mas efectivamente pessoal e cruel para quantos nela, ou por ela, pereceram. E que nem a sua criação literária poupou!...

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