Oh, que bezana!

(Memórias de um alcoólico arrependido)

Sempre que me embebedo a valer, daquelas de caixão à cova, fico dois ou três dias a remoer sobre os destroços em que restei. Além dos remorsos pelo dinheiro que gastei, acrescento-lhe invariavelmente as “vergonhosas” figuras (de estilo) que hipoteticamente terei cometido, contado com as “fabulosas” quedas dadas. Sou, assim de caída em recaída, massacrado sem contemplações por mim mesmo, precisamente na altura em que eu próprio menos necessitava de críticas. Quer dos outros, quanto mais das auto-infligidas!
É, portanto, este o principal defeito que encontro à fragilização alcoólica; a fragilidade natural acrescentada pela fraqueza tida. Eis o ponto consequente duma redundância permitida. E, mais ainda, a constatação objectiva duma autodestruição gradual, em crescendo acelerado, cujo fim em clímax é a morte, primeiro de todas as capacidades intelectuais, ao que se lhe seguem as físicas, para que nos quedemos finalmente com um corpo sem alma e no qual a cadeia de DNA é supervisionada pela repetida sequência do erro.
Só o alcoolismo dos outros não é um problema de hoje. Porque o nosso, o de cada um, é irremediavelmente premente e actual. Inclusive actuante. Ao escrever este romance, faço-o como uma explícita exigência terapêutica, na tentativa de assim me precaver e evitar outros desmandos e abusos. Conseguir acabá-lo com êxito, corresponderá a não ter bebido mais uma gota sequer desde que o comecei. O que sem dúvida pode ser a primeira vitória, matriz e génese em perspectiva das outras que lhe poderão suceder. A original utilidade do acto criativo, o princípio básico da arte, que é, afinal, o de ajudar o homem a resolver os seus problemas essenciais, reside na busca de uma vida de qualidade que além da sobrevivência lhe facilite também a valência. De onde a reabilitação, a reconquista da dignidade e da valorização pessoal deixarão de ser palavras de apenas som, para passarem a ser condóminos do significado.
Para melhor me caracterizar direi que sou a ovelha ronhosa, o verdadeiro espécime porra-louca de uma família preconceituosa, tribal e benquista de Casal Parado. A mancha negra no pano púrpura do embandeirado orgulho duma prole bem sucedida. Pobre, feio, solitário, sem interesse físico notável, nem hipocrisia social ou sentido das (in)conveniências que facilitem a aproximação dos demais, e muito menos dos familiares. Estúpido e cruel, visto mal, não tenho maneiras, arroto veneno (quando escrevo), vingativo nos dizeres e medíocre nas contemplações, jamais consegui corresponder às expectativas dos pais, dos professores, dos amigos, dos leitores, dos políticos, dos editores, das personalidades públicas e, acima de tudo, das mulheres. Enfim, sem préstimo, carácter nem temperamento, transformei-me pouco a pouco num indivíduo sem pessoa dentro. Aliás único motivo de celebridade por que fui reconhecido. E sou. Conhecido – digo. Eu!
Duma forma ou de outra estive-me continuamente a borrifar para as circunstâncias, ao que os circunstantes me pagaram com moeda idêntica. Nascido sem graça nem motivo, abusei da desgraça abichando o prémio duma poliomielite aos três anos, condecoração e fatalidade com que consecutivamente traí a sacrossanta esperança na evolução genética da espécie. Erro imperdoável que secundarizou o plano cromossomático, estando no local errado à espera do “caminho” errado, quando nunca lá devia ter estado e, acima de tudo, disponível para o que desse e viesse, ou sequer respirar como qualquer mortal. Pelo menos supõe-se que tal era previsto e devia ter sido evitado por mim em benefício da humanidade. Por conseguinte, falho de cálculo e sentido de oportunidade. Ou não fora eu mais um de quem a eternidade se arreceia!
Enfim, posta assim de sobreaviso – se Deus o castigou é porque algum defeito lhe encontrou – a sublimidade social condoeu-se permitindo que crescesse, que crescesse sim, mas afastado, lá num Monte de ostracismo e indiferença, onde pouco e somente quase só familiares me vissem e nenhuns me causassem mal, ou fundamentalmente bem, tive o primeiro livro sem ser de estudo quando já ia a caminho da rega da horta. Que, pronto!, não foi comprado. Mas também não foi dado com esclarecidas intenções, abone-se.
Do destino, à falta de outro nome para reconhecer o valor duma sentença da vida, houve apenas os esgares da predestinação. Má rês, péssimo de ouvido e refractário nos olhares, abstive-me de argumentar, lutando em ser outro senão aquele com que me havia condecorado. E, aferrado nisso, exagerei. Tanto em dose como em convicção. Sobretudo concretizando-o. Feito de propósito, ou por encomenda do despeito, ele vingou-se, aplicando-me sobrecarga na inutilidade e pardacenta agrura, e em consequência pôs-me a brincar sozinho às pessoas, imaginando vidas alheias, situações impossíveis nas rotas do devaneio – tornou-me em algo com queda para a poesia (de pé quebrado). Literalmente, e ao dispor de V. Exas. Ponto.
Nomearam-me ao notário... Não queria acreditar! Flamínio Eleutério, como é que se escrevia?!... Foram a folhas, e lá estava. Desenhou-se no livro o evento. Dos registos, isso. E, provavelmente, foi essa a nomenclatura para a exasperação divina. Tem-te não caias para os primeiros passos, derrapei logo no gatinhar: pais separados, porrada e grito de três em pipa, peido colateral de avivar o ambiente e um aborto, pela parte materna, mal engolido, digerido e desovado, deram eflúvios douramentos à meninice confrontada.
Outra nomeação que veio a somar obstinação aos olímpicos desígnios, foi a dos anexos da Luz Diabinho. Iluminação pouco credível, como é evidente. Maternidade pouco abençoada, foi um ver se te avias no despacho da encomenda. Portanto, grosseiro e rubicundo. O escrivão da conservatória notou-o. A primária confirmou-o. A maledicência da vizinhança sublinhou-o. A sorte não o desdisse.
Nas aparas do acontecimento trocaram-se as datas ao aparamento. Nado e aparecido a nove firmaram-no a sete – de setembro, para ridículo da parra. A uva ressentiu-se, castigando-me no mosto depois... Vício a que não opus resistência, nem aliviei como fardo. Um bêbado a mais ou a menos, quem se viria importar com tal? Foi, e deu capítulo.
Consumada a encrenca, faltava dar-lhe o porém do prestígio. Más notas. Péssimo comportamento. Irregularidade na presença. Fraca disciplinaridade e compreensão. Leitura distorcida. Matemática fracassada. Solfejo sem acuidade. Pronúncia atabalhoada. Soluções copiadas. Cábulas apanhadas. E, com atribulada observância, companheirismo inexistente. Arrogante e quezilento, desconfiado e inseguro, revoltado e incapacitado para o desporto depressa optei por ficar de fora mal pressentia que era a isso que se aprestavam para votar-me. Nunca mo perdoaram. Nem eu. Um exemplo gritante e rigoroso do que é a acomodação: a inacção.
No jogo de cartas aprendi primeiro a fazer batota do que as regras e a jogar correctamente e sob os postulados do desportivismo. Na poesia, também. Na comunicação social, idem. E na postura existencial recapitulei pelas duas, ind’assim! Pudera. Se a única regra que aprendera fora a de três (simples) puros e cheios... Por preguiça no traçar e falta de talento para outras mais complicadas (e exigentes).
Discurso elementar tive-o desde a infância montesina, onde os linguajares se resumiam à faina agrícola e apreciações sobre o tempo. De folguedo só o rádio, somente a horas certas, para as notícias e folhetim. Serão, pouquíssimo e nem para trabalhadores, que as pilhas custavam um dinheirão, aliás coisa rara na freguesia, e com que se não podia desbundar, sendo ninharias absorventes. E distractivas da seriedade austera e real.
Feitos quatro livros não consegui publicar nenhum. Eram (e são) péssimos, embora um deles tenha tido o primeiro lugar num concurso concelhio de prosa e poesia. Tendo laborado em diversos jornais regionais jamais auferi qualquer remuneração pecuniária ou simpatia pelos linguados. A contas com a má virtude e a falta de jeito para a coisa pública em letra de forma, a teimosia valeu-me só pelo prazer de contrariar. De provocar. De rezingar. De aspergir o ego com uma composta e fingida literatice intelectualóide. E de pseudo intelectual. Então, adveio a desilusão costumeira, e foram outras tantas litradas para me desculpar do falhanço.
Se tal não tivesse acontecido, atribuiria a causa à falta de sucesso com o sexo oposto. O primado da desconexa vitimização estavam-me no sangue. A autocompadecida culpabilização inclusive. Daí que tenha desperdiçado os melhores anos da minha vida a pensar em ti. E tu eras ninguém. Foste aquela a quem persegui nos meus sonhos e fantasias. Foi para te conquistar que tentei tornar-me um escritor, um jornalista, um funcionário público, um empresário empreendedor, ou um arrivista político. E quase o ia conseguindo, a todas essas promissoras e aliciantes carreiras, não fora o facto de não existires, o vácuo que deixavas quando reconhecia que não eras, e que de entre todas a que menos merecia o meu sacrifício. Sacrifício!... Pois era assim que entendia o amor; o que deu no que deu (e se viu) – e ainda me admirei!...
Somos egocêntricos por natureza. E por necessidade de crescimento. Depois ultrapassamos a fase e tornamo-nos outros, dispersos e absorventes do mundo em redor. Eu continuei concentrado em mim egoistamente, mas fiz-me esponjoso de ser. Aliás embebido em alucinação alcoólica, prenhe de narcisismo frustrado, em espiritismo absolutista e absurdo.
Nunca fui quem deveras era. Pretendi ser sempre outro qualquer que não eu, para poder ser ainda mais eu, em perfeccionismo e desfaçatez por tudo aquilo por todos aqueles que não eram eu e me suplantavam. De onde, portanto, queria à viva força ser amada só pelo que era, quando não absolutamente nada, nem eu mesmo, ou sequer o reconhecia. O que por si enquadrada a pior atitude que se pode tomar. Porque nada resolvia, agravando contudo o estádio de insensatez, capacitando-a de crónica.
Não vejo precisão de repetir nomes de pessoas ou personagens que comigo se cruzaram, e a par caminharam nesta trágica trajectória de procurar os limites da vida. Mas se o quisesse fazer, de bem poucos me lembraria com exactidão e objectividade, por quanto os não via, antes os observava à luz dos meus escondidos e subterrâneos interesses. Utilizava-os segundos as proposições momentâneas, e largava-os de seguida e imediatamente. A alguns, melhor intencionados, isso magoou-os, pesou-lhes e suscitou óbvios ressentimentos. Então reagiram conforme os meus anseios, e puseram-me no lugar, proporcionando-me a vaga de vítima, atribuindo-lhes a totalidade da culpa na separação ou processo de degradação das nossas relações. Aparentemente incompreendido revulsionava. Entrava em convulsão estéril e gratuita, levando as ofensas para o mútuo sentido, dando aos seus motivos razões palpáveis para manterem os seus comportamentos de afastamento. Era um Maquiavel elevado ao caricato do dia a dia. O jogo armadilhado num tabuleiro que unicamente eu via – e assim jogava, comandando-o a meu bel-prazer.
Aprendi a chorar por compaixão desde os tenros anos, com infinita peninha de mim, quando vivia com meus avós paternos, num Monte próximo de Casal Parado, depois das visitas dominicais de meus afortunados primos, e por inveja ao tratamento de excepção que estes lhes concediam. Jamais tive a certeza de haver real fundamento para esse sentimento, mas estava verdadeiramente empenhado em que assim fosse. Servia positivamente a negatividade da minha opção de excluído e desintegrado, reforçando o sentimento de inferioridade com um comportamento lógico quão imaturo. É que eu vivia diariamente com eles, partilhava deles durante toda a semana, enquanto que os primos, igualmente netos, só estavam na sua companhia um dia e de oito em oito, quando era. O sentido de justiça levava consequentemente

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