Um Pequeno Inconveniente, de Mark Haddon
Mark Haddon
Trad. Ana Corrêa da Silva
Se consideramos a espécie humana como apenas mais uma estratégia, entre milhentas outras, que a vida inventou para se eternizar, a família, tal como a conhecemos e/ou concebemos, é tão-só aquele projecto onde essa tentativa de eternidade melhor se executa, na medida em que propícia uma reprodução responsável e consciente, facultando os cuidados primários, o crescimento, a educação, a socialização, o estabelecimento de laços afectivos e desabrochar emotivo, transmissão de valores (exemplares), práticas e instituições, além de garantir níveis razoáveis de assistência e solidariedade na doença como na morte, nas dificuldades económicas como na integração e sustentabilidade social, na caracterização geográfica como planetária, na identidade cultural como na veiculização religiosa, então esta família, a de George Hall, é igualmente uma família, porque consegue aquilo que as famílias ortodoxas almejam e conseguem, embora o faça por portas-travessas. De forma complicada naquilo que é simples, e simplesmente simples quanto ao que em muitas é deveras complicado. Precisamente porque ela não assenta na gestão da comunicação, mas ao contrário, sobrevive da tentativa de gerir a incomunicabilidade que gera. Enfim, é uma família vulgar!...
Ou seja, se quem leu O Estranho Caso do Cão Morto, a outra obra entre nós publicada do mesmo Mark Haddon, para quem o adultério é sempre praticado no feminino, e a infidelidade é o motor motivacional da tragédia (explanada) familiar, encontrou já algumas dificuldades em encaixar o seu conceito de família no quadro e cânones de moralidade e socialização tradicionais, querendo-lhe parecer que ela navegava por uma via sinuosa, esburacada, ao solavancos, apertada, onde era difícil executarem-se manobras e circulação nos dois sentidos comuns no ir e voltar da realidade genérica, então este Pequeno Inconveniente parecer-lhe-á, sem dúvida, o sair dessa estrada secundária, acidentada e sem condições mas com pouco trânsito, para emergir e entrar de rompante numa auto-estrada sobrecarregada e intransitável, porque em contínua hora de ponto, onde a circulação se processa de forma anárquica e caótica, esquizofrénica e stressante, por estarem mais preocupados os condutores com aquilo que os demais, na sua visão, deles e de si próprios, "imaginam" pensar de si mesmos, do que com as regras de trânsito e perícia de condução, demonstrando uma dificuldade constante em desembaraçarem-se das suas manietações pessoais e interiores, o que lhe iria permitir reconhecer os demais elementos familiares envolvidos na plenitude dos seus defeitos e qualidades. Igualmente acidentada, onde o acaso escreve direito por linhas tortas, e a fuga esclarece a qualidade dos compromissos, típico comportamento da evitação do mal maior, que são as águas onde se espanejam os investimentos afectivos, ou familiares, subordinados à sorte, à urgência da cumplicidade num crime em vez da partilha e cooperação num projecto, que lhe minam os fundamentos, corroem os alicerces e contaminam a sustentabilidade, pondo a nu a fragilidade e natureza das suas relações internas, estabelecidas entre membros (supostamente) iguais no seio dela, mas cuja igualdade se assemelha muito com a noção espelhada dela por George Orwell, em O Triunfo dos Porcos, onde todos os animais eram iguais mas havia uns mais iguais que outros.
Portanto, e em resumo, digamos que se O Estranho Caso do Cão Morto, de certo modo, abalou algumas consciências como estilhaçou, desestruturou, rompeu a rigidez caracterial típica de alguns meandros conservadores, logo menos aptos à mudança de paradigma, que se escoram nas determinações do passado para se adaptarem às circunstâncias (originais e inéditas) do futuro, o que imediatamente nos ocorre com a leitura de Um Pequeno Inconveniente é que esse abalo é ínfimo e insignificante se comparado ao terramoto, à derrocada que o conceito de família tem no segundo, onde os planos arquitectados e congeminados apenas pelas partes, pelos indivíduos que a compõem, na tentativa de lhe cortar, amputar as chagas, ou "cancros", ao invés de lhe resolverem os problemas antes os agravam, avolumam e detonam crises, umas mais profundas que outras, é certo, mas das quais é sempre impossível sair sem trauma. Todavia, se acrescentarmos que essa visão ortodoxa de família, que se institui como imagem de marca registada nos pergaminhos ancestrais do establishment, seja condimentado pelo benquisto ascendente da moral ou das capacidades e talentos anexos ao pedigree genérico, como no bem-visto estatuto com trespasse garantido de geração em geração, que lhe facultará manter um padrão de vida assente nas qualidades intrínsecas da família, aliás evidentes como espelhadas no seu patrono, que se lhe colam como luva de pelica, e demonstra quão irrefutável é o argumento da consanguinidade. E vem corroborar a ideia de que se quando a sociedade muda a família acompanha-a mudando-se com ela, não é menos verdade o vice-versa, posto que quando a família se altera a sociedade também sofrerá uma mudança consequente, num arrasto mútuo, e onde os primeiros efeitos dessa mudança se notam mais é nas relações que se estabelecem dentro das famílias, sobretudo aquelas em que a sua natureza institucional (baptizado, casamento, divórcio, graus de parentalidade) está vincada, em traços grossos, porque é nisso que a família se assemelha e identifica com as demais famílias. Se cimenta socialmente.
Ora, perdendo ela a sua noção de coutada reprodutiva, de célula da abdicação individual em favor do grupo consanguíneo, onde a reserva de condutas e pensares alimentava o secretismo das cumplicidades, os seus membros sentem-se desamparados, inseguros, desobrigados das suas responsabilidades e expectativas, empurrando-a para o cataclismo que já reconhecem na sua consciência, quer assumindo comportamentos e valores que lhe eram alheios, quer desimportando-se com a instabilidade que provocam com isso, mas considerando sempre que não a merecem e antes são suas vítimas que causadoras. O que, afinal, é o caldo cultural propício à sua queda estrutural, ao seu desmoronamento, uma vez que estava alicerçada na defesa dos males que vinham de fora, mas que deixaram de o ser (males) porque passaram a estar-lhe dentro (cancro, infidelidade, droga, homossexualidade, divórcio, intolerância), tudo coisas que pensavam ser condenáveis e infectas lá fora, mas que à medida que lhe entraram em casa passaram a pormenores de identidade que subscreve a diferença entre iguais. E isso é obra, mesmo para quem pense que este livro mais não é do que outra obra, do mesmo autor!
Trad. Ana Corrêa da Silva
Se consideramos a espécie humana como apenas mais uma estratégia, entre milhentas outras, que a vida inventou para se eternizar, a família, tal como a conhecemos e/ou concebemos, é tão-só aquele projecto onde essa tentativa de eternidade melhor se executa, na medida em que propícia uma reprodução responsável e consciente, facultando os cuidados primários, o crescimento, a educação, a socialização, o estabelecimento de laços afectivos e desabrochar emotivo, transmissão de valores (exemplares), práticas e instituições, além de garantir níveis razoáveis de assistência e solidariedade na doença como na morte, nas dificuldades económicas como na integração e sustentabilidade social, na caracterização geográfica como planetária, na identidade cultural como na veiculização religiosa, então esta família, a de George Hall, é igualmente uma família, porque consegue aquilo que as famílias ortodoxas almejam e conseguem, embora o faça por portas-travessas. De forma complicada naquilo que é simples, e simplesmente simples quanto ao que em muitas é deveras complicado. Precisamente porque ela não assenta na gestão da comunicação, mas ao contrário, sobrevive da tentativa de gerir a incomunicabilidade que gera. Enfim, é uma família vulgar!...
Ou seja, se quem leu O Estranho Caso do Cão Morto, a outra obra entre nós publicada do mesmo Mark Haddon, para quem o adultério é sempre praticado no feminino, e a infidelidade é o motor motivacional da tragédia (explanada) familiar, encontrou já algumas dificuldades em encaixar o seu conceito de família no quadro e cânones de moralidade e socialização tradicionais, querendo-lhe parecer que ela navegava por uma via sinuosa, esburacada, ao solavancos, apertada, onde era difícil executarem-se manobras e circulação nos dois sentidos comuns no ir e voltar da realidade genérica, então este Pequeno Inconveniente parecer-lhe-á, sem dúvida, o sair dessa estrada secundária, acidentada e sem condições mas com pouco trânsito, para emergir e entrar de rompante numa auto-estrada sobrecarregada e intransitável, porque em contínua hora de ponto, onde a circulação se processa de forma anárquica e caótica, esquizofrénica e stressante, por estarem mais preocupados os condutores com aquilo que os demais, na sua visão, deles e de si próprios, "imaginam" pensar de si mesmos, do que com as regras de trânsito e perícia de condução, demonstrando uma dificuldade constante em desembaraçarem-se das suas manietações pessoais e interiores, o que lhe iria permitir reconhecer os demais elementos familiares envolvidos na plenitude dos seus defeitos e qualidades. Igualmente acidentada, onde o acaso escreve direito por linhas tortas, e a fuga esclarece a qualidade dos compromissos, típico comportamento da evitação do mal maior, que são as águas onde se espanejam os investimentos afectivos, ou familiares, subordinados à sorte, à urgência da cumplicidade num crime em vez da partilha e cooperação num projecto, que lhe minam os fundamentos, corroem os alicerces e contaminam a sustentabilidade, pondo a nu a fragilidade e natureza das suas relações internas, estabelecidas entre membros (supostamente) iguais no seio dela, mas cuja igualdade se assemelha muito com a noção espelhada dela por George Orwell, em O Triunfo dos Porcos, onde todos os animais eram iguais mas havia uns mais iguais que outros.
Portanto, e em resumo, digamos que se O Estranho Caso do Cão Morto, de certo modo, abalou algumas consciências como estilhaçou, desestruturou, rompeu a rigidez caracterial típica de alguns meandros conservadores, logo menos aptos à mudança de paradigma, que se escoram nas determinações do passado para se adaptarem às circunstâncias (originais e inéditas) do futuro, o que imediatamente nos ocorre com a leitura de Um Pequeno Inconveniente é que esse abalo é ínfimo e insignificante se comparado ao terramoto, à derrocada que o conceito de família tem no segundo, onde os planos arquitectados e congeminados apenas pelas partes, pelos indivíduos que a compõem, na tentativa de lhe cortar, amputar as chagas, ou "cancros", ao invés de lhe resolverem os problemas antes os agravam, avolumam e detonam crises, umas mais profundas que outras, é certo, mas das quais é sempre impossível sair sem trauma. Todavia, se acrescentarmos que essa visão ortodoxa de família, que se institui como imagem de marca registada nos pergaminhos ancestrais do establishment, seja condimentado pelo benquisto ascendente da moral ou das capacidades e talentos anexos ao pedigree genérico, como no bem-visto estatuto com trespasse garantido de geração em geração, que lhe facultará manter um padrão de vida assente nas qualidades intrínsecas da família, aliás evidentes como espelhadas no seu patrono, que se lhe colam como luva de pelica, e demonstra quão irrefutável é o argumento da consanguinidade. E vem corroborar a ideia de que se quando a sociedade muda a família acompanha-a mudando-se com ela, não é menos verdade o vice-versa, posto que quando a família se altera a sociedade também sofrerá uma mudança consequente, num arrasto mútuo, e onde os primeiros efeitos dessa mudança se notam mais é nas relações que se estabelecem dentro das famílias, sobretudo aquelas em que a sua natureza institucional (baptizado, casamento, divórcio, graus de parentalidade) está vincada, em traços grossos, porque é nisso que a família se assemelha e identifica com as demais famílias. Se cimenta socialmente.
Ora, perdendo ela a sua noção de coutada reprodutiva, de célula da abdicação individual em favor do grupo consanguíneo, onde a reserva de condutas e pensares alimentava o secretismo das cumplicidades, os seus membros sentem-se desamparados, inseguros, desobrigados das suas responsabilidades e expectativas, empurrando-a para o cataclismo que já reconhecem na sua consciência, quer assumindo comportamentos e valores que lhe eram alheios, quer desimportando-se com a instabilidade que provocam com isso, mas considerando sempre que não a merecem e antes são suas vítimas que causadoras. O que, afinal, é o caldo cultural propício à sua queda estrutural, ao seu desmoronamento, uma vez que estava alicerçada na defesa dos males que vinham de fora, mas que deixaram de o ser (males) porque passaram a estar-lhe dentro (cancro, infidelidade, droga, homossexualidade, divórcio, intolerância), tudo coisas que pensavam ser condenáveis e infectas lá fora, mas que à medida que lhe entraram em casa passaram a pormenores de identidade que subscreve a diferença entre iguais. E isso é obra, mesmo para quem pense que este livro mais não é do que outra obra, do mesmo autor!
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