O Escriba e as Bonecas - Primeiro Caderno

B) BONECAS RUSSAS
( ou a importância do calçado )



Primeiro Caderno (Passo)


Palmira tem a voz (in)sinuante e sugestiva duma hipnotizadora. Lenta, sussurrante, cava, implora ao sonho e à desdita. Sofre-se por prazer mais facilmente do que se imagina! E obedece-se mesmo às mais indignas, criminosos e humilhantes determinações.
Conheci-a há um ano. Em Casal Parado. À hora da bica no café “O Bombeiro”, cujo nome deve à sua proximidade com o quartel dos voluntários desta vila. Bar que exibe uma pequena esplanada durante o Verão. Ou desde que o tempo o facilite, em qualquer outra estação.
A avenida é inclinada, com passeios ajardinados a arbustos e flores díspares; ao fundo, o largo principal do burgo. Tem-se a sensação de estar em outro lugar quando nela. Noutro sítio. As pessoas, numa ocupação pouco empenhada, sobem-na e descem-na com acentuada frequência. O Cinema, o Registo Civil e Predial, o Notário, a Casa do Povo, o Tribunal, as Finanças, tudo num equilíbrio paralelo, ficam nela. Como nas ruas principais das cidades dos filmes de cowboys, do Oeste recôndito: ao entrar-lhe a câmara, num plano geral introdutório da acção, estipula os limites espaciais para o enredo. Thriller, western, policial, cor-de-rosa, aventura, acção, terror, drama, comédia, cabem-lhe por medida. Basta fixar a objectiva e os actores passam ou param, conforme as exigências de cena, evoluindo na nossa compreensão. Há também as portas com chapa na parede, dos médicos de clínica geral, os dentistas, os psicoterapeutas, os floristas, os veterinários, advogados, escritórios de contabilidade agrícola e comercial, um banco, papelaria, perfumaria, pastelaria, dois cafés, seguradoras, pronto a vestir infantil, pizzaria, discoteca, armazém de sortidos e loja dos 300, a fim de ocupar o despropósito dos figurantes. E embora a toponímia deste país não me seduza, em que as mudanças políticas varrem o passado com idêntica ligeireza com que o vento o faz às folhas outonais, no comum rei morto, rei posto, sei-lhe o nome, talvez por não ser o de um ilustre ou dum alto valor prezado: simplesmente, Av. dos Soldados da Paz. Sem voluntários, nem bombeiros, a acautelar, para que no futuro não haja distinções entre eles e os municipais.
É suficiente um silencioso plano geral para que uma vozinha interior nos dite: “Foi aqui que tudo aconteceu...” E assim sucedeu, efectivamente; na mesa da esplanada dum café dessa artéria, conheci a Palmira. A Palmira desta história. Que por único particular diferencial de demais Palmiras, apenas tem o facto de pertencer a esta história. Sem sombra de remorso.
Bem... Também é sexy. E lúcida observadora. E perspicaz. E leitora de todas as minhas histórias (e disparates), que nem as feminis personagens de Camilo. O Castelo Branco. Pardo na vida e na morte. (Senões que só à literatura dizem respeito!) Aliás, a própria vida mais não é do que um romance de cordel mal contado. Falo-vos, como já se aperceberam, da paixão. Não; antes da submissão apaixonado do e ao amor. Antigo e cavalheiro. Mas também trágico e supérfluo, como adiante vereis. É pois altura, dum médio plano da mesa branca da esplanada, em que os dois estamos sentados.
Palmira tem o rosto oval, olhos castanhos, cabelo também castanho (clareado), penteado à Beatriz Costa dos bons velhos tempos. Os lábios são finos e a boca rasgada. Nariz e queixo miúdos; e neste último o sinal da discreta. Traja um vestido preto, dum tecido caro de que não sei o nome, colado ao corpo e a findar a meio da coxa seca, bronzeada e torneada. Os seios são pequenos, a que o decote não chega. Estamos frente a frente, e eu inclino-me. A cabeça levemente de esguelha, a fim de melhor a ouvir. Os dedos pequenos da mão afectuosa, curta e acariciante, quando não seguram no cigarro ou se entretêm com a colher do café, afloram os lábios, ora desenhando-os, ora comprimindo-os, num reconhecimento táctil de variadas sensualidades, não exibem quaisquer anéis ou aliança. Também não tem pulseiras, nem brincos ou fios no colar. Principalmente os da mão direita, que aos da esquerda é frequente esquecerem-se torcendo sem entusiasmo a costura do vestido. Cigarros, duas chávenas vazias, copos com água, uma mala de boneca ao canto direito dela, e, na minha frente, um caderno amplo aberto com um livro aberto ao meio por cima, são visíveis sobre a mesa de plástico branco. As mãos minhas, ocupadas ambas, com a esquerda de polegar enfiado sob o cinto das calças e a direita esgrimindo a esferográfica ou denunciando malabarismos, tentam abster-se de prolongar os ouvidos e os olhos – tentação, sobretudo contínua, aceleradamente crescente e imperiosa ao longo da conversa.
«Matei o meu marido.»
«Sério?!»
«Sim. Conforme ouviste», continuou ela. «Uma longa história. Foi uma ideia que me nasceu na escola primária. Andávamos na mesma sala. Foi amadurecendo dia após dia, hora a hora, minuto a minuto, sempre que o via e com ela estava. Nunca tive dúvidas de que o faria. Nem hesitações. A determinação é a minha principal qualidade, entre outras, como concluirás...»
Agora vem a propósito um grande plano dela. O rosto, o pescoço, as orelhas, a nuca. Observem as pilosidades sedosas, seda alourada imperceptível no buço e na curva do maxilar sob a orelha pequena e comprimida. Os dentes são largos, unidos e grandes, e as asas do nariz alçam felinas. O lábio inferior, sobressaído ao centro, um pouco mais grosso que o superior, dá-lhe um toque de sensualidade afro, enquanto a pele de bronzeado a fins-de-semana, no conjunto com os cabelos palha escura, lhe aplicam uma tonalidade nórdica. Híbrida no semblante, é, contudo, definitiva na feminilidade. Única. A.
«Na segunda classe eu era uma coiseca pequenininha, redondinha, fofa, que não podia ver meninos louros. Os meus braços, os meus olhos, a minha respiração fugia para eles, atraída eu toda em inocência imaculada e adoradora...»
O jeito de olhar dela é de baixo para cima, avançando a testa e retraindo o queixo, intelectualizando a timidez. O branco do globo ocular emergindo da pálpebra, distrai-nos da tentativa de lhe invadirmos o âmago imo pela porta da íris castanha salpicada na pupila. Ao fechar os olhos é um convite que nos faz. Um “tudo bem” de gata. Um convite à entrega, à submissão. Um apetecer fechá-los também, aos nossos, em rendição, sem atender a receios e riscos.
Acende o cigarro. Expira o fumo. E continua.
«Seguia-o que nem um cachorrinho, sem nada esperar em troca. Apenas pelo prazer de o acompanhar, de participar das suas brincadeiras, de o proteger, de o servir, de lhe facilitar a satisfação dos mais perversos caprichos... Queria ser irmã dele. O meu sonho era viver com ele, estar com ele, na mesma escola, na mesma casa, na mesma mesa... Era para ele o primeiro pensamento ao acordar, quando tinha sido também para ele o último, ao adormecer... Se tinha bolos, chocolates, bombons, pastilhas elásticas, em casa, ou alguém da minha família e conhecimento mos dava, corria a dividi-los com ele, sem sequer os provar...»
Notem, neste momento, o plano americano. Ela segura no cigarro com a mão esquerda, enquanto com o polegar e indicador da direita comprime o lóbulo do lábio inferior acariciadoramente, afagando-o com subtileza. Fita-me.
Eu, mantenho-me inclinado para a frente, inconsciente ao sustido movimento, anuo com a cabeça num sim-sim de baixo-para-cima-para-baixo, abanando o chocalho, o cigarro esquecido com a cinza na ponta ardida de centímetros, na mão esquerda, e com a esferográfica na direita em posição de escrita, vou nasalando uns hum-hum psicanalíticos de reforço e incentivo, encorajando-a a que continue. A abstracção é total. Nem a câmara, nem o movimento da rua me distraem.
«À minha irmã, mais nova do que eu um ano, nem com o facto de dormirmos em quarto comum, lhe notava a existência. Tenho uma vaga ideia de a ter visto uma única vez nesse ano: reparei nela pelo aniversário de Pedro, segurando numa prenda, quando minha mãe ma encomendou com um “toma conta dela” responsabilizador. E isto talvez enquanto magicava na maneira mais rápida de me ver livre dela, logo que chegássemos à festa. A ideia de que iria reparti-lo, nas atenções, com ela, atormentava-me até às fronteiras do desespero, da aflição... uma dor de queimar por dentro. Um arder de entranhas a que não podemos socorrer e extinguir com bebidas frescas ou carinhos trocados, ternuras certas, gestos próprios mas da pessoa errada...»
Voltamos ao grande plano de Palmira. Alonga o olhar pela avenida fora, percorrendo-a no sentido descendente.
«Inclusive, desconfio, naquele ano raríssimas pessoas houve dignas da minha preferência e atenção. E disponibilidade. Nem o meu pai, que naquela idade é uma peça fundamental e imprescindível na concretização do puzzle de existir; já que à mãe é atribuído o papel de máquina de satisfação de necessidades. O leite achocolatado, morninho... A sopinha da nossa simpatia... As fatias douradas da nossa predilecção... O vestidinho lavadinho, passadinho e cheiroso que nos arrebita... A banhoca perfumada... Os lençóis fofinhos, quentinhos e aconchegantes... Os sapatos do nosso conforto e ligeireza... Nada disso recordo. Nem lembro o meu pai desse tempo. Ou muito vagamente, como já disse... Talvez naquele dia... Sim. Àquele dia, lembro-o!... O meu pai foi o meu orgulho! O rei da menina dos meus olhos. Era o principal dia das festas de A-dos-Tansos, em Agosto, dia 14 ou 15...»
Plano geral da rua com o largo da Rotunda Sul ao fundo. Um grupo de teenagers à porta do café, discutem acerca do título da próxima sessão de cinema. Ouvem-se indistintamente. Mas a voz de Palmira, em off, sobressai.
«Recordo que vestia as minhas primeiras saiinhas de ganga. Uma T-shirt amarela com o Pato Donaldo. E ténis rosa, com debruns brancos...»
Entretanto o grupo juvenil vai-se afastando, descendo a avenida.
«Meu pai pegou-me na mão e disse: “anda, vamos buscar o Pedro.” E fomos. Na carrinha de caixa aberta... Fiquei em suspenso, como numa nuvem, com vertigem. Com medo de respirar, ainda assim não acordasse. Mas não era sonho nenhum, era pura verdade real: ia passar um dia com ele! Ou melhor: ia tê-lo em minha casa! Mostrar-lhe o meu quarto! Os meus livros! As minhas bonecas! As mesmas bonecas que faziam parte das histórias e brincadeiras em que ele era sempre o personagem principal!... O herói ausente, mas incondicionalmente presente!...»
A objectiva acompanha o grupo até ao largo.
«Quando entrei na viatura, ali, ao lado de meu pai, apoiando-me no tablier, fitando-o de soslaio, notava-o crescendo para mim, ganhando em admiração e respeito, à medida que desdobrava curvas e nos aproximávamos de A-dos-Tansos. Dele. Dele. Dele. Dele.»
(Silêncio...)
«E quando tocámos à campainha», continuou ela, «foi o pai de Pedro quem veio atender; mas ele já sabia, pois fora tudo combinado. Os nossos pais gostavam do idílio, e romanceavam-no. Doutra forma, mais prática, mas tanto como eu.»
O plano geral do largo da Rotunda Sul esvai-se e dilui-se. Nesse apagar-se, fenecer-se, o grupo atravessando a zebra dos peões é apenas um conjunto de silhuetas, coloridas com vivacidade.
«Não cabia em mim. As mãos eram-me curtas. Por isso, contorcia-as e esticava-as jubilosamente. Não tem piada em como sempre que estejamos felizes sejam as mãos que melhor expressam e manifestam essa felicidade? Agarramos. Pegamos. Batemos palmas. Estalamos “castanholas” com os dedos. Abrimos para o céu. Já notaste?...»
A câmara regressa, sobe a avenida até um americano nosso, à mesa da esplanada. Ela volta à fala.
«Hum!...» Respondo eu.
A minha posição mantém-se; é a inicial. Ela recosta-se um pouco e cruza as pernas que – atenção ao grande plano – bron­zeadas, parecem de entre menina e mulher. Curtas, bem desenha­das, inspiram mais ternura que sensualidade. Sexualmente apetecí­veis, é certo e embora, que apetecem beijar e acariciar, são, contu­do, como que um prolongamento da voz, e não um complemento corporal. São sugestão. Sussurro. Ternura que escorre até.
Os pés são minúsculos. Calçados a mocassins, sabrinas, ou qualquer coisa leve e rasteira do mesmo género. Frágeis. A notarem-se os ossículos e nervuras das veias sob a pele. E a câmara salta do peito do pé para as costas das mãos, que ela contempla. Gradualmente o médio plano cumpre-se, à medida que o grande plano das mãos se esgueira.
Abandona o ar sonhador, e é como se se compenetrasse de onde está. De quem é para além de quem foi. Do que está a fazer. Tem os braços esticados para a frente, as mãos à altura dos olhos, e os dedos separados para o alto. Fita-as. E é para elas que parece falar.
«Quase que ia sendo totalmente feliz nesse dia... Voltar a casa, sentada ao lado de Pedro e de meu pai, entre ambos, que com aquela iniciativa vencera a barreira da minha indiferença, foi um diluir-me de quase apetecer chorar... O meu joelho, tocava no joelho de Pedro; a minha perna tocava a sua perna; o meu braço tocava o meu braço; e o respirar era uma surpresa por ainda o conseguir fazer, uma admiração por saber-me a sobreviver a emoções tão intensas.»
O verniz das unhas é transparente. Dá-lhes um aspecto de resistência e textura que na verdade não possuem. Renova-se o grande plano das mãos; é como se a objectiva nos desse aquilo que seus olhos vêem. As unhas estão cortadas, em demasia para o terem sido. Provavelmente foram é roídas e, finalmente, aparadas à tesoura ou corta-unhas. De pequenas, afectivas, o plano torna-as enormes face à avenida que se estende por detrás delas, em diluído fundo. Os braços, esses apresentam uma penugem dourada, quase imperceptível.
«Sabes...» A voz off confunde-se com um apelo, um pedido, mais do que com uma exposição informativa. «Como poderia eu recordar outras pessoas se àquele tempo ele era tudo para mim? De passado pouco tinha, e o presente e o futuro eram ele. Curioso como a esperança é inversamente proporcional ao tamanho das pessoas!... Quanto mais pequenos somos, maior ela é: e àquela idade eu antevia a minha vida junto dele, amada e reconhecida. Legítima e amante. Por tal o tempo passava lesto. Rápido e ligeiro, breve e veloz de encontro ao sonho; expedito e infinitamente intenso na feitura da realidade. Na busca de ser...»
Baixou as mãos; e ao retirá-las revela-se o plano geral. A grupos de três e quatro as raparigas passam, com sacos de compras, livros à frente, à altura dos seios, num pudor estudantil fora de moda. Não raramente um ciclista ou outro, subindo ou descendo. E ainda dois ou três solitários camponeses, em rústicos ócios, de vagares ronceiros ostentando nas mãos, desajeitamente, algum impresso de serviço público ou apólice de seguros.
«Mas foi em vão. Como todo o sonho. Aliás, não só em vão, como também cruel e desesperante... Noutro dia, depois de findas as férias grandes, e após um mês de enlevo em que quando ele não estava na minha casa, estava eu na casa dele, fui violentada na alma propositadamente por Pedro, no mais íntimo, e em demonstração duma perversidade como nunca imaginei possível alguém ter. É demais ter de admitir que a pessoa a quem mais queremos é aquela que menos nos merece. É triste percebê-lo... Quer repentinamente, como no apurar dos sentidos ao lume brando dos anos... É dum sofrer impossível... De morrer. De somente querer morrer. Principalmente se esse sentimento e dor são provocados pela rejeição!...»
Um dos camponeses vem subindo ao nosso encontro. Traz barrete, carapuça negra de lã com a borla da ponta descaída sobre a orelha direita. É de compleição pícnica, para o baixote, atarracado, de pescoço e tronco possantes, mas pernas curtas, rendendo evidente homenagem ao Rafael Bordalo Pinheiro. Nota-se que é roupa domingueira o que veste, pois está-lhe apertada, movendo-se dentro dela sem à-vontade e embaraçado.
“Olhem lá!... Onde são as Finanças?” Pergunta-nos.
“São ali adiante. Ao fundo, depois de passar a Casa do Povo, mais à frente e à esquerda.”
Segue. Provavelmente grato, embora o não tenha dito ou manifestado.
Palmira continua, retomando a palavra. Ambos aproveitámos a intromissão para acender cigarros. Há ausência expectante e serenidade em nossos rostos, olhares e gestos. Respira-se bem; corre um ventinho fresco avenida abaixo, que nos aflora o rosto e nos mexe com os cabelos.
«Foi!...» A anamenese dá-nos o flashback (virtual). «Era depois da escola. Já há duas ou três semanas que haviam começado as aulas... A segunda classe é uma rectificação e um encontro. É alegria, ao contrário da primeira, em que tudo é novo e adaptação. E eu andava cheia de genica, animada e com um entusiasmo danado. E divertida. Ousada.»
«Hum-hum» fiz eu, cortando o flash com mais um americano, o primeiro de uma sequência de intercalares médios com grandes planos antitéticos dela.
«As melhores brincadeiras no recreio partiam da minha iniciativa. A professora elegia-me para modelo das outras rapariguetas, pois que eu tinha sempre as respostas na ponta da língua, os trabalhos de casa certos, os cadernos asseados e sem rasuras, a postura descontraída mas sossegada, a apresentação duma dama confiante e segura de si, embora em miniatura, o que cativava sobremaneira...»
(Grande plano.) «Então juntou-se-nos a Ana Isabel. A prima de Pedro. Um ano mais velha; andava na terceira classe. Mas costumava brincar connosco também, às tardes, no quintal dele. Se estávamos só os dois brincávamos de “pai e mãe”, às famílias, com as bonecas e bonecos a fazerem de filhos, numa arrecadação inutilizada, da qual fazíamos a nossa casa. O nosso lar. Agora se havia mais gente jogávamos ao toca-e-foge e ao esconde-esconde.»
(Flashback.) «Logo que ela chegou, começou por preterir a minha companhia e a espalhar-me os brinquedos. Depois, os três, juntámos cobertores velhos, enchemos dois sacos com palha miúda a fim de substituírem um colchão, e fizemos uma cama. Os dois sacos unidos, em paralelo, davam um leito amplo em que nos deitámos. Ele ao meio, connosco, uma de cada lado. Despimo-nos. Estava calor, e tínhamos fechado a porta. Nuzinhos de todo. De princípio não estava a suspeitar de nada, mas a pouco e pouco fui ficando a mais. A sobrar nas brincadeiras. Por fim, ela expulsou-me da cama. Fiquei encostada à porta enquanto os dois brincavam de “pai e mãe”. E me invectivavam. Chamavam-me nomes feios. E que eu era uma franga!... Até que, como se eu me quisesse interpor entre eles, me atiraram ao chão e bateram.» (Atenção: este flashback é mudo. É em diaporama, a preto e branco, com fotogramas fixos. E a voz off de Palmira é quem nos descreve a acção, eliminando assim as possíveis elipses criadas, pela passagem do álbum de fotografias.) «Tudo suportei. E, ao tentar defender-me e impor sobre ela, me rebelei, lutei com ela, quase conseguindo levar a melhor, quando o Pedro interveio auxiliando-a... Os dois, empurrando-me e arrastando-me, puxando pelos cabelos e pernas, finalmente puseram-me porta fora, tal como estava, em pelota, e sem me atirarem a roupa. Mas o que mais me magoou não foi o ficar nua e despeitada lá fora!... Não. Foi o ter sido excluída e expulsa pela Ana Isabel com a ajuda do Pedro... Com a ajuda do Pedro. Ela só o havia conseguido porque ele a ajudara... E quando meu pai, com minha mãe, me vieram buscar para regressar a casa, os dois mentiram descaradamente: que me tinham posto fora porque eu insisti em estar nua, enquanto eles vestidos, não estavam dispostos a brincar de descaração... E eu pretendi defender-me. Dizer que não tinha sido assim. Mas mal podia falar, por o choro e a vergonha me sufocarem... Sem nada poder... Sob os olhos repreensivos de minha irmã mais nova... E de meu pai... Só chorava... Primeiro de angústia, de impotência; depois de raiva... Choro e mais choro. Até casa. Em casa. Durante a noite. Ao outro dia. E no seguinte. Um choro doloroso, convulso... Sujo de baba, lágrimas e ranho... Um choro asqueroso e deprimente... »
«Hum?...» Interrompi eu, obrigando a retomar o plano anterior ao flashback.
«Se me reconfortaram? Provavelmente. Não me lembro. Mas que podia isso ser além do detonar da compaixão?... O levar-me a chorar ainda mais?... É mentira que as crianças não sentem dó de si mesmas, ou vergonha... É.»
O cigarro queimou-me. Ardera-me nos dedos sem que sequer o tivesse fumado. Nenhuma baforada lhe tivesse tirado.
«Nos oito dias seguintes não fui à escola. E de noite acordava com os meus próprios gritos, dos pesadelos que tinha: nua corria por um túnel ao fim do qual uma luz; mas à medida que me lhe aproximava, essa luz gradualmente transformava-se numa porta de prisão, em que após chegar-lhe eu batia, batia, batia com os punhos fechados pedindo que me abrissem. Suplicando. Implorando. Mas que quanto mais eu batia, mais cliques de fechaduras se ouviam “celando-a”. Mal comia. E se tinha medo de adormecer, estar acordada também não facilitava nada: a melancolia sufocava impossibilitando-me de respirar, mal o fazendo, em aflição contínua. Minha irmã fazia-me companhia, e tentava de um tudo para interessar-me. Reanimar-me. Dela, e principalmente a ela, devo e partiu a maior fatia da minha recuperação... Um dia, apareceu esgadanhada: tinha brigado por minha causa, na escola. Haviam-se metido com ela perguntando-lhe se também praticava nudismo. Desforrou-se conforme pôde. Só a muito custo lhe tiraram das mãos o cabelo do celerado autor do espirituoso dito. É que, não contentes com a franqueza, Ana Isabel e Pedro espalharam aos quatro ventos a sua perversa versão do acontecido... E ao vê-la naquele estado, jurei vingá-la!! A minha dor jamais importava; acreditava-me superior a ela. Sentia-me culpada. E entre rapazecos, já se vê!... Ainda para mais com a minha demissão do ringue!... Mas a tortura da minha irmã mais nova, o imaginar por que teria ela de passar e compará-lo no e com o meu sofrimento, era demasiado; não enxergava como ela o aguentasse. Foi aí, nessa visão, que além da sede de vingança, germinou, nasceu também a ideia de que o viria a matar... Que amadureceu o conceito de que certas pessoas, por tão desumanas e cruéis, não merecem estar vivas.»
A grandes planos alternados, ora dum, ora doutro, como nas telenovelas e entrevistas televisivas, os nossos rostos expõem-se em dialéctica, face à impassibilidade neutral de ambos, a quem as palavras bastam bem na reactualização da memória: não é preciso repetir a expressão de sofrimento para voltarmos a sofrer por uma situação que nos foi dolorosa, chega que a nomeemos e invoquemos para que tal aconteça. É ausente de espanto, mas nunca a sua representação de dolência – daí a passividade neutral –, e embora que invariavelmente a dor reciclada jamais seja consequência das mesmas circunstâncias da da original, a intensidade repete-se; porque o controlo, domínio e poder de encaixe a ela se encontra reforçado pela experiência e distância no tempo, não quer dizer que seja passível de ausência ou pujança. A catarse é mais um estado de compaixão presente por uma dor passada, vivida, do que a representação do sofrimento em causa. O psicodrama é válido não por trazer e exorcizar uma dor pela situação que a causou, mas pelo facto de repetir a mesma dor tendo por veículo uma situação algo diferente e sucedânea. É a reactualização do drama através da reinvenção circunstancial detonadora, tal como a tradução de uma obra literária para uma outra língua não fica sendo precisamente a mesma obra, mas sim uma nova versão muito assemelhada dela. Ao homem não é imprescindível fazer novo corte na pele para sentir a dor que provocou, há tempos um outro golpe, pois pode sempre recorrer à reciclagem das sensações, sentimentos e vivências, através da sua capacidade de virtualização: basta imaginar o golpe para que lhe advenha a imagem da dor virtual em toda a sua plenitude imaginável. Imaginar uma situação arrepiante é provocar um arrepio imaginário mas autêntico, ou com tanta intensidade como o realmente vivido, embora que liberto e resguardado pela redoma da noção de real-actualidade-presente-experimental. Imaginar uma paragem cardíaca em nós pode-nos ser tão fatal como uma paragem cardíaca autêntica e real, se não tivermos a imaginação suficiente para recorrer aos processos iguais de antídoto e reanimação. Só após reposto o equilíbrio é que seremos capazes de discernir se foi ou não realidade, virtualidade ou imaginação. Nunca no próprio momento do acontecido. Um pânico imaginado é tão mortífero como um pânico real, activando as mesmíssimas respostas, sentimentos e consequências. Tanto faz ter medo como imaginar que se o tem, para um indivíduo se borrar de igual forma (e textura). Uma pessoa pode ter dez milhões de contos no bolso, mas se encasquetou que é de uma pobreza extrema, franciscana, de miserável, com fé e resolução totais, quando tiver realmente fome não se dirige a um restaurante, mas sim ao caixote do lixo que está à porta da cozinha!...
«Todo o resto do ano, foi, contudo, infernal!... Tenho a impressão de que se tem havido da parte de Pedro uma manifestação de remorso, de reconciliação, uma só de arrependimento, apenas uma, instantaneamente esqueceria o incidente, tal como a minha jura. Mas não. Pelo contrário: a cada dia aconteciam coisas e mais motivos me dava, mais agravantes acrescentava despundonorosamente. Propositadamente. Perversa­mente.»
E em replay, com off.
«Não obstante o refugiar-me na companhia de minha irmã, e recorrer à sua presença e desenvoltura, aconteceu diversas vezes ter que haver-me sozinha em dissabores. Por exemplo, num dia próximo às férias de Natal, em que tinha chovido torrencialmente, estando portanto tudo enlameado e o chão cheio de poças, a professora, adoentada faltou, sem nos avisar antecipadamente, como era seu hábito. Foi feriado, como soe dizer-se na gíria estudantil. Então, um grupo de rapazes meteu-se comigo. Levantaram-me as saias, atiraram-me coisas, pedras, paus, roubaram-me os livros e lanche para os jogarem no chafurdo do chão. Eram uns seis ou sete, e todos maiores que eu. Fugi. Corri, corri, corri, corri pelas ruas de A-dos-Tansos, com o fito de refugiar-me em casa de minha prima Silvina, que reside na outra ponta da aldeia, contrária à escola. Pois bem, quando pensava estar quase a salvo, embora que estafada e exausta, ao dobrar da esquina para a rua dela, passando-lhe de resvés, eis que alguém escondido nela me rasteira, refastelando-me eu num charco enlameado de água pestilenta, de escorrimento de uma vacaria fronteira, ao comprido, vestido arregaçado até ao pescoço. Magoada, humilhada, cansada, encharcada, suja, descomposta, ergo os olhos para trás, e vejo Pedro, a rir desalmadamente, desandando sem pressas, com as mãos nos bolsos e a assobiar!...»
Fim do replay com passagem ao plano geral da rua, continuando a voz em off.
«Outra vez, ia Janeiro por aí a dentro, já do meio para diante, e porque constantemente molestada, se acaso meu pai me não vinha esperar na carrinha à porta da escola na hora de saída, arquitectava maneiras de prolongar a estadia nela para além da hora,

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Herbert Read - A Filosofia da Arte Moderna

Cantata de Dido

Álvaro de Campos: apenas mais um heterónimo de Fernando Pessoa?