O Escriba e as Bonecas - Terceiro Caderno


Terceiro Caderno (Galope)


«Não compreendes porque te esforças em não o querer, nem o conseguir. Pois é bem claro: os pais, ao notarem que o seu bebezinho único logo que deixava de estar sob a minha alçada e tutela directa, coisa que subtilmente me empenhei em demonstrar-lhes, fazia burrada da grossa, desaparecia de casa durante dois ou três dias, pedia dinheiro emprestado a comerciantes conhecidos sem autorização do pai, e para este pagar!, drogava-se até ao descontrolado comportamento e demais tristes figuras, optaram por convencer-me de que o mais cristão e menos pecaminoso seria consentir casar com ele. Por dois ângulos ou pontos de vista: porque desconfiavam da existência de relações sexuais pré-matrimoniais; e segundo, que ele viesse a assentar à custa dos desígnios da novel responsabilidade de vir a ser chefe de família. Casamento em que mui modestamente consenti, deixando imediatamente de tomar a pílula para lhes facilitar a sempre nobre esperança de virem a ser avós, com brevidade e sem esperas prolongadas. Recompensa merecidíssima pelo esforço que despenderam em me proporcionar tão importante passo para a meta que me impus. Truque duplo. Doble num tiro.
«E a maternidade aconteceu?»
«Aconteceu sim. Precisamente ao décimo mês de casamento nasceu o Filipe. E para Pedro, os três meses que antecederam o parto mais os nove que se lhe seguiram, foi o ano de todos os anos... O dinheiro das prendas de casamento ainda durava, pois quem abonou com todas as outras despesas (mobília de casa, jantar e copo d’água do casamento, instalações para o aviário, de que era suposto virmos a tirar os rendimentos para tocarmos a vidinha prà frente), foram os nossos pais, e estes, com o surgimento do neto, deram-lhe carta branca em tudo, esquecendo-se inclusive que ele existia, excepto quando aprontava alguma da qual eu o não conseguia esconder ou ilibar. Quer os meus pais, quer os dele, vinham frequentemente a nossa casa no declarado pretexto de verem o Filipe, mas raramente se cruzavam com o Pedro. Ele, o estava com os amiguinhos dos xutos, ou estava no aviário, mas sobretudo estava carregado na cama. “A descansar do serviço no aviário”, dizia eu às famílias embevecidas, se acontecia pergun­tarem-mo.»
«Os amiguinhos?... Alguns junkies, não?...»
«Qual quê!! Não; eram caveiras mesmo, e a valer. Eram dois ou três mais mortos que vivos, que nem alimentar-se queriam, preferindo a heroína a qualquer outro acepipe. Em fase de muito adiantado estado de degradação, de destruição, e que, contudo, se safaram com vida através de consecutivos internamentos clínicos para desintoxicação e alguns retiros (espirituais) no Le Patriarche. Os mesminhos com quem começou a fumar haxixe, aliás. Companhia de quem eu o não podia proibir, já que tinha sido eu a arranjar-lha!...»
«Nem querias
«Bingo!! Com as boas graças dos sogros, pelo feito heróico de lhes haver renovado os motivos e a esperança de vida, com um neto, apenas deixava e precisava de deixar correr o marfim, facilitando a Pedro o acesso aos dinheiros do fundo de maneio familiar. E depois ia queixar-me à mãe dele, ou ao pai, por ele gastar todo o dinheiro que fazia falta para o filho e despesas domésticas “sabe-se lá onde”, mas pondo a pairar no ar a sublinhada suspeita de saber muito bem para que fim, onde, com quem e no quê o gastava. Eles também: embora adiando sempre no mais possível a verificação e comprovação das suas suspeitas. Uma fé esperançosa de um por mil, em não estarem certos nas mesmas.»
«E a tua família estava a par disso? Como reagia ela ao facto de vos ter dado o aviário para vocês não precisarem de pedir dinheiro a ninguém, e vocês não se governarem de lá? Ela estava ao corrente de tudo quanto se estava a passar convosco? Não me parece que sabendo, aceitassem a situação de ânimo leve...»
«O curioso é que a minha família, não só sabia de tudo (pela santa boca da minha sogra, claro está), como também se estava literalmente nas tintas para o comportamento de Pedro. Diziam que não era para preocupações; que era só uma fase ruim, uma fase passageira. Levavam a coisa na berlinda. Mas, no final, foram eles que, com o agravamento da dependência, e numa altura em que Pedro vendera todas as sacas de ração para os galináceos, a quase de metade do preço que haviam custado a meu pai, não só deixando os bichos a passar fome como fazendo uma dívida impagável para com o sogro, alertaram os compadres para a necessidade do filho se ter que submeter a um tratamento de desintoxicação e reabilitação.»
«E Pedro fê-lo?...»
«Fez pois. Só que a abstinência apenas lhe durou o tempo de internamento. À primeira vez que veio a casa, e notando-o um tanto ou quanto agitado, eu própria lhe preparei uma dose de cavalo, das dez que tinha comprado na sua ausência para o efeito... Foi tiro e queda! A partir desse dia, e se antes do tratamento andava a precisar de três doses diárias, passou a necessitar de cinco ou seis.»
«E não te pesava na consciência pelo que estavas a fazer?!...»
«Não. Eu só queria o bem dele. E para que não sofresse! Aliás, fora ele quem implorara por elas!... E tinha medo que ele se tornasse agressivo se eu lhas negasse...»
«Era o que argumentarias junto dos pais dele se, não?...»
«Uma espécie disso, perfeitamente. Mas acima de tudo, eram os comentários que concedia às minhas amigas da nossa geração, que pretendiam apelar ao meu bom senso... Que aliás compreendiam divinalmente!»
«Porquê? Elas inquiriam-te? Preocupavam-se ou tentavam intervir na tua vida matrimonial?»
«Não era bem interferir. A minha desgraça é que era do domínio público. Interessavam-se, era o termo mais adequado. Quando nos encontrávamos no café, no supermercado, viajávamos juntos de ou para Casal Parado e Vale de Burros, conversávamos normalmente das nossas vidas, dos nossos filhos, dos nossos maridos. Era coisa comum, que não evitávamos nem escondíamos. É como falar da tropa quando se está na recruta. Ou de política quando nos inscrevemos há pouco no partido. E esporadicamente lamentava-me, e à sorte que tinha tido pelo marido que me calhara... Visto que numa terra tão pequena, é impossível guardar segredo sobre muitas coisas íntimas e familiares, durante um período superior a oito dias!...»
«E como é que elas apelavam ao teu bom senso?... Não percebo bem como é que isso se faz!»
«Ora toma. Era o que faltava!... Apelavam ao meu bom senso quando me aconselhavam a separar-me dele, caso ele não deixasse de se drogar. A impedi-lo por todos os meios de consumir drogas. A não lhe facilitar dinheiro para comprar droga. E etc., etc. e tal.»
«’Tá lógico.»
«Lógico, não. Está verdadeiro. O que tem de ter lógica e coerência são os romances e demais ficções. A vida raramente a tem ou o é, percebes? A vida real é real e cruel como a verdade, nada mais. Nem lógica, nem coerente. Nem qualquer oportunidade para o dourar da pílula.»
«Pois; siga.»
«Por instantes pensei que era teu intento irritar-me. Tirar-me do sério. Não?... Com que finalidade? Ah, ainda desconfias de mim!»
«Não desconfio. Sou simplesmente de difícil compreensão... Em nada creio às primeiras.»
«Estás no teu direito, mas não abstraias conclusões antes de eu acabar, que é para isso que comecei. Eu ainda não sou como o meu ex-; eu quando começo algo é para ir até ao fim. É da minha natureza...»
«Do carácter asténico, diz antes...»
«Certo. Ou isso! Como queiras. Agora nota, que os pais de Pedro andando como andavam, embobados pelo neto, nem se davam conta de que o filho regressara do tratamento com mais necessidade de dinheiro do que quando fora. As doses dobraram. E triplicaram. Até que um dia foram visitar o netinho e depararam com a sala de estar e de jantar sem mobília nenhuma. Fizeram um escarcéu dos infernos. A custo, intimidada, submissa, obediente, lá lhes contei que o filho as havia vendido para pagar a droga que já tinha consumido desde que voltara, e comprara fiado. Foi um desgosto danado!... Ficaram inconformáveis! Pesarosos e abalados com a notícia!»
«E foi o que acontecera efectivamente?»
«Em parte sim, embora não fosse toda a verdade. Acrescentei, desculpando-o aparentemente, em atenuante, que a culpa provavelmente não tinha sido exclusivamente dele, mas dos traficantes e companhias com que se voltou a dar. Que os formigas o haviam ameaçado de morte, e ao filho, se ele lhes não pagasse rápido. & etc. Mas a verdade fora outra. Eu é que lhe tinha fornecido a ideia de vender as mobílias das salas, com aparelhagens sonoras e de vídeo incluídas, a fim de pagar as dívidas e ficar ainda com algum para as próximas “receitas”. Disse-lhe inclusive, convenci-o mesmo disso, que os pais andavam tão contentes com o neto que eram bem capazes de relevar, de lhe perdoar tudo a ele, só para não prejudicarem afectivamente a criança, nem a traumatizarem psicológica e familiarmente. E ele caiu!... Que nem um patinho. Em resultado: os pais dele reenviaram-no para nova desintoxicação mais consequente reabilitação no Le Patriarche, dessa tirada para a Suíça, nos frescos e bons ares dos Alpes.
«E deu efeito? Quando voltou, veio recuperado?»
«Recuperadíssimo!... (À moda do não.) Nem falar conseguia, normalmente; unicamente aos supetões. E nem assim saíam duas direitas! Debaixo de uma tensão angustiosa de cortar a alma... Tive pena. Doeu-me o coração. Meteu-me dó... Não resisti.»
«O quê?! Tiveste pena!!! Quer dizer: voltaste a dar-lhe heroína, comprada por ti, do teu bolso?...»
«Sim. Quer dizer: foi exactamente isso que fiz. E em pouco menos dum mês estava ele a vender o que restava do aviário, num descuido de vigilância de meu pai, que era quem o tutelava e mantinha em funcionamento, depois da venda das rações, e por lhe estar mais próximo de casa do que a meus sogros. E como lhe não bastasse, passou também a patacos o material de construção civil, que o meu pai e o dele andavam amealhando para nos fazer uma vivenda. Foi tudo pràs urtigas!... Até os vinte quilos de pregos!...»
«Não acredito.»
«Então não acredites. O incrédulo és tu!... Mas foi como te disse. Nem mais, nem menos uma vírgula.»
«E tu? Que fazias? Que dizias?»
«Bom: a ele, quando sós, dizia que não havia problema, que tudo se iria resolver. Se os pais estavam presentes desculpava-o, e maeuticamente levava-o a prometer que jamais voltaria a usar uma agulha (de costura). Não convencia ninguém mas era um indicador precioso do quanto eu me esforçava e sacrificava para levar o casamento a bom porto, e feliz rumo. Quando estava sem ele presente, sozinha com meus pais ou com os dele, transformava-me numa madalena chorosa, lamentando que não conseguia suportar mais aquele calvário, que ele estava a arruinar-me os nervos e a pôr em risco a futura saúde do filho. Que estava sujeita a deixar-me contaminar por alguma doença mortal, contagiosa, que ele pegasse no convívio e utilização das seringas dos outros “sidosos” com quem tanto gostava de acompanhar e privar...»
«De forma decidida e conformada?»
«Tão convicta que a iniciativa de me divorciar de Pedro e abandoná-lo, retirando-lhe também a tutela do filho, partiu deles. Os meus pais, porque eram meus pais e não queriam que eu sofresse. Os dele, porque estavam saturados e queriam salvaguardar a saúde, segurança e estabilidade psicológica e emocional do neto.»
«Ao que tu...»
«A que eu obedeci pesarosamente... E a que só me submeti depois de instada a que se o não fizesse, eles me abandonariam também. Que deixariam de querer saber de mim. Que me retirariam o Filipe, e me deixariam à mercê do destino... E de Pedro.»
«E fariam-no?...»
«Não; provavelmente, não. Mas eu preferi não arriscar. Lavei as minhas mãos. Como Pilatos. A partir dessa altura, tudo quanto viesse a acontecer com Pedro, passaria a não dizer-me respeito. A responsabilidade seria exclusivamente dos quatro. Eles é que haviam decidido e me obrigado. Apenas tive que submeter-me ao aceitável... E imperativo. Era ele ou eu...»
«E?...»
«... E numa quinta-feira à noite, ouvi baterem-me à janela do quarto que fiquei a ocupar em casa dos meus pais. O divórcio estava em curso, mas ainda não tínhamos sido notificados com o deferimento e decisão definitiva e oficialmente, por escrito. Abri. Era Pedro. Com delirium tremens, arrasado, suplicando que o ajudasse. Fi-lo compreender que não podia fazer nada, que não tinha dinheiro nenhum, e que eles mo não davam pois temiam que ele mo tirasse. A não ser que... A não ser que...»
«A não ser o quê?!»
«A não ser que lhe desse as chaves do carro que me pai nos havia comprado, em substituição do jipe que Pedro vendera, mas que avariou, e nós metemos na oficina, o que afinal o salvou de também ter sido passado a patacos. E que, como não tivéssemos dinheiro para pagar o arranjo, o pagou ele, recuperando o automóvel para si, por conta do pagamento do conserto e mais uns contos de réis pelas rações das galinhas. Carro esse que ainda estava em nosso nome!»
«Queres ver que me vais dizer, que lhe deste as chaves e o carro, e que ele se despenhou, morrendo no acidente... Não?... Já vi esse filme!»
«Não. Não foi assim. O que foi, foi sim que ele levou o carro e o vendeu por quanto pôde e lhe deram a pronto, em dinheiro batido na mão, em troca do livrete que meu pai ainda não tinha recuperado de mim. Depois comprou heroína suficiente para arrumar dez cavalos, e morreu de overdose. Tão simplesmente quanto isso. Não aguentou a pedalada. Tão-só. E apenas. Encontraram-no sexta-feira, ao meio-dia, no chão da garagem do pai, encostado à roda do tractor com a seringa ao lado e o garrote caído do braço, descambando lasso...»
O grande plano da minha surpresa e incredulidade esbate-se gradualmente, ficando em sua substituição o plano geral da rua com o largo em fundo, sob um trânsito de hora de ponto. A luz é menos aberta, e apercebe-se bem que a tarde está a entrar no seu término. É a agonia do dia em trabalho de parto.
«Pronto», concluí eu. «Partamos do princípio que me deixei enrolar com a veracidade desta história macabra. Que o teu marido depois de endividado, viciado, e votado ao ostracismo, se deixou abater e se suicidou por excesso de dose. Seja. E o corpo? E o cadáver? E o defunto? Será que existe mesmo alguma viúva? Não o creio. Até porque no teu B.I., em que reparei sorrateiramente enquanto procuraste na carteira o dinheiro para pagar o café, o estado civil constante é o de divorciada. E se assim, como contas, tivesse sido, constaria lá escrito viúva!»
Regresso a um americano de ambos. Ela tira o Bilhete de Identidade da malinha de mão, de sobre a mesa. E confirma.
«Tens razão. É que me esqueci de dizer que, naquela quinta-feira à tarde foi quando o corpo judicial deferiu o pedido de divórcio. Eu na realidade não sou viúva: sou divorciada. E já estava divorciada há um dia quando o meu ex-marido se suicidou.»
«E o suicídio também não é garantido... Provavelmente foi engano de dose, um acidente, sei lá!...»
«Sim. Eventualmente... Mas sublinhe-se que ele estava muito bem informado nesse capítulo. Era um barra na matéria. Um expert. Um acidente só podia acontecer para cúmulo do “acidentalmente”. Muito pouco plausível.» (Silêncio. A câmara fixa-se-lhe no rosto, a que o pensamento empresta um ar meditativo e enigmático. Até que, com um piparote na mesa, ela destrava:) «E o cadáver está no cemitério de A-dos-Tansos. Por acaso sinto vontade de visitar a campa. Acompanhas-me? Queres vir? Se negares, concluirei que a tua incredulidade é bluff!...»
Voltamos a mais um plano médio dos dois. A levantarmo-nos

* * * * *

(Atenção à elipse.)

enquanto nos sentamos à mesma mesa, exactamente nos mesmos lugares, as sombras provocadas pelo candeeiro que nos fica atrás, anunciam um bailado singular: o assentar das formas, como se estas fossem poeira que se cola às coisas. É noite já. É a hora da bica do jantar. Chegámos como quem vem dele, e como qualquer assíduo frequentador concluiria automaticamente. Mas não o tomáramos. Estivemos no cemitério.
«Porque é que as pessoas quando falam a fazer qualquer outra coisa nos parecem mais sinceras?» Pergunto eu, a provocar polémica. «Já em minha mãe essa sensação se me afigurava. Se ela queria dizer qualquer coisa importante levava-me sempre para a cozinha, e enquanto cozinhava ou descascava batatas, a bomba ia despejando.»
«Porque dizes isso agora. Logo agora?... Não percebo.»
«Bom. É simples.» E o plano americano dá lugar a uma sequência de grandes planos alternados de mim e dela. «É que durante o tempo em que conduzias, tanto na ida a A-dos-Tansos, como no regresso, me soaste menos a falsete do que quando aqui estivemos à tarde. Estavas mais preocupada em que eu amasse a mesma paisagem que tu. Falavas dos vinhedos e pomares, não como se fossem coisas, matéria vegetal, mas sim seres vivos em vias de extinção. Preciosos e insubstituíveis. Dos ondeados de vales e de montes como se da tua própria pele se tratasse. Dos moinhos, como de entes queridos desaparecidos.»
«Se dizes isso, é porque ainda não ouviste nada!... Deixa-me só começar a falar da Serra de Todo O Sempre! Da Ermida e Convento de Nossa Senhora dos Flocos! Da Real Fábrica do Sorvete! Da Igreja Matriz de Casal Parado! Do Castro de Vale de Burros! Da Igreja Paroquial de A-dos-Tansos! Da minha vila! Da minha vida! Da minha história! Das minhas paixões!»
«Porquê? Esse entusiasmo tem raízes em algo profundo que ainda não conheça?...»
«Talvez. Se o quiseres interpretar assim. É que ao notar e compreender como a minha vida sexual e afectiva se tornara miserável, agarrei-me à única centelha de amor que em mim ainda se não tinha extinto: o amor à minha terra. Acreditava que assim salvaguardaria a promessa de que essa semente viesse a frutificar e desenvolver-se, evoluir até transformar gradualmente esse apego à terra e passado dela, em amor ao presente e às pessoas que nela vivem, incluindo a mim mesma...»
No seu grande plano podemos notar que a frontalidade intelectual foi descurada. Há até duas lágrimas a nascer hesitantes em seus olhos, agora húmidos e brilhantes. A testa foi atirada para trás e o queixo, antes recolhido duma animalidade em stand by, aproveita o inclinado perfil para reaparecer miúdo e interferente no espaço. Inclusive a própria pose de sentada com as pernas cruzadas, já não exibe a rigidez e contenção anteriores; é abandonada e leve, alongando-se nas curvas, sem a brutalidade das articulações contraídas em esforço. É como se o corpo nos desse a ver a facilidade com que o sangue lhe circula dentro, em pulsação ritmada e entusiástica. Grata por cumprir-se.
«E terá resultado?»
«Sem dúvida. Apercebi-me de que resultou quando me abraçaste no cemitério. Quando senti um imenso, imperioso e verdadeiro desejo de te beijar e acariciar, tal como o de permitir e desejar que me fizesses o mesmo. Até quando...»
Flashback: “ O cemitério de A-dos-Tansos é um receptáculo rectangular de medir o poente, que se lhe estampa frontal. Deitado preguiçosamente na encosta leste do Rio Tramóia, que como rio é a vergonha da família, pois além de nunca ter caudal superior a um reles ribeiro, inclusive no pinho do Inverno, único período em que tem água entre as margens, corre ao contrário da maioria dos seus congéneres, marcha contra a corrente, de Sul para Norte, de baixo para cima, como que a querer demonstrar que lhe sobra em coragem aquilo que lhe falta em ser, em circunstâncias físicas e líquidas. Paradoxos que a natureza tece e o homem nomeia!
E ao canto superior direito, em ponta de fila, das outras restantes idêntica, a campa de Pedro remata o ângulo. Em nada difere das demais, com cabeceira de pedra calcária branca, polida, em forma de Bíblia aberta, encaixe para a fotografia do inquilino, nome completo e datas biográficas: nascimento e morte. Sobre a sepultura uma outra pedra branca, comprida, mas de mármore. E ao fundo dela Palmira, braços caídos ao longo do corpo, pernas afastadas, que nem um cowboy ou pistoleiro preparado para mais um duelo mortal. Tem espasmos e convulsões de choro e raiva: «Maldito!... Maldito!...» Repete inconscientemente. O vestido, devido à posição das pernas, sobe-lhe mais um pouco e, de tão curto, quase se vê o desenho curvo do princípio das nádegas. Aproximo-me-lhe por detrás e acaricio-lhe os ombros. Insinuo-me, beijo-lhe o pescoço. Deixo as mãos, os dedos, percorrerem-lhe os braços, até os entrelaçar nos seus, sobrepondo as palmas das minhas às costas de suas mãos. «Maldito!... Maldito!...» E enquanto o diz ergue os braços ao céu, chorando espasmodicamente. Mas ao fazê-lo puxa-me para a frente, içando igualmente os meus braços e comprimindo-me também de encontro ao seu corpo. «Maldito!... Maldito!...» Vocifera. Sob o meu peito descoberto pelo abotoado da camisa, os seus ombros e dorso flectiam convulsos, e as suas coxas e nádegas alçadas anichavam-se de encontro ao meu sexo, procurando-o e submetendo-o, em pura animalidade ciosa. «Maldito!... Maldito!...» E chorava.
Por detrás de nós o sol cruzava a linha do esquecimento e escondia-se. Sobre o ondulado dos montes distantes uma estrada alaranjada marginava a terra, marcava a fogo os limites do dia. «Maldito!... Maldito!...» Proferia Palmira, entretanto se virando no desenclavinhar dos dedos, procurando-me a nuca e pescoço com eles, sôfregos e curtos e cárneos de carinho e ternura contida. Nervosos e cegos: agitados, e insaciados. «Maldito!... Maldito!...» Desabafava. E eu beijei-lhe os olhos. Bebi-lhe as lágrimas. Acariciei-lhe as costas, numa ânsia de protegê-la da luz, do mundo, das recordações, da dor. E nesse gesto continuado até ao despir-lhe das cuequinhas brancas, que lhe caíram aos pés no fundo da campa, qual noiva branca oca e vazia abandonada no chão da morte. Então, coloquei todo o meu libidinoso desespero na busca da resolução dos mistérios da tarde que quer ser noite, da noite que quer ser madrugada, na esperança de vir a ser dia, e ali a sentei sobre a pedra fria, de coxas separadas, vestido subido, para entre elas me ajoelhar na terra seca e esfarelada, em prece, beijando-lhe os lábios frementes de choro enraivecido, o pescoço crispado, o peito arfante. Até à penetração total e plena, que a fez, de olhos esgazeados, atirar-se para trás levando-me consigo; olhos que cerravam à medida que descíamos para a horizontal do mármore, e se esqueceram fechados até quando...”
Fim do flashback e retomar do grande plano anterior a ele. Mas ao falar Palmira gesticula. Mexe-se ao ritmo das palavras. Aviva-as. Baila com elas. Dá-lhes espaço habitacional. Empresta-lhe o próprio corpo!
«... voltei a abrir os olhos e concluí que tudo se tinha passado noutra dimensão. Que a luta não tinha sido luta. Que o planalto relvado a findar em abismo nunca existiu. Que a queda no precipício e explosão sofrida enquanto ela, não acontecera. E sim que a realidade era tão simples e natural como o teu olhar morno, meigo e grato no escurecer ocasional, e o esquecimento tranquilo de teus beijos lânguidos e cansados. Demorados. Perdidos numa demora em busca de retenção. De eternidade.»
Inicia-se então, com também a minha tomada do plano, em figura de centro, a última sequência de alternados, segundo a quem calha estar no uso da palavra.
«Mas essa luta no planalto relvado em que te debateste, rolando e contorcendo até cair no precipício, é igualmente real. Tão real que também eu a tive e partilhei. Tão autêntica que dos meus últimos dias e por muitos anos, irá ser a única recordação que perdurará. Tão real como a gratidão do meu olhar, porque ela era devida ao facto de, quando após termos descuidado o abismo e a sua proximidade, num desesperante debater aflito em contorções e arremetidas, nele caindo, teres sido tu aquela a quem me agarrei em ânsias de afogado para não embater no fundo frio e agreste e rude de pedra e vácuo do infinito em forma de abismo. Porque ao segurar-me em volta de ti te absorvi, e ambos explodimos num Big Bang virtual que nos aspergiu pelo cosmos. Agora podemos ter a certeza de ser pertença do mundo. Agradecido por teres sido a primeira pessoa que vi depois de ter assistido ao estilhaçar explodido de toda a argila recozida e escura da minha armadura existencial. A primeira a testemunhar o espectáculo de inocência, o núcleo de amor, com que recomecei a viver. A que me ajudou a recolher a nudez de minha alma viva e renascida, para mais uma era de crescimento e morte, em cumprimento da lei que nos comanda e executa.»
Palmira ri. Não sorri; ri mesmo, em gargalhadas jocosas e estridentes. Lança as mãos para a frente, para as minhas mãos, e diz:
«Não sei porquê, mas não me sinto com idade suficiente para compreender o que queres dizer. Foi verdade: mais ou menos palavra, foi também essa queda irreversível que vivi e senti. Esse espalhar de mim pelo universo. Mas não quero, nem sou capaz de compreender. Finalmente sinto-me livre para poder ser eu. Sinto-me que nem uma criança, sem passado, apenas presente e a certeza de que o futuro é algo inadiável, que não vejo como evitá-lo ou por que pensar nele. Acho que voltei a ser pequena, frágil, despreocupada, aberta, disponível, inocente e confiante. Que finalmente regressei ao corpo nu que abandonei um dia, enquanto este batia desesperadamente e humilhado a uma porta irremediavelmente fechada. Trancada. Teimosa e cruelmente selada.»
«De arrecadação?...»
«Não. De prisão, de túnel. De aço cromado e frio, gélido, espelhado e inabalável.»
«De ficção...»
«Sim, de ficção. Ou por outra, como as portas das prisões dos filmes de ficção científica, onde até o improvável é possível. E o possível pouco provável.»
A avenida cambaleia na luz eléctrica. Por vezes um carro passa devagar, em velocidade de ronda, para não abanar cenário. Há alguns reclames luminosos a colorir a noite. Mas o principal movimento é o das pessoas a entrar e sair do café, às famílias completas, com pai, mãe, filho e/ou filha, a quem não faltam o cão nem a boneca. E um agrupamento superiormente notório nas escadas de acesso à porta do cinema.
Aparentemente é uma noite igual a tantas outras de Junho ou Setembro. No clima. No traje e frequência dos frequentadores. E a expressão dos rostos que apreciam o descanso.
Mas essencialmente é o remate, o nó de uma linha que perdeu o fio de cor. Que tem de mudar de novelo e de tom. Que recomeçar é isso: é voltar a pintar o mesmo desenho com diferente paleta, com outras cores, que preferencialmente temos por mais adaptadas, reais e motivadoras. Como num ritual encenável, repetidamente representado, irremediável e consecutivamente pelos mesmos actores. Um palimpsesto reciclado. Repetidamente reciclado. Até à exaustão. Até à velhice. Até à morte, que é a falta de coragem e força para insistir uma vez mais nos gestos tantas vezes feitos em vão. Porque só morremos quando ficamos em estado de não aguentar outra reciclagem.
E as bicas vieram, quentes e fumegantes, aromáticas e cremosas. Que bebemos em silêncio. Religiosamente. Como em silêncio se extinguiu a imagem, que a cada golo de café escorria para o mais brumoso, cinzento, pardo, escuro, escuríssimo, preto, negro do quadro da ausência. Das ausências.



RODAPÉ: Ah, quase esquecia de me apresentar! Fisilogicamente sou um gémeo perfeito do Ribeirinho, um Woody Allen à portuguesa, no filme de sua autoria, O PÁTIO DAS CANTIGAS (Francisco Ribeiro, 1941 ), rodado em Lisboa, embora que um tanto mais baixo e magro – que a época não perdoa. Visto um casaco aos quadrados brancos e pretos, que nem um tabuleiro de xadrez, camisa amarela de colarinhos com enormes bicos e desabotoada até ao cinto; calças de veludo grená, e uma cartola empoleirada no cocuruto da cabeça. E Palmira é igualmente uma boneca.
Os sapatos que uso? Esses ficam totalmente a vosso critério (e gozo).

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