O Escriba e as Bonecas - Segundo Caderno
Segundo Caderno (Trote)
esperando que todos os outros se fossem embora, e de cujas artimanhas uma era o refugiar-me na casa de banho. Num dia frio-friíssimo, daqueles dias de Janeiro em que o ar corta que nem gelo, contava eu, os demais saíram debandando em correria e eu deixei-me atrasar, aproveitando o reboliço da saída para passar despercebida e entrei na casa de banho, a fim de prolongar o atraso para reforçar a confiança... Até aí a estratégia tinha sortido efeito! Só que naquele dia, em desespero, o fiasco deu-se: ao trancar a porta por dentro fiquei à mercê de quem quer que estivesse por fora! Alguém, que a porta abre-se para fora dado o espaço exíguo da casa de banho, um quadrículo onde malmente cabia a sanita, após ter colocado um pedaço de madeira em cunha por baixo da porta, sem que me tivesse apercebido da marosca na fisga, e porque a empregada de limpeza houvesse deixado a mangueira de lavagem de lavabos e alpendre de recreio ligada, embora que fechada na torneira, enfiou pelos buracos de ventilação sobre a porta a dita mangueira, abrindo seguidamente a torneira da água ao máximo da pressão possível. A água batia-me com toda a força sobre a cabeça, os ombros, fria e opressiva, acutilante, sufocante, asfixiante; e eu, também com toda a força que a ânsia e o desespero emprestam aos fracos, arremessava-me de cabeça contra a porta enquanto a mãos ambas empurrava e abria o fecho interior. A debalde. Batia e gritava. Berrava e chorava de raiva e impotência, quando a água embatia nas paredes e sanita, alagava o cubículo do WC e me ensopava, me enregelava... E àquela hora somente duas classes continuavam em aulas! As dos maiores; terceira e quarta, na outra banda do edifício escolar!...»
O plano geral da rua mantém-se. Figurantes aparecem e desaparecem consoante as suas entradas e saídas das portas e comércios, e inversamente. A luz é aberta, e a tarde estival. O off vigora, impessoal.
«Atirava-me contra a porta com quantas ganas tinha... Empurrava com o tronco, batia com os punhos e gritava, gritava, gritava... Até que quase abatida e sacudida pelos espasmos, ouvi alguém indignado do outro lado: era a empregada que ia arrecadar a mangueira. Foi ela quem me encontrou e abriu a porta, depois de haver fechado a água na torneira!»
A objectiva aproxima-se, subindo a avenida. Pára. É um grande plano de Palmira. O rosto pétreo apenas denuncia revolta pelo olhar. Parecem faiscar os olhos castanhos, paralelos, que em momentos outros sugerem ternura, fidelidade, segurança, compreensão. Mas são os dela, e isso acarreta-lhe o anexo da experiência e a história da sua dona. No grande plano do busto a boca mexe-se em câmara lenta, enquanto a voz off mantém a velocidade natural, o que provoca uma sensação de desapego, pois que as palavras ouvidas actuais não correspondem ao momento presente nos lábios, mas sim reportam a um movimento passado próximo, já ouvido, que nos obriga a um costurar de retomar o ponto atrasado, recuado, do pensamento.
«Ao descobrirem-me, a indignação foi geral. Ninguém suspeitou de ninguém, tal como também pessoa alguma seria capaz de conceber que houvesse alguém em A-dos-Tansos que o tivesse feito, perversamente e de propósito. Quanto muito, talvez por brincadeira, sem consciência dos riscos e prejuízos prà saúde. De mau gosto, é certo; mas de brincadeirinha. Não obstante dela tenha resultado uma constipação complicadíssima, que me obrigou a ficar de cama durante quinze dias. Depois deles, e segundo um período de tempo suficiente para esquecer o acontecido, jamais me deixaram andar sozinha. Mesmo dentro da escola, alguém maior faziam por estar sempre por perto. Recomendações de meu pai, possivelmente. E, tirando eu, mais ninguém soube efectivamente quem tinha feito a heresia. Todavia eu soube... Um dia, antes das férias do Carnaval, fiquei certa de que tinha sido ele, o Pedro: num comentário indirecto, mas em voz suficientemente alta para eu ouvir, esclareceu sorrindo sarcasticamente: “É muito asseada, não haja dúvida! Até toma banho frio de chuveiro no Inverno!...” E fitou-me desafiadoramente de soslaio, vitorioso, provocante, em malévola sedução entendida pelos outros coleguinhas dele! E houve risinhos abafados...»
O grande plano alterna para mim. Mas em velocidade normal. Há no meu rosto expectativa, mas também interrogação suspeitosa e insatisfeita.
«E não contaste a ninguém de quem suspeitavas? Não foi feito nada para o castigar?»
«Não.» Continuou ela, retomando o centro de cena em evidência no plano. «Não. Além de a minha irmã, não. E que por sinal nutria iguais conjecturas em relação à mesma pessoa, quando lhe contei o meu encontro com Pedro e o que ouvi da boca dele. Também de que serviria nós contarmos? Ele era o menino prodígio, bonito e bem comportado que todos os adultos aplaudiam... Como concebê-lo capaz de tais actos, não é?!... Por mim, tinha a certeza de que todos me recambiariam com um retumbante “estás parva” da praxe!... Inclusive meus pais, para já não falar nos dos dele!..»
Escuto. O meu rosto transfigurou-se num papiro com mapa de latitude nenhuma. Nele não há lugar a sentimentos nem emoções. É um plano de ausência. Uma carapaça marmórea que esconde o ser. Apenas ouvidos, nada mais. A câmara intercala de um para o outro. E ela inscreve-se no mesmo figurino que eu. Somente com uma diferença: enquanto eu sou todo ouvidos, ela é unicamente boca. Fala. Instrumento de precisão.
«Depois deste incidente, tive uns meses de paz consentida. Alguns rapazes e raparigas, influenciados ou não pelos mais velhos, condoeram-se pelo ostracismo a que fora votada e aproximaram-se mais de mim. Criei novas amizades, tentei uma vida normal, e adesivei-me superlativamente ainda mais à minha irmã. Tornámo-nos boas companheiras e amigas, além das boas irmãs que já éramos, não obstante a diferença de idades. E a necessidade de o matar apurou, engrossou, fez-se autónoma, a lume brando dentro e mim. Até à obsessão. Fez-se ritmo pulsante, mas calculado, da vida, do quotidiano. Para mais, no último dia de aulas, ao vir para casa só, Ana Isabel e Pedro cruzaram-se comigo. Chamaram-me nomes ordinários (flashback), provocam-me e atiram-me pedras. Fujo. Mas em vão, pois perseguem-me e cortam-me as saídas. E fazem-no obrigando-me a entrar num beco. Sou forçada a lutar e defender-me. Com ela podia eu bem, não fosse ele! Então, a um dos cantos vejo um pau, um resto de cabo enxada ou forquilha. Sem que eles se apercebam pego nele e desanco-os a quantas ganas tenho. Acredito que se na altura (fim do flashback), não fugissem, cada um para seu lado, não mais o poderiam voltar a fazer, já que a minha vontade era matá-los a ambos, ali, esmagar-lhes as cabeças cruelmente, como a vilões, que nem a duas cobras venenosas. Desfazer-lhes os crânios até verterem os miolos no chão, e o ódio que me tinham com eles. Todavia, mais tarde, depois de atacada ainda fui castigada por me haver defendido...»
«Como assim?!» Retorqui.
«Foi. Quando cheguei a casa já a mãe de Pedro havia telefonado a meu pai, contando-lhe, segundo a versão de Ana Isabel e do primo, como eu os tinha esperado traiçoeiramente à esquina tal com um pau e os espancara selvaticamente. Coisa que (palavras dela), além de pecado e pôr a vida dos outros em risco, fica muito mal a uma menina da minha idade. E família. Como balancete do sucedido ainda apurei umas boas correadas além de um fim-de-semana de quarto, do qual apenas podia sair para ir comer ou à casa de banho. Tudo o mais vedado, por castigo. Tanto ver televisão, como brincar com minha irmã. Unicamente no quarto, em solitário destilar de vinganças...»
O grande plano fixa-se nela.
«Finalmente vieram as férias de Verão. Só lá para Outubro o meu pesadelo recomeçaria novamente. Eram mais de três meses de descanso!... Nunca umas férias me souberam tão bem! Além do mais, durante elas, foi um elaborar de planos em que vingar-me, a matá-lo. As brincadeiras com minha irmã funcionavam como laboratório. Nelas, a principal, era uma a que chamávamos de “matar o maldito”. Sendo o maldito o nome de código que entre nós significava Pedro, para despistar ingerências adultas... Mas a cada dia de brincadeira, sempre a matá-lo de mais uma maneira diferente, reconhecíamos a enorme dificuldade que era fazê-lo sem deixar provas de termos sido nós... E matámo-lo de todas as maneiras e feitios! Desde a pedrada na cabeça ao envenenamento, passando pelo afogamento, atropelamento e a tiro, tudo ensaiámos. A debalde!... Infrutífera pesquisa.»
Novo replay com a voz em off.
«Contudo, não sei se por distracção, se por esquecimento dele, após o findar das férias e no recomeço das aulas do ano lectivo seguinte, os ataques odiosos de Pedro cessaram. Mais tarde compreendi que foram o cansaço e incapacidade de levar as coisas até ao fim que o fizeram esquecer-me. Nele, mesmo o manter dum sentimento tão forte como o ódio durante mais de nove meses, era exageradamente superior às suas forças. Para Pedro qualquer ideia, sentimento ou vocação, só seria útil e aproveitável se fosse descartável e de tara perdida, do tipo usar imediatamente e deitar fora... Tudo o mais eram desperdício de tempo e de boa vontade!... Até na memória essa preguiça se fazia valer: se fosse preciso recuar mais do que uma semana no tempo, a recordar qualquer situação ou ensinamento adquirido, encontrava logo dificuldades e forjava obstáculos sem fim. E que raramente ultrapassava. O mais comum nele eram o excessivo entusiasmo em começar algo de novo, assim como a rapidez com que disso desistia!... Nele até o prazer da novidade era efémero!»
«E conseguiste discernir tudo isso sobre ele nessa idade?»
O silêncio fez-se. Todavia a imagem, atrasada que está em relação ao verbo, mantém-se durante alguns (muitos) segundos mais.
«Não. Só posteriormente», e o grande plano esbate-se pouco a pouco. E também lentamente substitui-se por um geral da rua com o Largo da Rotunda Sul em fundo. A voz impõe-se em off, «enquanto estudava psicologia e me preparava para fazer bem o que tinha de ser feito...» Alguns bombeiros, cinco ou seis, sobem a avenida. Gesticulam, falam alto, sacodem as pernas, batem as botas. A mancha azul-escura da ganga dos macacões, à distância, ora aproximando-se, ora afastando-se do núcleo, em pulsar ritmado e entusiástico, estabelece uma dança estranha e sombria dum enorme polvo a diluir-se à medida que sobe no separar das formas, individualizando-as e aos corpos. «Mas estou a precipitar-me!... Já lá vamos!»
A câmara acompanha o grupo de bombeiros na subida. Quando estes se cruzam connosco, nos ultrapassam, deixa-os. Ficamos nós em plano americano.
«O que se passou, foi que durante a quarta classe, ciclo preparatório e escola secundária, eu me tornei, para além da melhor aluna de A-dos-Tansos, na mais cuidada e bonita também. Embora que neste capítulo fosse mais honesto e justo dar o lugar a minha irmã! Era bem mais bonita que eu! E asseada! Que, aliás, nunca mas disputou, mas sim antes, se alguém acendia a competição, logo se prontificava a esclarecer favorecendo-me, evidenciando desprimores na sua apresentação, e referindo que a qualificação me assentava melhor do que a ela...»
Passagem a mais um grande plano de Palmira, como fotograma inicial de uma sequência alternativa de planos comigo, conforme se sou eu ou ela quem está no uso da palavra.
«Esses anos foram, todavia, bastante cinzentos para mim. Como todos os outros mais, aliás. Depois dos fatídicos acontecimentos de que fora alvo e vítima, fiquei como que morta e oca por dentro. Desmobilizada. Não fosse a sede ansiosa e obsessiva de vingar-me com a morte dele, creio que me teria apagado totalmente. Para melhor compreenderes digo-te que até esta data e idade nunca senti qualquer prazer sexual, nunca tive um orgasmo, do mais pequeno e subtil grau que fosse!... Nunca.»
«Mas estudavas e cuidavas-te... Não foi o que disseste? Algum motivo havias de ter para isso! Não desejavas ser amada? Desejada?»
«Sim, estudava; e muito. Porque foi a estudar que consegui reconquistar a admiração e respeito, tanto dos meus colegas, como dos meus pais e professores. E também usurpar a Pedro o primeiro lugar no podium dos meninos prodígio. Nos anos que se seguiram tornou-se vulgaríssima e banal a sua pouco dotada perspicácia e sabedoria. Revelou-se um modesto aluno que conseguia os mínimos para passar de ano, ou um nadinha mais, e quase sempre esforçadamente. Vantagem que explorei exaustivamente, como não poderia deixar de ser!»
«Assim, de repente. Dum momento para o outro?...»
«Não. Gradualmente. É como se a inteligência dele fosse inversamente proporcional à idade: à medida que crescia menores se tornavam a sua memória, objectividade, lucidez e diligência. É como se tivesse crescido e evoluído tudo em acelerado, até aos 8/9 anos, e ficasse com uma idade mental bastante superior aos seus oito/nove anos, mas que também de repente parara de crescer aí, ficasse estagnado nessa idade e atitude mental. E memória.»
«Enquanto tu...»
«Enquanto eu mantive os meus índices de crescimento na mesma. Enquanto para ele única e aparentemente só podia haver degradação, para mim havia realmente evolução, contínua e gradual. No aspecto físico, importa salientar, que ainda não frequentava o ciclo preparatório, pois fora nas férias grandes que antecederam a entrada nele, quando me veio o primeiro período menstrual. Nas leituras também fui precoce! Nesse mesmo ano li, na íntegra, Os Lusíadas.»
«E com algum motivo especial? Com algum objectivo explícito para o fazer?»
«Não. Li-o, porque naquele ano e àquele tempo lia tudo o que fosse livro, e me viesse parar às mãos. Sem qualquer motivo nem critério! Era apanhar qualquer livro que fosse, que só o largava quando terminado. Não precisava de justificação alguma. Agora penso, que era uma atitude lógica dentro do plano que inconscientemente tecera para acabar com Pedro. Como fazem os caçadores: estudar os hábitos, comportamentos, características e habitas dos animais que pretendem capturar, além de rentabilizar a busca diminui as possibilidades de falhar no tiro ou no aprisionamento. Conhecer a sua vítima o melhor possível é uma tarefa do predador que se preza. E a leitura fornece inúmeros acontecimentos, relatos e conhecimentos sobre a natureza geral e particular do homem... Ou não é?!»
«Também creio que sim. É sempre do homem enquanto homem, do seu relacionamento consigo mesmo ou com os outros, com as coisas ou com os animais, com as ideias ou com o ambiente, que se fala quando se escreve, ou quando se lê. Os livros são uns bons ficheiros de registos de ser; testemunhos de experiências em situação... Penso.»
«E estás muito certo. Os livros são feitos por homens, e estes falam sempre de si mesmos, até quando pretendem falar doutras coisas. Além de facilitarem e serem um bom pretexto e ocupação para a solidão inventiva. Eu conto. Em resumo, o que me mantinha viva e a funcionar era a vingança que somente se consumaria com a morte de Pedro. Desde o matá-lo eu própria, com faca, pistola, veneno, objecto contundente, etc., etc., até ao contratar ou sugestionar quem o fizesse por mim, tudo me passou e foi revisto inúmeras vezes pela cabeça. Mas sempre com um senão: dificilmente escaparia impune por tal, num ambiente tão restrito e limitado. Até por minha irmã eu corria o risco de vir a ser apanhada. Qualquer desabafo ou fraqueza que ela pudesse vir a ter que revelassem o conteúdo das nossas brincadeiras, principalmente a de jogar ao “matar o maldito”, denunciar-me-iam e fragilizavam-me. A televisão, nas séries e filmes, mormente nos policiais, depressa me alertou para o significado e risco que corre quem pratica a justiça por mão própria: é-se consequentemente condenado por ela ou em nome dela. Por conseguinte...»
«E ele imaginava ou sabia de alguma coisa? Como é que tu te relacionavas com ele? Contaste-lhe ou deste-lhe alguma vez motivos para desconfiança?»
«Até mais ou menos ao final do preparatório não me aproximei muito dele. E por isso mesmo: porque tinha medo de vir a trair-me, por um lado dando-lhe pistas que o prevenissem, e por outro, com medo de o desculpar pelo reavivar dos sentimentos (nobres) que havia nutrido por ele. Mas no fossilizar dos meus propósitos fui ganhando à-vontade e ousadia. E certeza. Até que, em consequência disso, me convenci de que temos de estar o mais perto possível daqueles a quem queremos destruir, se queremos que a oportunidade surja eficaz e descomprometida...»
«E ele?»
«Ele tinha-se esquecido de tudo: tanto do que me fez, como do que pensava e sentia sobre mim. Depois de três ou quatro anos de separação efectiva ou de diminuto contacto, pouco ou nada manifestava saber acerca de mim. Apenas que andara na mesma classe e sala que ele. E que os rapazes mais velhos me cortejavam descaradamente, e sem tréguas!... E que o estar comigo e gozar das minhas atenções e conversas, provocava inveja, admiração, sei lá!, da parte deles. Lhe dava um estatuto superior e mais atenções, principalmente dos maiores, a quem imitava e lhe inspiravam temor e superioridade. Foi daí que nasceu o primeiro fio da teia em que se enredou...»
«E tu já reconhecias isso naquele tempo? Conscientemente?...»
«Não; mais tarde. Àquela altura do campeonato a única coisa de que tinha plena consciência era de que iria matá-lo, como aliás aconteceu, mas não sabia com o quê nem quando. Nem o que fazer para o conseguir. Apenas reconhecia que tinha que esconder bem o que pretendia, e que para o fazer devia representar muito bem o contrário. Talvez que mais por imposição do meu inconsciente. Eu autoprogramara-me heuristicamente, e a entrada de dados e de informações era funcionalmente feita e interiorizada segundo os objectivos estipulados, da mesma forma que os rectificavam e (re)actualizavam à luz dos novos conhecimentos recentemente adquiridos e se reposicionavam pragmaticamente. O meu corpo era um biombo que escondia e enfeitava o software da morte, que depois de accionado, activado, procedia de acordo com uma cadeia automática de atitudes e comportamentos para a qual a minha livre vontade pouca importância tinha. Tanto faz que se considere que aquele acto era ou não consciente; que aquele pensamento fosse lógico ou não; que tal memória fosse espontânea ou provocada; porque o certo, o certo mesmo, é que ele teria a validade que merece ter um dado parafuso na estrutura geral duma determinada máquina, ou duma particular e pontual peça no puzzle que a inscreve. Nesse universo essencial, e em que fora dele não vale nada.»
«Por exemplo!...»
«Por exemplo a minha curiosidade e predilecção por livros e filmes policiais, assim como o ter começado a estudar psicologia ainda no oitavo ano, extracurrículo, e às escondidas quase, quando apenas viria a ter a disciplina no 10º ano. Esta antecipação de dois anos, foi uma resposta condicionada pelo programa, que por sua vez o condicionou... Uma consequência influenciável que o influenciou... Topas?!»
«Claro; é um ponto de vista. Mas também não podemos deixar que a parte tome o lugar do todo. Tu, provavelmente, como toda a outra gente, estavas inclusive sujeita a imposições e influências sócio-familiares, a responder às expectativas dos adultos e das outras crianças, como da tua irmã e etc., etc. e tal.»
«Isso é o que se pensa! E erradamente. Ninguém nos ensina nada: nós é que aprendemos. E aprendemos o que queremos, não o que esperam que nós queiramos, nem o que nos querem ensinar. Só vemos e ouvimos o que queremos ver e ouvir, em matéria de aprendizagem. E se não tivermos onde encaixar um dado conhecimento, tanto faz explicarem-no-lo uma vez como um milhão de vezes, que o não memorizamos. Que o esquecemos assim que viramos costas. Sobretudo, tão-só retemos aquilo que consideramos útil e funcional para o motivo, preocupação e preposição que assumimos. E é esse princípio objectivado que selecciona e classifica a informação, não nós, embora que de acordo com o desenrolar evolutivo na gradação crescente de realizar-se.»
«É uma maneira de dizer... Uma opinião.»
«Não é, não; é a pura verdade. Por exemplo, a Caixa de Skiner. Como é que eu aos catorze anos podia conscientemente reconhecer o valor dos reforçamentos na determinação dos comportamentos humano e animal? Como consegui eu associar e adaptar o procedimento para influenciar e levar o Pedro a fazer o que eu queria? Porque o recompensava sexualmente logo após ele ter tido uma manifestação de dependência em relação a mim? De dependência escolar/cognitiva ou financeira. Mas eu fazia-o. E sentia que era a única coisa que estava certa de querer e devia fazer.»
«É um tanto vago... Não é?»
«Parece. Como muitas outras associações, aliás. Mas não é. É antes essencial. Se ou não se, eis que. A uma atitude certa a recompensa apropriada, estabelece quase sempre a possibilidade de repetição duma conduta que preferimos, mesmo que não seja desejável moral e sexualmente. Biologicamente. Foi o caso da droga, em que se meteu da mesma forma e modo com que começou a fumar tabaco e se lhe viciou. Assim: primeiro comecei por semear ao deus-dará uns quantos “sinto mais desejos por homens que fumam”, “nem sei como me contive ao sentir-lhe o cheiro a suor e tabaco”, “um homem que não fume não é totalmente homem”, “fulano é suficientemente maricas, para nem fumar” e quejandos, enquanto o submetia a um longo período de terapia de choque pelo método do balde de água fria, de meles e entusiasmos repentinamente interrompidos, além do negar-me a satisfazer sexualmente os seus apetites ansiosos mais audazes que a carícia refreada e o linguado incompleto. Principiou a andar nervoso e deprimido. Depois, num dia comprei um maço de tabaco. A que acrescentei o efeito fruto proibido, mostrando-lho, enquanto languidamente lhe inspirava o odor e o cheirava libidinosamente, às escondidas, mas unicamente onde e quando soubesse que ia ser apanhada por ele a fazê-lo. Duas, três, quatro vezes, e o resto foi fácil: ele mesmo se informou junto dos mais velhos, e deu com eles as primeiras fumaças de iniciação. No dia em que se aproximou de mim a tresandar a tabaco, confessando-me orgulhoso o acto de haver fumado, fui caprichosamente gentil com ele. Lubrifiquei-me com vaselina e fiz-lhe sentir as delícias do coito sexual completo, numa penetração plena, em que o ajudei excepcionalmente, acompanhada de ejaculação abandonada. Tiro e queda. Foi infalível. Com a repetição regrada do aperitivo, em pouco menos de um mês tornou-se um fumador exímio, assim como me deu a ganhar mais um ponto de recurso no segredo guardado e escondido dos pais dele.»
«Mas tu falaste também em droga...»
«Pois falei. Falei porque o método foi idêntico, embora que com as nuanças correspondentes no passar das leves para as pesadas, do haxixe à heroína, em aceleração pausada mas crescente. Um crescendo que o tempo ajudou. E a hiperdependência dele consolidou.»
«Não acredito que um efeito tenha apenas e somente uma causa. Numa atitude determinada e tomada por um homem, incorrem sempre não uma, mas diversas circunstâncias...»
«Nem eu. Nunca o afirmei; nem sequer o pretendi. Aliás a operação D&TP (Droga & Tabaco em Pedro), não teve como única responsável a minha pessoa, não obstante tenha sido eu a dar o empurrão inicial, tal como a ajustar acelerações e ritmos sempre que o sentia afrouxar nas suas utilizações e consumos. Tive ajudas. Nesse sentido, devo muito aos pais dele, a dois ou três amigos e colegas, à minha irmã até, à filosofia do sistema de ensino português e a alguns professores autoritários e casmurros, o tê-lo conseguido com tamanho êxito. Sem eles e ao chamamento da diferença, ao apelo interior da originalidade narcísica, ao desejo ansioso de ser continuamente amado e vangloriado, nunca me teria sido possível fragilizá-lo a ponto de o reprogramar motivacionalmente. E essa fragilização começa precisamente pelo facto de ele ser filho único, com um pai benevolente, mole, católico praticante ao nível da beatice, moralista das aparências e apóstolo do “dever ser”, mas cobrador de expectativas, e uma mãe hipocondríaca, propensa a lamentações, lamechismos e lamúrias, assim como sempre pronta a assumir o papel de invariável vítima sob os mais variáveis pretextos, onde ambos depositavam o objectivo e motivo de viver, além da única razão de ser para continuarem juntos maritalmente, em consentido e mútuo sacrifício, no manter dum casamento em que nunca houve amor, mas sim interesse e submissão. Ou seja, pela frouxidão dos pais, nunca aprendeu a querer para ter, tal como também nunca se preparou e autopreveniu contra a hipótese de haver alguém capaz de lhe fazer frente de se opor aos seus pretensos caprichos teimosa e inteligentemente. O mimo e superprotecção de “o menino quer, o menino tem” de ambos foi um óptimo fertilizante para o desenvolvimento e crescimento dos meus propósitos. Reconheço...»
O alternado de grandes planos continua actual. Todavia uma diferença: por vezes o câmbio é contrariado por alguns americanos simples ou dos dois, para normalizar os créditos na ideia de que o diálogo se mantém à escala do desafio, do debate, na competição de e por argumentos persuasores e sugestivos.
«Antes de te adiantares, gostava que soubesses que não sou fácil de convencer... Principalmente quando o absurdo se me depara.»
«Não sou vulnerável a ironias. Posso continuar?»
«Claro. Desculpa.»
«Desde muito cedo me apercebi que o êxito da OMP ( Operação Matar Pedro), dependia em grande parte de transformar a sua hiperdependência aos pais numa dependência, de igual calibre se não superior em grau, em relação a mim. O que foi canja! O moralismo hipócrita e convencional auxiliou bastante!... Por outro lado, o fundamentalismo conceitual no referente ao tabaco, droga e sexualidade, raiando o puritanismo vitoriano, assim como à noção de segurança financeira pelo mínimo gasto igual a máxima poupança - de no poupar é que está o ganho –, vieram condimentar q.b. o cozinhado de cumplicidades entre nós dois. E haverá melhor dependência que a cumplicidade?... Melhor amarra que a corda invisível?...»
«Não. Realmente o secreto ilícito partilhado foi a génese da nossa civilização: note-se a história de Adão e Eva, a do comer o fruto da árvore proibida do paraíso...»
«Eis exactamente a ideia... Primeiro meti-o no tabaco e escondi o caso dos pais dele. Depois dei-lhe dinheiro para o comprar quando eles o não faziam indirectamente. Mais tarde, levei-os a admitirem que Pedro fumasse tal como lhe custeassem o vício, no soltar duma amarra, no folgar da pressão, no descansar da boca afrouxando as rédeas do freio... O êxito desta tarefa, com o benefício da recompensa sexual, em breve garantiria que eu pudesse iniciar com igual efeito a fase “droga”. O primeiro capítulo do resto. Pois que nessa altura já ambos andávamos no décimo ano, e aí pelos 17 ou 18 anos cada um!»
«Quer dizer... Saídos de fresco da adolescência, não?!»
«Tal e qualmente. (Quão perverso és também!...) E as suas principais vítimas tinham sido os pais dele: haviam fraquejado e desbaratado quase todas as sua munições antivício na batalha preliminar. O que os deixara estropiados e agonizantes enquanto família. O tabaco não merecia tanto, é claro. Mas a eles, desprevenidos, pois que nunca haviam sonhado que tivessem de se debater com semelhante problema, não lhes passou pela cabeça que precisariam delas para outra batalha mais pujante: a droga. Principal elo para fechar o ciclo de morte que eu havia elaborado e instituído à volta de Pedro. A OMP era, em verdade, uma roleta viciada. E o croupier era eu... Os pais dele, os professores, os colegas, os conselheiros morais e psicológicos, não passavam de simples jogadores com fichas contadas e limitadas, e que tampouco sabiam a que (ou se) estavam a jogar!...»
«Lógico. Peculiar... Mas pouco convincente, convenhamos.»
«Se pouco convincente ou não, não sei, nem importa. Creio, ou ao contrário, não creio que só uma causa tenha um efeito. (Aliás, como afirmaste anteriormente!...) O efeito X é sempre resultante não só de uma, mas de nY de causas. Ou seja: Para Pedro se deixar convencer, sem sequer notar que estava a ser levado a isso, e começar a fumar haxixe foi necessário um empurrão coincidente (e eficaz) em várias frentes. Pelo que me diz respeito, rodeei-me de uns quantos fumadores já experimentados, que gostavam, e não lhes regateei elogios e atenções. Facilitei-lhes dinheiro e até participei em algumas queimadas, puxando fumaça. Fiz-lhes os trabalhos de casa e participações em grupos disciplinares, visto que naquele tempo serem moda os trabalhos de grupo em quase todas as disciplinas curriculares. E limpei-lhe sempre a barra, se havia caso com os pais dele, que viam em mim mais uma filha ( a filha desejada, e que não tiveram) pelo meu aprumo, interesse e notas escolares, asseio, etiqueta e delicadeza de exemplo a seguir. Além, é claro, da consumação do futuro do filho, com um casamento desde muito novos engendrado pelas duas famílias.»
«E aos pais dele, como conseguias ludibriá-los? Olha que não é fácil atentar contra o filho duma mãe-galinha!... Ainda das que eternamente chocas!...»
«Não sei se com provas, se com testes especializados, ou qualquer outra facilidade de diagnóstico, mas eles sabiam das dificuldades do filho: da fraca memória, da falta de talento, da excessiva de pendência, fraqueza de vontade e pueril carácter... e talvez por isso viam em mim a outra parte, a metade que faltava, a capaz de compensar e equilibrar as coisas. Era o exemplo que ele deveria seguir, copiar. E conheces alguém que ponha em causa ou critique os seus modelos e eleitos?!... Então, eu fiz jogo duplo. Além de me tornar no principal intermediário/intérprete entre eles e o filho, logo que Pedro se começou a afastar progressivamente deles, dando-lhes também a possibilidade de controlo e influência sobre ele, a baixo custo, alinhando nas suas maquiavélicas tendências para o educar conforme os seus cânones. Se eles queriam que ele fosse a determinado lugar ou acontecimento, então deixava-os iludirem-se de que me convenciam a lá ir, para que eu lhes levasse o filho comigo, ou para levarem o filho sob o pretexto de eu também aí estar. Como foi no caso do evento anual dos grupos e Convivas da Juventude Católica. Tornei-me seu alibi e cúmplice, pelo menos nas suas tentativas de moldar o seu objectivo de vida em orgulho de viver, o seu doce e queridinho rebento. É que eles sempre foram um fungo, um musgo, uma espécie de parasitas do filho: viviam dele, embora convencidos e convencendo todos de que o faziam para ele.»
«Mas não há aí complexidade a mais...? Não te parece isso bastante complicado para já ser compreensível a uma garota de dezasseis, dezassete anos?... Francamente! Mais velho sou eu e não o vejo lá muito claro!...»
«Eu naquela altura não compreendia o que estava a fazer. Simplesmente sabia que estava a contribuir com qualquer coisa para alcançar o que queria. Nem tinha plena consciência de que eles eram assim. Era o meu inconsciente que captava e transformava a informação útil em prática. Não carecia de compreender o quer que fosse; precisava é de reagir conforme os ventos e acertar as rotas pelo meu rumo. Era a heurística do meu programa a funcionar, nada mais. Como no judo: quando alguém nos empurra devemos aproveitar a força desse empurrão e puxar decididamente, a fim de que esse alguém seja obrigado a dar uma cambalhota por cima de nós, e ir estatelar-se no chão, nas nossas costas. E flexibilidade e sentido de oportunidade nunca me faltaram!»
«Contudo, continuo a não perceber bem como é que uns pais superprotectores abdicaram assim do seu filhinho, e logo nas tuas mãos... »
esperando que todos os outros se fossem embora, e de cujas artimanhas uma era o refugiar-me na casa de banho. Num dia frio-friíssimo, daqueles dias de Janeiro em que o ar corta que nem gelo, contava eu, os demais saíram debandando em correria e eu deixei-me atrasar, aproveitando o reboliço da saída para passar despercebida e entrei na casa de banho, a fim de prolongar o atraso para reforçar a confiança... Até aí a estratégia tinha sortido efeito! Só que naquele dia, em desespero, o fiasco deu-se: ao trancar a porta por dentro fiquei à mercê de quem quer que estivesse por fora! Alguém, que a porta abre-se para fora dado o espaço exíguo da casa de banho, um quadrículo onde malmente cabia a sanita, após ter colocado um pedaço de madeira em cunha por baixo da porta, sem que me tivesse apercebido da marosca na fisga, e porque a empregada de limpeza houvesse deixado a mangueira de lavagem de lavabos e alpendre de recreio ligada, embora que fechada na torneira, enfiou pelos buracos de ventilação sobre a porta a dita mangueira, abrindo seguidamente a torneira da água ao máximo da pressão possível. A água batia-me com toda a força sobre a cabeça, os ombros, fria e opressiva, acutilante, sufocante, asfixiante; e eu, também com toda a força que a ânsia e o desespero emprestam aos fracos, arremessava-me de cabeça contra a porta enquanto a mãos ambas empurrava e abria o fecho interior. A debalde. Batia e gritava. Berrava e chorava de raiva e impotência, quando a água embatia nas paredes e sanita, alagava o cubículo do WC e me ensopava, me enregelava... E àquela hora somente duas classes continuavam em aulas! As dos maiores; terceira e quarta, na outra banda do edifício escolar!...»
O plano geral da rua mantém-se. Figurantes aparecem e desaparecem consoante as suas entradas e saídas das portas e comércios, e inversamente. A luz é aberta, e a tarde estival. O off vigora, impessoal.
«Atirava-me contra a porta com quantas ganas tinha... Empurrava com o tronco, batia com os punhos e gritava, gritava, gritava... Até que quase abatida e sacudida pelos espasmos, ouvi alguém indignado do outro lado: era a empregada que ia arrecadar a mangueira. Foi ela quem me encontrou e abriu a porta, depois de haver fechado a água na torneira!»
A objectiva aproxima-se, subindo a avenida. Pára. É um grande plano de Palmira. O rosto pétreo apenas denuncia revolta pelo olhar. Parecem faiscar os olhos castanhos, paralelos, que em momentos outros sugerem ternura, fidelidade, segurança, compreensão. Mas são os dela, e isso acarreta-lhe o anexo da experiência e a história da sua dona. No grande plano do busto a boca mexe-se em câmara lenta, enquanto a voz off mantém a velocidade natural, o que provoca uma sensação de desapego, pois que as palavras ouvidas actuais não correspondem ao momento presente nos lábios, mas sim reportam a um movimento passado próximo, já ouvido, que nos obriga a um costurar de retomar o ponto atrasado, recuado, do pensamento.
«Ao descobrirem-me, a indignação foi geral. Ninguém suspeitou de ninguém, tal como também pessoa alguma seria capaz de conceber que houvesse alguém em A-dos-Tansos que o tivesse feito, perversamente e de propósito. Quanto muito, talvez por brincadeira, sem consciência dos riscos e prejuízos prà saúde. De mau gosto, é certo; mas de brincadeirinha. Não obstante dela tenha resultado uma constipação complicadíssima, que me obrigou a ficar de cama durante quinze dias. Depois deles, e segundo um período de tempo suficiente para esquecer o acontecido, jamais me deixaram andar sozinha. Mesmo dentro da escola, alguém maior faziam por estar sempre por perto. Recomendações de meu pai, possivelmente. E, tirando eu, mais ninguém soube efectivamente quem tinha feito a heresia. Todavia eu soube... Um dia, antes das férias do Carnaval, fiquei certa de que tinha sido ele, o Pedro: num comentário indirecto, mas em voz suficientemente alta para eu ouvir, esclareceu sorrindo sarcasticamente: “É muito asseada, não haja dúvida! Até toma banho frio de chuveiro no Inverno!...” E fitou-me desafiadoramente de soslaio, vitorioso, provocante, em malévola sedução entendida pelos outros coleguinhas dele! E houve risinhos abafados...»
O grande plano alterna para mim. Mas em velocidade normal. Há no meu rosto expectativa, mas também interrogação suspeitosa e insatisfeita.
«E não contaste a ninguém de quem suspeitavas? Não foi feito nada para o castigar?»
«Não.» Continuou ela, retomando o centro de cena em evidência no plano. «Não. Além de a minha irmã, não. E que por sinal nutria iguais conjecturas em relação à mesma pessoa, quando lhe contei o meu encontro com Pedro e o que ouvi da boca dele. Também de que serviria nós contarmos? Ele era o menino prodígio, bonito e bem comportado que todos os adultos aplaudiam... Como concebê-lo capaz de tais actos, não é?!... Por mim, tinha a certeza de que todos me recambiariam com um retumbante “estás parva” da praxe!... Inclusive meus pais, para já não falar nos dos dele!..»
Escuto. O meu rosto transfigurou-se num papiro com mapa de latitude nenhuma. Nele não há lugar a sentimentos nem emoções. É um plano de ausência. Uma carapaça marmórea que esconde o ser. Apenas ouvidos, nada mais. A câmara intercala de um para o outro. E ela inscreve-se no mesmo figurino que eu. Somente com uma diferença: enquanto eu sou todo ouvidos, ela é unicamente boca. Fala. Instrumento de precisão.
«Depois deste incidente, tive uns meses de paz consentida. Alguns rapazes e raparigas, influenciados ou não pelos mais velhos, condoeram-se pelo ostracismo a que fora votada e aproximaram-se mais de mim. Criei novas amizades, tentei uma vida normal, e adesivei-me superlativamente ainda mais à minha irmã. Tornámo-nos boas companheiras e amigas, além das boas irmãs que já éramos, não obstante a diferença de idades. E a necessidade de o matar apurou, engrossou, fez-se autónoma, a lume brando dentro e mim. Até à obsessão. Fez-se ritmo pulsante, mas calculado, da vida, do quotidiano. Para mais, no último dia de aulas, ao vir para casa só, Ana Isabel e Pedro cruzaram-se comigo. Chamaram-me nomes ordinários (flashback), provocam-me e atiram-me pedras. Fujo. Mas em vão, pois perseguem-me e cortam-me as saídas. E fazem-no obrigando-me a entrar num beco. Sou forçada a lutar e defender-me. Com ela podia eu bem, não fosse ele! Então, a um dos cantos vejo um pau, um resto de cabo enxada ou forquilha. Sem que eles se apercebam pego nele e desanco-os a quantas ganas tenho. Acredito que se na altura (fim do flashback), não fugissem, cada um para seu lado, não mais o poderiam voltar a fazer, já que a minha vontade era matá-los a ambos, ali, esmagar-lhes as cabeças cruelmente, como a vilões, que nem a duas cobras venenosas. Desfazer-lhes os crânios até verterem os miolos no chão, e o ódio que me tinham com eles. Todavia, mais tarde, depois de atacada ainda fui castigada por me haver defendido...»
«Como assim?!» Retorqui.
«Foi. Quando cheguei a casa já a mãe de Pedro havia telefonado a meu pai, contando-lhe, segundo a versão de Ana Isabel e do primo, como eu os tinha esperado traiçoeiramente à esquina tal com um pau e os espancara selvaticamente. Coisa que (palavras dela), além de pecado e pôr a vida dos outros em risco, fica muito mal a uma menina da minha idade. E família. Como balancete do sucedido ainda apurei umas boas correadas além de um fim-de-semana de quarto, do qual apenas podia sair para ir comer ou à casa de banho. Tudo o mais vedado, por castigo. Tanto ver televisão, como brincar com minha irmã. Unicamente no quarto, em solitário destilar de vinganças...»
O grande plano fixa-se nela.
«Finalmente vieram as férias de Verão. Só lá para Outubro o meu pesadelo recomeçaria novamente. Eram mais de três meses de descanso!... Nunca umas férias me souberam tão bem! Além do mais, durante elas, foi um elaborar de planos em que vingar-me, a matá-lo. As brincadeiras com minha irmã funcionavam como laboratório. Nelas, a principal, era uma a que chamávamos de “matar o maldito”. Sendo o maldito o nome de código que entre nós significava Pedro, para despistar ingerências adultas... Mas a cada dia de brincadeira, sempre a matá-lo de mais uma maneira diferente, reconhecíamos a enorme dificuldade que era fazê-lo sem deixar provas de termos sido nós... E matámo-lo de todas as maneiras e feitios! Desde a pedrada na cabeça ao envenenamento, passando pelo afogamento, atropelamento e a tiro, tudo ensaiámos. A debalde!... Infrutífera pesquisa.»
Novo replay com a voz em off.
«Contudo, não sei se por distracção, se por esquecimento dele, após o findar das férias e no recomeço das aulas do ano lectivo seguinte, os ataques odiosos de Pedro cessaram. Mais tarde compreendi que foram o cansaço e incapacidade de levar as coisas até ao fim que o fizeram esquecer-me. Nele, mesmo o manter dum sentimento tão forte como o ódio durante mais de nove meses, era exageradamente superior às suas forças. Para Pedro qualquer ideia, sentimento ou vocação, só seria útil e aproveitável se fosse descartável e de tara perdida, do tipo usar imediatamente e deitar fora... Tudo o mais eram desperdício de tempo e de boa vontade!... Até na memória essa preguiça se fazia valer: se fosse preciso recuar mais do que uma semana no tempo, a recordar qualquer situação ou ensinamento adquirido, encontrava logo dificuldades e forjava obstáculos sem fim. E que raramente ultrapassava. O mais comum nele eram o excessivo entusiasmo em começar algo de novo, assim como a rapidez com que disso desistia!... Nele até o prazer da novidade era efémero!»
«E conseguiste discernir tudo isso sobre ele nessa idade?»
O silêncio fez-se. Todavia a imagem, atrasada que está em relação ao verbo, mantém-se durante alguns (muitos) segundos mais.
«Não. Só posteriormente», e o grande plano esbate-se pouco a pouco. E também lentamente substitui-se por um geral da rua com o Largo da Rotunda Sul em fundo. A voz impõe-se em off, «enquanto estudava psicologia e me preparava para fazer bem o que tinha de ser feito...» Alguns bombeiros, cinco ou seis, sobem a avenida. Gesticulam, falam alto, sacodem as pernas, batem as botas. A mancha azul-escura da ganga dos macacões, à distância, ora aproximando-se, ora afastando-se do núcleo, em pulsar ritmado e entusiástico, estabelece uma dança estranha e sombria dum enorme polvo a diluir-se à medida que sobe no separar das formas, individualizando-as e aos corpos. «Mas estou a precipitar-me!... Já lá vamos!»
A câmara acompanha o grupo de bombeiros na subida. Quando estes se cruzam connosco, nos ultrapassam, deixa-os. Ficamos nós em plano americano.
«O que se passou, foi que durante a quarta classe, ciclo preparatório e escola secundária, eu me tornei, para além da melhor aluna de A-dos-Tansos, na mais cuidada e bonita também. Embora que neste capítulo fosse mais honesto e justo dar o lugar a minha irmã! Era bem mais bonita que eu! E asseada! Que, aliás, nunca mas disputou, mas sim antes, se alguém acendia a competição, logo se prontificava a esclarecer favorecendo-me, evidenciando desprimores na sua apresentação, e referindo que a qualificação me assentava melhor do que a ela...»
Passagem a mais um grande plano de Palmira, como fotograma inicial de uma sequência alternativa de planos comigo, conforme se sou eu ou ela quem está no uso da palavra.
«Esses anos foram, todavia, bastante cinzentos para mim. Como todos os outros mais, aliás. Depois dos fatídicos acontecimentos de que fora alvo e vítima, fiquei como que morta e oca por dentro. Desmobilizada. Não fosse a sede ansiosa e obsessiva de vingar-me com a morte dele, creio que me teria apagado totalmente. Para melhor compreenderes digo-te que até esta data e idade nunca senti qualquer prazer sexual, nunca tive um orgasmo, do mais pequeno e subtil grau que fosse!... Nunca.»
«Mas estudavas e cuidavas-te... Não foi o que disseste? Algum motivo havias de ter para isso! Não desejavas ser amada? Desejada?»
«Sim, estudava; e muito. Porque foi a estudar que consegui reconquistar a admiração e respeito, tanto dos meus colegas, como dos meus pais e professores. E também usurpar a Pedro o primeiro lugar no podium dos meninos prodígio. Nos anos que se seguiram tornou-se vulgaríssima e banal a sua pouco dotada perspicácia e sabedoria. Revelou-se um modesto aluno que conseguia os mínimos para passar de ano, ou um nadinha mais, e quase sempre esforçadamente. Vantagem que explorei exaustivamente, como não poderia deixar de ser!»
«Assim, de repente. Dum momento para o outro?...»
«Não. Gradualmente. É como se a inteligência dele fosse inversamente proporcional à idade: à medida que crescia menores se tornavam a sua memória, objectividade, lucidez e diligência. É como se tivesse crescido e evoluído tudo em acelerado, até aos 8/9 anos, e ficasse com uma idade mental bastante superior aos seus oito/nove anos, mas que também de repente parara de crescer aí, ficasse estagnado nessa idade e atitude mental. E memória.»
«Enquanto tu...»
«Enquanto eu mantive os meus índices de crescimento na mesma. Enquanto para ele única e aparentemente só podia haver degradação, para mim havia realmente evolução, contínua e gradual. No aspecto físico, importa salientar, que ainda não frequentava o ciclo preparatório, pois fora nas férias grandes que antecederam a entrada nele, quando me veio o primeiro período menstrual. Nas leituras também fui precoce! Nesse mesmo ano li, na íntegra, Os Lusíadas.»
«E com algum motivo especial? Com algum objectivo explícito para o fazer?»
«Não. Li-o, porque naquele ano e àquele tempo lia tudo o que fosse livro, e me viesse parar às mãos. Sem qualquer motivo nem critério! Era apanhar qualquer livro que fosse, que só o largava quando terminado. Não precisava de justificação alguma. Agora penso, que era uma atitude lógica dentro do plano que inconscientemente tecera para acabar com Pedro. Como fazem os caçadores: estudar os hábitos, comportamentos, características e habitas dos animais que pretendem capturar, além de rentabilizar a busca diminui as possibilidades de falhar no tiro ou no aprisionamento. Conhecer a sua vítima o melhor possível é uma tarefa do predador que se preza. E a leitura fornece inúmeros acontecimentos, relatos e conhecimentos sobre a natureza geral e particular do homem... Ou não é?!»
«Também creio que sim. É sempre do homem enquanto homem, do seu relacionamento consigo mesmo ou com os outros, com as coisas ou com os animais, com as ideias ou com o ambiente, que se fala quando se escreve, ou quando se lê. Os livros são uns bons ficheiros de registos de ser; testemunhos de experiências em situação... Penso.»
«E estás muito certo. Os livros são feitos por homens, e estes falam sempre de si mesmos, até quando pretendem falar doutras coisas. Além de facilitarem e serem um bom pretexto e ocupação para a solidão inventiva. Eu conto. Em resumo, o que me mantinha viva e a funcionar era a vingança que somente se consumaria com a morte de Pedro. Desde o matá-lo eu própria, com faca, pistola, veneno, objecto contundente, etc., etc., até ao contratar ou sugestionar quem o fizesse por mim, tudo me passou e foi revisto inúmeras vezes pela cabeça. Mas sempre com um senão: dificilmente escaparia impune por tal, num ambiente tão restrito e limitado. Até por minha irmã eu corria o risco de vir a ser apanhada. Qualquer desabafo ou fraqueza que ela pudesse vir a ter que revelassem o conteúdo das nossas brincadeiras, principalmente a de jogar ao “matar o maldito”, denunciar-me-iam e fragilizavam-me. A televisão, nas séries e filmes, mormente nos policiais, depressa me alertou para o significado e risco que corre quem pratica a justiça por mão própria: é-se consequentemente condenado por ela ou em nome dela. Por conseguinte...»
«E ele imaginava ou sabia de alguma coisa? Como é que tu te relacionavas com ele? Contaste-lhe ou deste-lhe alguma vez motivos para desconfiança?»
«Até mais ou menos ao final do preparatório não me aproximei muito dele. E por isso mesmo: porque tinha medo de vir a trair-me, por um lado dando-lhe pistas que o prevenissem, e por outro, com medo de o desculpar pelo reavivar dos sentimentos (nobres) que havia nutrido por ele. Mas no fossilizar dos meus propósitos fui ganhando à-vontade e ousadia. E certeza. Até que, em consequência disso, me convenci de que temos de estar o mais perto possível daqueles a quem queremos destruir, se queremos que a oportunidade surja eficaz e descomprometida...»
«E ele?»
«Ele tinha-se esquecido de tudo: tanto do que me fez, como do que pensava e sentia sobre mim. Depois de três ou quatro anos de separação efectiva ou de diminuto contacto, pouco ou nada manifestava saber acerca de mim. Apenas que andara na mesma classe e sala que ele. E que os rapazes mais velhos me cortejavam descaradamente, e sem tréguas!... E que o estar comigo e gozar das minhas atenções e conversas, provocava inveja, admiração, sei lá!, da parte deles. Lhe dava um estatuto superior e mais atenções, principalmente dos maiores, a quem imitava e lhe inspiravam temor e superioridade. Foi daí que nasceu o primeiro fio da teia em que se enredou...»
«E tu já reconhecias isso naquele tempo? Conscientemente?...»
«Não; mais tarde. Àquela altura do campeonato a única coisa de que tinha plena consciência era de que iria matá-lo, como aliás aconteceu, mas não sabia com o quê nem quando. Nem o que fazer para o conseguir. Apenas reconhecia que tinha que esconder bem o que pretendia, e que para o fazer devia representar muito bem o contrário. Talvez que mais por imposição do meu inconsciente. Eu autoprogramara-me heuristicamente, e a entrada de dados e de informações era funcionalmente feita e interiorizada segundo os objectivos estipulados, da mesma forma que os rectificavam e (re)actualizavam à luz dos novos conhecimentos recentemente adquiridos e se reposicionavam pragmaticamente. O meu corpo era um biombo que escondia e enfeitava o software da morte, que depois de accionado, activado, procedia de acordo com uma cadeia automática de atitudes e comportamentos para a qual a minha livre vontade pouca importância tinha. Tanto faz que se considere que aquele acto era ou não consciente; que aquele pensamento fosse lógico ou não; que tal memória fosse espontânea ou provocada; porque o certo, o certo mesmo, é que ele teria a validade que merece ter um dado parafuso na estrutura geral duma determinada máquina, ou duma particular e pontual peça no puzzle que a inscreve. Nesse universo essencial, e em que fora dele não vale nada.»
«Por exemplo!...»
«Por exemplo a minha curiosidade e predilecção por livros e filmes policiais, assim como o ter começado a estudar psicologia ainda no oitavo ano, extracurrículo, e às escondidas quase, quando apenas viria a ter a disciplina no 10º ano. Esta antecipação de dois anos, foi uma resposta condicionada pelo programa, que por sua vez o condicionou... Uma consequência influenciável que o influenciou... Topas?!»
«Claro; é um ponto de vista. Mas também não podemos deixar que a parte tome o lugar do todo. Tu, provavelmente, como toda a outra gente, estavas inclusive sujeita a imposições e influências sócio-familiares, a responder às expectativas dos adultos e das outras crianças, como da tua irmã e etc., etc. e tal.»
«Isso é o que se pensa! E erradamente. Ninguém nos ensina nada: nós é que aprendemos. E aprendemos o que queremos, não o que esperam que nós queiramos, nem o que nos querem ensinar. Só vemos e ouvimos o que queremos ver e ouvir, em matéria de aprendizagem. E se não tivermos onde encaixar um dado conhecimento, tanto faz explicarem-no-lo uma vez como um milhão de vezes, que o não memorizamos. Que o esquecemos assim que viramos costas. Sobretudo, tão-só retemos aquilo que consideramos útil e funcional para o motivo, preocupação e preposição que assumimos. E é esse princípio objectivado que selecciona e classifica a informação, não nós, embora que de acordo com o desenrolar evolutivo na gradação crescente de realizar-se.»
«É uma maneira de dizer... Uma opinião.»
«Não é, não; é a pura verdade. Por exemplo, a Caixa de Skiner. Como é que eu aos catorze anos podia conscientemente reconhecer o valor dos reforçamentos na determinação dos comportamentos humano e animal? Como consegui eu associar e adaptar o procedimento para influenciar e levar o Pedro a fazer o que eu queria? Porque o recompensava sexualmente logo após ele ter tido uma manifestação de dependência em relação a mim? De dependência escolar/cognitiva ou financeira. Mas eu fazia-o. E sentia que era a única coisa que estava certa de querer e devia fazer.»
«É um tanto vago... Não é?»
«Parece. Como muitas outras associações, aliás. Mas não é. É antes essencial. Se ou não se, eis que. A uma atitude certa a recompensa apropriada, estabelece quase sempre a possibilidade de repetição duma conduta que preferimos, mesmo que não seja desejável moral e sexualmente. Biologicamente. Foi o caso da droga, em que se meteu da mesma forma e modo com que começou a fumar tabaco e se lhe viciou. Assim: primeiro comecei por semear ao deus-dará uns quantos “sinto mais desejos por homens que fumam”, “nem sei como me contive ao sentir-lhe o cheiro a suor e tabaco”, “um homem que não fume não é totalmente homem”, “fulano é suficientemente maricas, para nem fumar” e quejandos, enquanto o submetia a um longo período de terapia de choque pelo método do balde de água fria, de meles e entusiasmos repentinamente interrompidos, além do negar-me a satisfazer sexualmente os seus apetites ansiosos mais audazes que a carícia refreada e o linguado incompleto. Principiou a andar nervoso e deprimido. Depois, num dia comprei um maço de tabaco. A que acrescentei o efeito fruto proibido, mostrando-lho, enquanto languidamente lhe inspirava o odor e o cheirava libidinosamente, às escondidas, mas unicamente onde e quando soubesse que ia ser apanhada por ele a fazê-lo. Duas, três, quatro vezes, e o resto foi fácil: ele mesmo se informou junto dos mais velhos, e deu com eles as primeiras fumaças de iniciação. No dia em que se aproximou de mim a tresandar a tabaco, confessando-me orgulhoso o acto de haver fumado, fui caprichosamente gentil com ele. Lubrifiquei-me com vaselina e fiz-lhe sentir as delícias do coito sexual completo, numa penetração plena, em que o ajudei excepcionalmente, acompanhada de ejaculação abandonada. Tiro e queda. Foi infalível. Com a repetição regrada do aperitivo, em pouco menos de um mês tornou-se um fumador exímio, assim como me deu a ganhar mais um ponto de recurso no segredo guardado e escondido dos pais dele.»
«Mas tu falaste também em droga...»
«Pois falei. Falei porque o método foi idêntico, embora que com as nuanças correspondentes no passar das leves para as pesadas, do haxixe à heroína, em aceleração pausada mas crescente. Um crescendo que o tempo ajudou. E a hiperdependência dele consolidou.»
«Não acredito que um efeito tenha apenas e somente uma causa. Numa atitude determinada e tomada por um homem, incorrem sempre não uma, mas diversas circunstâncias...»
«Nem eu. Nunca o afirmei; nem sequer o pretendi. Aliás a operação D&TP (Droga & Tabaco em Pedro), não teve como única responsável a minha pessoa, não obstante tenha sido eu a dar o empurrão inicial, tal como a ajustar acelerações e ritmos sempre que o sentia afrouxar nas suas utilizações e consumos. Tive ajudas. Nesse sentido, devo muito aos pais dele, a dois ou três amigos e colegas, à minha irmã até, à filosofia do sistema de ensino português e a alguns professores autoritários e casmurros, o tê-lo conseguido com tamanho êxito. Sem eles e ao chamamento da diferença, ao apelo interior da originalidade narcísica, ao desejo ansioso de ser continuamente amado e vangloriado, nunca me teria sido possível fragilizá-lo a ponto de o reprogramar motivacionalmente. E essa fragilização começa precisamente pelo facto de ele ser filho único, com um pai benevolente, mole, católico praticante ao nível da beatice, moralista das aparências e apóstolo do “dever ser”, mas cobrador de expectativas, e uma mãe hipocondríaca, propensa a lamentações, lamechismos e lamúrias, assim como sempre pronta a assumir o papel de invariável vítima sob os mais variáveis pretextos, onde ambos depositavam o objectivo e motivo de viver, além da única razão de ser para continuarem juntos maritalmente, em consentido e mútuo sacrifício, no manter dum casamento em que nunca houve amor, mas sim interesse e submissão. Ou seja, pela frouxidão dos pais, nunca aprendeu a querer para ter, tal como também nunca se preparou e autopreveniu contra a hipótese de haver alguém capaz de lhe fazer frente de se opor aos seus pretensos caprichos teimosa e inteligentemente. O mimo e superprotecção de “o menino quer, o menino tem” de ambos foi um óptimo fertilizante para o desenvolvimento e crescimento dos meus propósitos. Reconheço...»
O alternado de grandes planos continua actual. Todavia uma diferença: por vezes o câmbio é contrariado por alguns americanos simples ou dos dois, para normalizar os créditos na ideia de que o diálogo se mantém à escala do desafio, do debate, na competição de e por argumentos persuasores e sugestivos.
«Antes de te adiantares, gostava que soubesses que não sou fácil de convencer... Principalmente quando o absurdo se me depara.»
«Não sou vulnerável a ironias. Posso continuar?»
«Claro. Desculpa.»
«Desde muito cedo me apercebi que o êxito da OMP ( Operação Matar Pedro), dependia em grande parte de transformar a sua hiperdependência aos pais numa dependência, de igual calibre se não superior em grau, em relação a mim. O que foi canja! O moralismo hipócrita e convencional auxiliou bastante!... Por outro lado, o fundamentalismo conceitual no referente ao tabaco, droga e sexualidade, raiando o puritanismo vitoriano, assim como à noção de segurança financeira pelo mínimo gasto igual a máxima poupança - de no poupar é que está o ganho –, vieram condimentar q.b. o cozinhado de cumplicidades entre nós dois. E haverá melhor dependência que a cumplicidade?... Melhor amarra que a corda invisível?...»
«Não. Realmente o secreto ilícito partilhado foi a génese da nossa civilização: note-se a história de Adão e Eva, a do comer o fruto da árvore proibida do paraíso...»
«Eis exactamente a ideia... Primeiro meti-o no tabaco e escondi o caso dos pais dele. Depois dei-lhe dinheiro para o comprar quando eles o não faziam indirectamente. Mais tarde, levei-os a admitirem que Pedro fumasse tal como lhe custeassem o vício, no soltar duma amarra, no folgar da pressão, no descansar da boca afrouxando as rédeas do freio... O êxito desta tarefa, com o benefício da recompensa sexual, em breve garantiria que eu pudesse iniciar com igual efeito a fase “droga”. O primeiro capítulo do resto. Pois que nessa altura já ambos andávamos no décimo ano, e aí pelos 17 ou 18 anos cada um!»
«Quer dizer... Saídos de fresco da adolescência, não?!»
«Tal e qualmente. (Quão perverso és também!...) E as suas principais vítimas tinham sido os pais dele: haviam fraquejado e desbaratado quase todas as sua munições antivício na batalha preliminar. O que os deixara estropiados e agonizantes enquanto família. O tabaco não merecia tanto, é claro. Mas a eles, desprevenidos, pois que nunca haviam sonhado que tivessem de se debater com semelhante problema, não lhes passou pela cabeça que precisariam delas para outra batalha mais pujante: a droga. Principal elo para fechar o ciclo de morte que eu havia elaborado e instituído à volta de Pedro. A OMP era, em verdade, uma roleta viciada. E o croupier era eu... Os pais dele, os professores, os colegas, os conselheiros morais e psicológicos, não passavam de simples jogadores com fichas contadas e limitadas, e que tampouco sabiam a que (ou se) estavam a jogar!...»
«Lógico. Peculiar... Mas pouco convincente, convenhamos.»
«Se pouco convincente ou não, não sei, nem importa. Creio, ou ao contrário, não creio que só uma causa tenha um efeito. (Aliás, como afirmaste anteriormente!...) O efeito X é sempre resultante não só de uma, mas de nY de causas. Ou seja: Para Pedro se deixar convencer, sem sequer notar que estava a ser levado a isso, e começar a fumar haxixe foi necessário um empurrão coincidente (e eficaz) em várias frentes. Pelo que me diz respeito, rodeei-me de uns quantos fumadores já experimentados, que gostavam, e não lhes regateei elogios e atenções. Facilitei-lhes dinheiro e até participei em algumas queimadas, puxando fumaça. Fiz-lhes os trabalhos de casa e participações em grupos disciplinares, visto que naquele tempo serem moda os trabalhos de grupo em quase todas as disciplinas curriculares. E limpei-lhe sempre a barra, se havia caso com os pais dele, que viam em mim mais uma filha ( a filha desejada, e que não tiveram) pelo meu aprumo, interesse e notas escolares, asseio, etiqueta e delicadeza de exemplo a seguir. Além, é claro, da consumação do futuro do filho, com um casamento desde muito novos engendrado pelas duas famílias.»
«E aos pais dele, como conseguias ludibriá-los? Olha que não é fácil atentar contra o filho duma mãe-galinha!... Ainda das que eternamente chocas!...»
«Não sei se com provas, se com testes especializados, ou qualquer outra facilidade de diagnóstico, mas eles sabiam das dificuldades do filho: da fraca memória, da falta de talento, da excessiva de pendência, fraqueza de vontade e pueril carácter... e talvez por isso viam em mim a outra parte, a metade que faltava, a capaz de compensar e equilibrar as coisas. Era o exemplo que ele deveria seguir, copiar. E conheces alguém que ponha em causa ou critique os seus modelos e eleitos?!... Então, eu fiz jogo duplo. Além de me tornar no principal intermediário/intérprete entre eles e o filho, logo que Pedro se começou a afastar progressivamente deles, dando-lhes também a possibilidade de controlo e influência sobre ele, a baixo custo, alinhando nas suas maquiavélicas tendências para o educar conforme os seus cânones. Se eles queriam que ele fosse a determinado lugar ou acontecimento, então deixava-os iludirem-se de que me convenciam a lá ir, para que eu lhes levasse o filho comigo, ou para levarem o filho sob o pretexto de eu também aí estar. Como foi no caso do evento anual dos grupos e Convivas da Juventude Católica. Tornei-me seu alibi e cúmplice, pelo menos nas suas tentativas de moldar o seu objectivo de vida em orgulho de viver, o seu doce e queridinho rebento. É que eles sempre foram um fungo, um musgo, uma espécie de parasitas do filho: viviam dele, embora convencidos e convencendo todos de que o faziam para ele.»
«Mas não há aí complexidade a mais...? Não te parece isso bastante complicado para já ser compreensível a uma garota de dezasseis, dezassete anos?... Francamente! Mais velho sou eu e não o vejo lá muito claro!...»
«Eu naquela altura não compreendia o que estava a fazer. Simplesmente sabia que estava a contribuir com qualquer coisa para alcançar o que queria. Nem tinha plena consciência de que eles eram assim. Era o meu inconsciente que captava e transformava a informação útil em prática. Não carecia de compreender o quer que fosse; precisava é de reagir conforme os ventos e acertar as rotas pelo meu rumo. Era a heurística do meu programa a funcionar, nada mais. Como no judo: quando alguém nos empurra devemos aproveitar a força desse empurrão e puxar decididamente, a fim de que esse alguém seja obrigado a dar uma cambalhota por cima de nós, e ir estatelar-se no chão, nas nossas costas. E flexibilidade e sentido de oportunidade nunca me faltaram!»
«Contudo, continuo a não perceber bem como é que uns pais superprotectores abdicaram assim do seu filhinho, e logo nas tuas mãos... »
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