O Escriba e as Bonecas - Primeiro Andamento

O ESCRIBA E AS BONECAS




A) UM ESCRIBA (Piafé)



Às vezes precisamos de escrever sem dizer nada. Sem mensagem. Nenhum objectivo. Pelo simples exercício dos dedos segurando a esferográfica sobre o papel. O escorrer da tinta; a mancha que cresce com o fluir da respiração. E ao ritmo dela.
Mais que tudo, escrever é precisamente isto – um exercício físico e material para surpresa do espírito. Do gozo, da ideia, do pensamento; enfim, da tinta. Alguns há convencidos da utilidade social da escrita; outros, da sua funcionalidade enquanto terapia. A comunhão catártica (orgástica) entre quem escreve e quem lê. Mas, convenhamos, isso é pura fantasia de viciados em racionalização. Ao escrever apenas executo o ritual do escriba. Reinsiro-me na ancestralidade do rito e da partilha, na elaborada feitura dos enigmas. É plena satisfação o que consigo.
Sento-me no chão, à índio. A prancheta sobre os joelhos. E eis se não quando a esferográfica preferida à distância exacta dos olhos, o braço em ângulo ligeiramente obtuso, a bochecha da palma acariciando o papel, se desenham díspares e ordenadas as letras na consumação sintáctica da imagética. Os dedos são gomos maduros dum fruto desconhecido; polpa macia do sonho à flor do osso. Sigilo emergente de ser no gesto simples de alcançar o fim da página.
A máquina de escrever e o computador chegaram. E com ela e ele suposto era também virem mais facilidades para a escrita. Inclusive que os textos fossem melhores e os livros proliferassem com maior intensidade. Todavia, não o foi. Foi aqui principalmente que o progresso falhou: não é verdade que a melhoria e avanço tecnológico trouxeram mais e melhor literatura. Pelo contrário. É antes verdade que ela tem vindo a piorar ultimamente – chegando a tocar as raias do inadmissível. Coisas que o software não resolve!
No tempo das canetas de aparo e do papel pardo avulso houve Eças de Queirós, Camilos, Ramalho Ortigões, Alcides, Florbelas, Raul Brandões, Fernandos Pessoas, Manuéis da Fonseca, Aquilinos, Vergílios Ferreira e Ferreiras de Castro. Hoje, porque as disquetes facilitam imenso, temos escritores que todos vêem nas rubricas televisivas e banquetes oficiais, que vendem aos montões mas ninguém lê. Que confundem política com literatura e impam de cátedra nas suas vídeo-palestras!... de marketing.
Imolam-se publicamente. Querem-se bíblicos como no maior golpe de marketing da História, que foi a morte-crucificação de Jesus Cristo. Os milhões e biliões de Bíblias vendidas atestam-no. Mais de metade foram vendidas a quem nem tão-pouco sabia ler! Por outro lado, nunca houve em outro tempo como hoje tanta gente a saber ler e a comprá-la. Não obstante, nunca como agora, ela se mostrou tão inútil. Eles (os perversos) aproveitam; ela tornou-se inábil (ideologicamente) para tratar da flagelação moral, da tortura emotiva e afectiva, da usurpação da dignidade humana. Tal como a arte, a literatura, a religião monoteísta, teve o seu retrocesso graças ao progresso. Embora por motivos diferentes: a literatura porque piorou em qualidade; a religião, porque perdeu a necessidade. Ser religioso já se não vê hoje como uma necessidade humana. Tanto faz ler a Bíblia como não: o homem deixou de ser um animal religioso. Por isso, tanto faz haver computadores como não: o hábito continua a não fazer o monge, embora que também se confirme que só por vezes (muito raras, por sinal) o monge faz o hábito. O marketing é o hábito que ficou do monge que cada homem foi – reminiscências, regressões à Idade Média, filha suprema da mãe escolástica e do santo ofício da cópia. O império dos copistas. O reinado da memória ruminante. Agora importa reerguer a escrita, subtraí-la ao marketing e à religiosidade, ao progresso tecnológico, e voltar a dá-la, devolvê-la ao escriba.
Este conto, meus amigos, que não tem aspirações nem ambições de Top editorial, foi escrito como os homens os escreviam desde o princípio dos alfabetos, para não ser esquecido, sem nada na mão, nada na manga, mas apenas com a dedicação e entrega dum escriba. A força inocente das palavras que desbravam o sonho e adensam as visões. Que solidificam o crer.
Fala de nada e espera coisa nenhuma. Também sem o pretexto ou qualquer outro motivo além da escrita. Da tinta sobre o papel branco. Do gosto declinante dos dedos alongando o ser. Do fluir desimpedido e nu da inocência dos gestos que nada querem significar. Despojados. Libertos até de quem os comete.
Era uma vez já não comove ninguém. Nem a mim, que sou antiquado e rebelde nos contornos, como tudo o que é romântico. Pinga-saudade por incapacidade e inaptidão ao presente e porvir. Falho de emoções e sentimentos que não nasçam da repetição; bloqueado pelo medo de vir a ser.
Esta é a história do conto que nasceu na primeira letra da primeira linha e morreu na última letra da última linha, cujo cadáver se multiplicou para que os leitores pudessem testemunhar a sua existência. Efémera. Nem mais. É o meu cadáver que estais soletrando. É ele que ficou de mim quando fui passado à máquina, e em seguida policopiado. Eu sou um cadáver. E como tal federei depois; que nem os abutres consentirão o meu cheiro. Lamento. Por vós, é claro. Que por mim nada há que lamentar. Quem se cumpre, cumpre-se. O inverso da ordem não é, obrigatoriamente, desordem.
O importante verdadeiramente importante é a esferográfica. Ela tem que deslizar e deixar um rasto na quantidade de tinta que queremos e gostamos de ver sobre o papel. Eu, por exemplo, gosto delas já em meio uso, que é quando têm a esfera bem polida e lubrificada por tinta mole. Faço jogos com elas. Nada me dá mais prazer do que conseguir fazer coincidir o fim duma esferográfica com o fim dum texto, ou até o fim dum caderno. O terminar de tripla, podendo ser! Isto porque nunca é o enredo quem decide se um conto irá ter dez páginas ou um capítulo vinte. Um capítulo pode ter um caderno, dois cadernos, três cadernos; jamais caderno e meio ou dois cadernos e um quarto. Um conto, a mesmíssima coisa. Quando me proponho a escrever sobre um tema decido também se é tema que merece um caderno, dois cadernos ou três cadernos. Depois escolho a esferográfica com que executá-lo. Uma em que, preferencialmente, cujo fim coincida com as últimas palavras da última página.
Há uma de que gosto extraordinariamente. É daquelas recarregáveis. Com mola e maquinismo de bico para dentro, bico para fora. As cargas são metálicas, duma liga qualquer com cobre, com pouquíssima tinta por carga, e que costumam durar a “pura dimensão” dum caderno. (Tempo de vida: um caderno. Vejam como também o tempo se pode medir por espaço-folha. Não dura uma hora, duas horas, três: dura um caderno. Longevidade: X metros.) Verde. No bojo ainda se notam algumas letras da publicidade que exibia. Mas já se não percebe o que propagandeava. De plástico e metal cromado na cintura, base do bico, alça de prender ao bolso e botão da mola. Made in USA. Viajada, a figurona! É com ela que estou a escrever. Não lhe sentem a vaidade? Ela sabe de quem estamos a falar.
As cargas, compro-as às dúzias, numa das papelarias de Casal Parado, a que está (eternamente) para trespasse. Para fechar, provavelmente, ou mudar de ramo, dado que raro se lá vai comprar além duns míseros envelopes, ou postais de Boas Festas e Parabéns, dos antigos, tipo anos 50/60. Ou bijuteria da Carochinha, modelo small is beautiful e plásticos hippies. Arte Pop. Pop ou coisa de arremedar por aí. Ainda a ostentar um reclame luminoso dos bons: vidro fosco branco em caixa oval horizontal, com os dizeres em relevo pintados a azul e vermelho. Nada de néon. Mas uma lâmpada fosforescente por dentro. Os cadernos são a vinte escudos e ter-lhes-iam custado, ao tempo, prà’i vinte e cinco tostões – uma caravela, das pequeninas. É negócio de miles por cento, abone-se. Mas desde quando estão comprados e o capital empatado?
Na escrita é permitido ouvir com os olhos. Ler é isso. É escutar, mas com um órgão que serve para ver. É a criação de mais um sentido (virtual). É uma multiplicação de capacidades. E é sempre da escrita que falo quando escrevo. De como tal posição não serve para o fazer ou destoutra ser a ideal. Por exemplo, nunca se deve escrever a uma mesa ou a uma secretária: elas obrigam a apoiarmos os cotovelos e/ou o braço, tirando a mobilidade ao pul­so. Daí os calos que alguns ganham nos dedos! Do ter que segurar, pressionar, inclinar e mover a esferográfica só com eles, quando devemos fazê-lo com a ajuda deles. Além de que obriga a coluna a uma posição de pega de touros e os olhos a cair sobre o papel, quando muito simplesmente deveriam estar a olhar para ele. Não manter as distâncias regulamentares é, como noutros jogos, v. g. futebol ou ténis, algo punível e sujeito a sanção, que desfavorece a boa condução na prática desportiva e inferioriza quem comete tamanhos deslizes.
Quanto ao papel... Eis outro pormenor técnico que importa pensar. Comigo, exceptuando a obrigatoriedade de ser quadri­culado, é uma questão mais económica do que de qualidade. Desde que não possua nervuras e seja barato, é quanto basta. O que interessa é que nunca falte! Gosto igualmente do de tipo almaço de 25 linhas, em cadernos de dez folhas a quatro páginas cada. Aquelas onde no passado se faziam as célebres provas escritas da primária. Mas é produto que raramente encontro. E quando tal sucede, é uma festa de sem dormir e sem comer, por mero esque­cimento!...
Em resumo: não há quem escreva bem sem papel quadriculado e esferográfica a três quartos. Ou sem prancheta. Que tudo o mais são dissabores de quem se autotortura.
Se a esferográfica foi oferecida – como é o caso - , também ajuda muito. Tem valor acrescentado. A amizade ainda não é um imposto. E o que ela acrescenta a um escrito pode ter uma influ­ência deveras positiva. É o sal da letra. O tempero que puxa à bebida. Porque de copo aqui, copo ali, se enche a taça da fertilidade. Se alcançam os cumes da glória. Se não acreditam... Então desconhecem por completo porque foram quem foram, os Hemingways e Pessoas da nossa Literatura Universal.
Mas não é de glória e imortalidade que aqui se fala. É de escrita. É do escrever sem motivo nem causa; sem pretexto, nem tese. É do. É gesto. É prática. É. É dissolução, antes de ser solução. Fumo que nasce no arder de coisa nenhuma. Que nem poluente é. Nem fumo se nota. É o rasgar do papel de fotografia antes da gravação, revelação, fixação. Algo que antecede o bom e o mau, o bonito e o feio, o floreado estilístico e o rude esbulhar da ganga. Do sem jeito de ser assim. Porque o importante e imprescindível é gratuito.
Mas também não é o escrever para queimar ou deitar fora. Nem para exibir como peça ou ganha-pão. Ou de confessar e expor o imo aos olhos da censura ou do perdão. Não. É o de até acabar a esferográfica e o caderno que se começaram. É o de prender o tempo e modo com o registo do prazer. É um exercício de gozometria.
Há quem escreva por urgência vital. Para viver. Ou para não morrer. Como tábua de salvação. Mas como bóia já tenho a tábua da prancheta. Portanto, também não é por tal, descansem.
Outros há que o façam por e como staff de enroupamento social. Que o usem como traje de jorna ou de ócio. De fato domingueiro de ir ver a Deus. Mas igualmente esse argumento não cabe aqui. Porque não o faço para definir um estatuto ou papel entre os demais. Faço-o nem porque estou só, nem porque estou acompanhado; faço-o, nem para me apagar ou para me afirmar. Faço-o apesar disso.
Ainda outros há que cientificamente pretendem fazê-lo como laboratório de ensaio para a sua filosofia de vida. Para modificar, testar, comparar, verificar, ou comprovar, ou até para confrontar a vida com a sua imagem (suposição) idealizada da vida. Esboço e utopia. Um “eu sou assim, penso assado, tenho o passado cozido, mas quero um futuro frito”. Ou para apurar estatisticamente quantos alfabetizados há a terem uma igual visão das coisas, da natureza, dos outros, dos animais, do divino e de si próprios. Em pretensa alteração do discurso literário para discurso político. Ou sociológico. Contudo não enveredei por aí – o que é que querem?! Nem vejo por que motivo argumentaria em semelhança. A minha filosofia de vida nem chega a ser como a daqueles que afirmam não ter filosofia de vida. Dos que se bastam em pensar duma pedra que é uma pedra. Duma flor que é uma flor. Duma ovelha que é uma ovelha. E que daí não vem mal ao mundo. Ou que estar aqui é uma coincidência entre o espaço e o quando.
Se escrevo ao sábado não é porque seja sábado, nem por não ser domingo ou apesar de ser sábado... ou ainda que seja sábado. Escrevo simplesmente sem notar que dia é.
Nem por estar sol, ou a chover. Ou ser manhã, ou tarde, ou noite. Ou antes de amanhã. Ou depois de ontem. Escrevo porque o caderno ainda não está escrito, e a esferográfica acabada. Porque querem e podem cumprir-se se eu continuar a escrever. Se o fizer como o faço. Fazendo-o.
Também não é para experimentar o valor das metáforas, ou a tonalidade das metonímias, ou apreciar o efeito desta ou daquela ironia. Tampouco a vivacidade daquela interrogação ou a pujança apelativa daqueloutra anamenese. É para fomentar heurística. Para praticá-la, quanto muito. Ou sofrê-la. Já alguma vez descobriste em ti características e atitudes que odeias nos outros? Tendências esquisitas? Ou potencialidades geniais de que te desconhecias portador? Ou conhecimentos que ignoravas possuir? Tudo riscos que corre quem a excita ou se deixa entusiasmar por ela, a ciência ou a técnica de descobrir coisas, e a primeira finalidade da narrativa, no sentido de que ela procura habilitar os seus entusiastas a encontrarem por si mesmos o verdadeiro significado da existência – a heurística, enquanto programa, software das máquinas de quotidiano que cada um de nós é. Ou pretende ser. Ou se sujeita. Se admite – antes de se demitir ou abdicar de ser, sendo-o.
Saiba-se pois, que escrevo para contrariar a ideia que os portugueses têm da escrita. Principalmente da maioria, chamada camada popular, deles. E de alguns outros fundamentalistas da economia. Dos adoradores do santo escudo-dólar-peseta-euro-libra-etc., desde que dê para fazer figura e atiçar invejas. Compitas. Caldeiradas.
É o artesanato da denúncia. Que é crime e erro que ainda se não pode cometer, não obstante as rábulas dos papagaios da liberdade. Por exemplo, ontem no café travei o seguinte diálogo com um (des)conhecido de vista, do frequentar o mesmo estabelecimento em idênticas horas que eu.
«Boa tarde. É servido?»
«Não, obrigado. Já tomei o meu. É logo que chego... Bem quentinho!»
«Hum!...»
«Se não é indiscrição... O que é que o senhor faz?»
«Escrevo.»
«Não; eu estou a perguntar em que é que trabalha?!»
Ou ainda outro, mas este que ouvi do minigravador que propositadamente deixara ligado no active voice, em cima da mesa da esplanada, ladeada à esquerda por outra a que se sentavam duas senhoras-finas-de-bem, enquanto fui ao balcão comprar tabaco.
«Quem será este fulano?!...»
«Vem aqui todos os dias. Deve morar perto. Sempre com os livros debaixo do nariz!»
«É. Mas não mora perto, não. Nunca o vi falar com ninguém! Lê; só ler. Ou escreve...»
«Aqui há coisa!... Se calhar foi a família que o recambiou pra cá... Por causa da droga. Parece que esses drogados têm tal mania!»
«Pois é. Em calhando já por lerem e escreverem tanto, é que deram em se drogar!...»
«Pschiu! Cala-te, que ele vem aí.»
Actualmente a denúncia é artesanal. É tão artesanato como a louça das Caldas, os tapetes de Arraiolos, as bilhas de Nisa. Mas artesanato que se não deixa obrigar à representação, e a figurar, retratar, por aqueles que dia a dia o destruem e amarfanham. O repudiam. O inutilizam. O vilipendiam. E o compram, porque uns quantos livros na estante do móvel da sala fazem figura, ficam bem, dão aspecto, e pontuam perante as visitas. Afinal, justamente como os bibelots de artesanato!
O bem-bom-doce-mel que eu queria realmente, era poder viver do escrever histórias, vendendo cada uma por seu caderninho manuscrito. Assinados com nome de verdade ao fim. Todas diferentes, embora que tão parecidas no nascer e no partir. No a página tantas do crescimento, das primeiras letras, do diploma de curso, da primeira bebedeira paga com o próprio ordenado, à custa do salário suado, saída do bolso onde caro sacrifício a forçou a entrar. Tudo coisas impossíveis para quem sonha mais do que confia. E confia mais do que à liberdade é permitido. Sob o risco de lhe ser lancetada, confiscada, subtraída. Que o sonho é a hipoteca da liberdade. E esta, a linha que separa a escravatura da dignidade e... integridade. Da igualdade. Da humanidade e da beleza. Da escrita.
Há quem escreva porque confundiu a Feira do Livro com a Feira das Vaidades. Que o faça para editar, às dezenas de milhar, com capas caras e bonitas, encadernações de ponto rematado, sessões de autógrafos, fotografias nos diários, palmadas nas costas. Ou para impressionar o/a bonitão/ona que nunca lhes ligou peva. Mas eu não. Nunca. Eu faço-o porque quero acabar o caderno com esta esferográfica que tenho na mão. E para que o meu prazer seja testemunhado a quantos frígidas e impotentes houver, incrédulos capazes de difamar a escrita e difamar quem a pratique.
São comuns entre os televiciados os hipócritas e os moralistas. Fundamentais da ociosidade mesquinha, e da inveja compadecida e narcísica. Os racionalistas da ração.
É mentira que o cinema, vídeo e televisão prejudicaram a literatura. Se o fizeram, aliás, foi tanto quanto o prejudicou Gutenberg e a imprensa. O jornalismo de jornal (escrito). Promoveram-na ainda. Divulgaram-na. Custearam-na. Folhetiniza­ram-na. O que a prejudicou foi a sociedade de consumo ser uma consequência directa da sociedade de produção; e o indivíduo humano um produto de ambas. Mas que tem os seus dias contados enquanto tal. Enquanto não detentor principal das suas carac­terísticas genéticas, mas intérprete do adquirido condicionado. Ou se não empenhe em recuperar-se para a natureza e resultado natural duma evolução físico-afectiva relacional com os universos bioló­gico e cultural, próprios dum animal bípede deslumbrável. Porque foi no sermos capazes de nos deslumbrar que nos vimos diferentes. Superiores. Em arrebatamento e espanto. Em deslumbração.
Dividir, espalhar, compor, decorar o tempo pelo espaço, a tinta pela página, é tarefa para inocências escrupulosas. O que acontece ao alto da folha não obriga especialmente que anteceda no tempo o que acontece ao fundo. Embora quase sempre assim seja, admita-se; principalmente nos diálogos. Porque há truques de invertê-los ou combiná-los, antecipações e remissões ao passado, flashbacks e replays, se inventaram modos e estilos. Ser barroco é colocar tanta bijuteria e floreado, que ao olharmos, o móvel deixou de existir. É maquilhar de tal forma o papel, que ao lê-lo, consigamos lá encontrar tudo menos o texto, o comunicado. Já ser realista é manchar a tal ponto a página, com aspas e sublinhados, notas e referências, reescrever com itálicos ou inúmeras vezes por cima, acentuar e desnivelar, que ao olhá-lo só é perceptível o borrão, a mancha disforme da ausência de texto. Mas o escriba poupa na tinta. Sabe que para aquele papel todo só tem aquela esferográfica. Nem mais, nem menos um fio de tinta. Daí que o tempo também seja medido pela ampulheta da carga. Embora tenha o “eu” prenhe de ser, nunca exerce o segredo do conta-peso-e-medida, mas o apanágio do grafismo por orçamento. O tantas páginas por esferográfica. O “um conto por caderno”. Na feitura contínua do desenho do mapa interior. Imo. O.
Signo do espelho? Narciso sublimado? Contemplação perpétua, com registo gráfico, das peripécias de relacionamento entre os meus fantasmas? Não. Mil vezes não. Gostava de ter podido falar com o Pessoa acerca disto. Ele deveria ter algumas palavrinhas certas a propósito. E com conhecimento de causa. (Hãn-hãn-hãn-hãn-hãn-hãn-ãn-ãn-nn-n!!...)
O único limite para o niilismo é a ponta do nariz. É o Cabo da Roca do corpo. O ponto mais a ocidente do eu. Da realidade. Da consciência. Portanto, a actividade do escriba e do seu mundo, o seu ego e a sua norma, a sua ética, a sua cabra, porque também assente na refutação da ideia duma verdade moral estática e absoluta, derivada duma hierarquia de valores, em cuja noção de valor está uma incongruência teórico-prática, mas que não se deixa inclusive apontar e afinar pelo diapasão do niilista. Porque a sua prescrição, o seu relato de envolvido condenado a expirar, não é um fim em si mesmo, mas outrossim uma consequência imediata do acto, que sempre leva em si as características e ânimos, os cunhos e marcas de quem o pratica. E por arrastamento.
Tudo isto, não obstante, seria mais fácil, se pudesse acercar-me das pessoas e dizer-lhes: «olá. Sou escriba». E elas aceitassem o facto como acatam que o primo seja pedreiro, a vizinha arquitecta, a amante prostituta ou o cunhado astronauta. Como qualquer mortal. Mas não. Se chegasse à repartição de finanças para me colectar na profissão liberal de escriba, diriam:
«Volte amanhã – se fosse sexta-feira –, que os impressos para essa profissão esgotaram.»
E depois de eu haver saído porta fora, comentariam entre eles:
«O que é que ele disse que era?»
«Louco. Ou parvo. Ou idiota. Não percebi direito.»
«Mas ele falou noutra coisa...»
«Ora! Que importa o que é que ele disse! Que importa o que disse um louco?!»
Aliás, ninguém crê que seja possível escrever sem ser para passar cheques, enviar cartas, mas somente aonde não haja telefone/telex/fax, requerer um subsídio, pedir um deferimento, uma minuta, uma autorização para o uso ou concessão de. Quanto mais haver um escriba?! Sinceramente! Maneirem a coisa!... há que tirar o ursinho da piscina. Molhar o pêlo a animais de peluche dá pneumonia brava!
Ao autor deixou de competir a definição dos seres. Animados ou inanimados. As artes plásticas fazem-no trinta vezes melhor. Compete-lhe agora indefini-las. Que é na indefinição que consiste o baralhamento de voltar a dar (cartas). De continuar o jogo.
Sentem-se comigo. No chão. As pernas cruzadas; a prancheta sobre elas. Respirem fundo, mas não confundam a pose com mais uma asana de yoga. Que é posição de gente. Sem obrigações contorcionistas.
Não pretendam. Queiram sem fingir. Esqueçam as gravuras sobre a vida no Antigo Egipto. Os supostos lacaios do faraó. Ou os contabilistas do Império. Uma tábua basta-vos. Uma. A.
A esferográfica deixou de ser a câmara de filmar dos pobres. E a literatura, o esboço do filme. O guião de empréstimo. O croquis. Assim como o fim do kunstlerroman. A sentença de morte, o golpe de misericórdia, para a historieta da criança com temperamento artístico e delicado, e da sua luta ou incapacidade para se libertar da incompreensão e das atitudes burguesas da família, tal como das suas relações de juventude. A vida e a formação do autor, desde o berço até ao caixão, com passagem abreviada pelas maternidades possíveis, interessa mais aos técnicos especialistas em saúde mental, do que propriamente ao leitor desimpressionado. E por arrasto, igual destino para o kitsch!... O poster. O postal ilustrado. O mícroma.
Aos imperadores do dogma, do postulado, do axioma, concedemos impressões de verdade ou de razão. Que ambas são más companhias para quem ama. Esse precisa de ilusão. De fantasia. A verdade porque nos fere quando não somos os melhores de entre os bons. A razão que nos cega, por alcançá-la e se alcançada. Queremos a frente livre para poder respirar, erguendo o peito e os olhos na distância pontual dum horizonte em que se não participa. O horizonte quer-se longínquo. Porque quanto mais distante ele for, mais extenso e pleno é o nosso campo (de visão). E à herdade de cada um corresponde a dimensão própria da alma.
Façamos as contas. O balanço. Estamos a chegar ao fim do caderninho. O tempo de antena está a findar. Quites.
Não nos devemos nada. Porque nada nos prometemos, nada esperámos. Nem epílogo cínico ou moralista. Fundamental. Expirar como iniciámos é tudo quanto ainda nos podemos dar. Sem dor, no parto ou na morte seríamos todos muito mais parecidos ou desejados. Que é a dor de chegar? A cruel certeza de haver partido. O fim duvidoso indeciso que somente crê em consumações. Chegar é o exílio irreversível do partir; a expulsão do sair, como nas pastas de dentes.
Dizem que pode trazer alegria. Questão de pura contabilidade. Quando o deve e o haver estão no mesmo quantitativo não vejo como poder afirmar que a situação líquida é positiva. Ou negativa. Lá porque o oco está fechado, não quer dizer que possamos concluir que ali está algo cheio de coisa nenhuma. O vácuo é o vazio. E o ser, a embalagem que o limita. (Mas...) Se se quiser juntar um grande monte de terra, a maneira mais fácil é cavar-se um buraco (bem fundo).


(Ilustrações: Fotos de Pedro Alcobia da Cruz)

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