Dos Seguidores da Estrela


Ismail Kadaré


"É preciso esconder a profundidade[JC1] ",
escreveu Hofmannsthal. "Onde? À superfície."
[JC2]


O albanês Ismail Kadaré, batendo na recta final a sua mais directa e colossal concorrência (Milan Kundera, Ian McEwan e AntonioTabucchi), venceu – quer dizer: ganhou – o Prémio de Letras Príncipe das Astúrias, laureado esse, precisamente, que depois do Nobel é o mais importante galardão literário no actual universo das línguas românicas, trazendo para a ribalta o subgénero da literatura política e pondo na ordem do dia aquela faceta da ficção que mais se preocupa – e até intervém nela! – com a realidade sócio-económica, religiosa e institucional, das pátrias, das regiões ou dos continentes, com uma trintena de novelas escritas, maioritariamente (ainda) na Albânia e sobre o sistema político albanês que era tão comunista, mas tão comunista, que levou a República Popular da Albânia a abandonar o Pacto de Varsóvia, numa época em que seria impensável e imprevisível o desfalecimento deste, que aliás culminou consequentemente com a derradeira queda do Muro de Berlim, que vinculava a divisão europeia conforme os postulados da Guerra Fria, porque – como terá afirmado o camarada Mehemet Shehu, [JC3] no seu discurso à Assembleia Popular, no dia 12 de Setembro de 1968, denunciando o conluio sovieto-americano e as ignóbeis manobras do social-imperialismo russo – «a União Soviética se convertera na principal força da contra-revolução internacional[JC4]
Isto é,
[1] não obstante referirem-se à literatura como uma arte em vias de extinção, excepto quando dela se pode partir para produções multimédia, o que ninguém pode duvidar é que ainda há alguns prémios que a põem na ordem do dia e nos noticiários, não por aquilo que ela é, senão veja-se o exemplo de Caim, de José Saramago, e da polémica e melindres religiosos que suscitou, e Ismail com o seu O Acidente revelou a fragilidade da crise, somando à apetência literária dos escaparates a qualidade de uma escrita da qual nos arredámos desde Ferreira de Castro[JC5] , que teve a virtude de escrever sobre política, sem fazer política, que é um dos tais abacaxis que suscita enredos maiores que o enredo da narrativa propriamente dita, a que não se pode fugir (impunemente), embora tenha exercido o cargo de deputado da Assembleia Popular de Tirana, entre 1970 e 1982, exactamente oito anos antes de ter obtido o asilo político em Paris, em Outubro de 1990, onde vive desde então em vizinhança com a Sorbone e o Jardim do Luxemburgo, resistindo assim até aos 54 anos a uma dose excessiva de ditadura, que fulminaria qualquer intelectual por mais light que fosse, mas não só, acrescentando-lhe mais 20 anos de resistência à democracia que, como todos sabemos, também não nenhuma pêra doce, sobretudo para quem pretende usar algum do tutano que lhe preenche a caixa dos pirolitos.
Com fama de taciturno insociável, trajando a sempiterna gabardina castanha, é, porém, um tímido sobrevivente à desilusão e motivo de esperança ante o mistério repressivo do estalinismo de segunda geração, incansável revisor da sua própria obra, que revisita e altera regularmente, sobretudo nas edições de língua albanesa, revendo continuamente as suas novelas sob a exigente bitola de um critério literário, para quem a literatura se convertera numa segunda pátria, jamais se isolou e despojou do contexto sócio-político nem do mundo que o rodeia, mas a quem democracia francesa nem a ditadura albanesa modificaram a sua maneira de escrever,
de escritor de pedra que cinzela as palavras[JC6] , e que afirma de a sua arte ser uma arte mágica[JC7] , conscien­te das suas inequívocas origens ou proveniência balcânica, sabe contudo e por isso mesmo que nunca deixarão de descortinar conotações políticas em cada uma das suas palavras, novelas ou obra, por mais que insista em glosar outras demandas que vão para lá do confronto ideológico, bem como da rotulagem que lhe aplicaram antes e depois do seu exílio em Paris.
Expatriado dessa Albânia que em pouco tempo sofreu três períodos históricos totalitários de graves consequências no inconsciente colectivo (:o império otomano, a ocupação nazi-mussoliniana e o regime comunista de Enver Hoxha), e desenraizado, senão suspeito de ligações "subterrâneas" à ditadura que o expulsara,
nessa França da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, [JC8] que também sabe ser madrasta e apenas mãe para quem, a fala sem sotaque, e fluentemente a escreve, é porém a sua criação a prova incontestável do que ele mesmo afirma, reiterando em entrevista a Ruben Amón[JC9] , que «não há boa literatura que provenha da felicidade e bonomia. É a dor, o sofrimento e até o drama que nos inspiram e atraem. Não para nos deleitarmos com o mal e o pranto, mas sim para superá-los através da palavra compartilhada», como decorrerá noutras artes, e com outros criadores, nos quais se não verifica uma sublimação do mal mas antes uma exorcização superadora, coisa quiçá diferentérrima, que nos impõe a evidência de não haver no mundo, desde a inovação da escrita, qualquer grande obra literária com final simplesmente feliz sem cheirar/tresandar a lamechismo hipócrita.
Participou e fez parte das principais instituições políticas albanesas, tendo até sido deputado, e esteve à frente da União de Escritores, assim como beneficiou – pelo menos da fama ninguém o livra, consequência da sua ligação e amizade com o
escritor Bashkim Shehu [JC10] – da protecção pessoal do ditador, sem nunca deixar de ser um escritor não alinhado com as directrizes do Partido, que não era dissidente nem porta-voz do regime, um tipo em que se não podia confiar, porque escrevia e pensava livremente, coisa perigosa!, sem se ater à cartilha do realismo socialista, nem às necessidades de propaganda do Partido do Trabalho, esfumando-se e diluindo-se sorrateiramente entre ódios e campanhas difamatórias, deveras profícuas e eficazes, na cosmopolita Tirana, estabelecendo uma relação de amor-ódio tanto com os seus conterrâneos comunistas como com a burguesia albanesa exilada, agradando e desagradando a gregos e troianos por igual medida, numa devastação sintomática do exacerbado corporativismo do século passado.
Muçulmano que bebe álcool e como carne de porco, sensível e adepto do aconchego familiar, admirador de Esquilo, Cervantes, Dante e Shakespeare, como a quase totalidade dos intelectuais europeus ou ocidentais, sofisticado e perfeccionista, detentor de um estilo depurado, ruminante, que intenta a cada revisão lapidar os seus textos sem, contudo, deixar perder qualquer particularidade essencial da sua “profunda originalidade” anterior, margens intertextuais muito próximas do veio de Joyce com características falkinianas (mas sem remorsos), cinéfilo e cuja imagética raia, não raramente, embora seja mais notória em alguns títulos que noutros, a tecitura do argumento fílmico, tanto que, aliás, inspirou diversas adaptações cinematográficas, como O General do Exército Morto (
filme de Luciano Tovoli, com Marcello Mastroianni e Anouk Aimée), Abril Quebrado (filme de Walter Salles, com conversão da trama para ambiente brasileiro) e Uma Questão de Loucura (aguasdeceniza.blogspot.com/2009_03_01_archive...) é, porém, indubitável que a alma da sua escrita – ou dinâmica, para quem sente pejo em atribuir alma a criações não viventes, no sentido restrito do termo –, porque toda a sua obra gira à volta da fascinante e terrível história do seu país, sendo de natureza política, onde palpita a constante aspiração a um outro mundo melhor em condições e respeito pelos Direitos Humanos, está enraizada na ancestralidade hermética da sua cidade natal – a misteriosa Gjirokastrta.
Precisamente a mesma em que Enver Hoxha nascera, e exactamente na mesma rua, embora em datas díspares, berço comum a Ismail, plano de fundo que terá influenciado a que um dos personagens (negras) marcantes de várias novelas fosse o ditador, como no caso de
O Sucessor[L11] , O Concerto [L12] e O Grande Inverno[L13] , onde, como nos demais livros reflecte sobre as dificuldades com que um escritor se depara dentro de uma prisão livre semelhante a qualquer país do género da Albânia desde 1940 a 1990, pelo menos.

O PALÁCIO DOS SONHOS

Narrativa alegórica de inspiração kafkiana, em que o poder ditatorial, não satisfeito por controlar ferreamente as mentes e mentalidades dos súbditos do império, destina e tem um palácio, composto por diversas oficinas, departamentos e arquivos, para investigar os sonhos desses súbditos, último reduto da liberdade individual, a fim de catalogá-los conforme a sua carga contestária e grau de perigosidade.
"Permaneceu assim uns momentos, dubitativo, enquanto a caneta lhe ia pesando na mão, até que já baixada, ela pousou no papel e, em vez da palavra Albânia, inscreveu: Lá longe." – página 179.

TRÊS CANTOS FÚNEBRES

Pequena narrativa que incide sobre os paradoxos de uma região reclamada por sérvios e albaneses, e que foi conquistada pelos turcos no século XIV.

A PIRÂMIDE

(Primeiro parágrafo de A Pirâmide:)
«Quando numa manhã de fim de Outono, o novo faraó, Quéops, que subira ao trono apenas há alguns meses, fez saber que renunciaria a mandar construir a sua pirâmide, os que o ouviram, o astrólogo do palácio, alguns ministros mais próximos, o velho conselheiro Ouserkaf e o grande sacerdote Hemiounou, que desempenhava também o papel de arquitecto-mor do Egipto, sentiram-se perplexos como lhes tivessem anunciado uma catástrofe.»
Todavia, a pirâmide, que cabia a cada faraó, como era tradição, subiu até ao céu, cheia de segredos e labirintos, como se supunha, e os operários (sobreviventes) que nela trabalharam e congeminaram as laboriosas passagens intransponíveis às forças do mal, diligentes e compenetrados da grandeza maior da sua missão, e a que foram chamados, assim que dela saíram, por terminada estar, encontraram então a (merecida?) recompensa na ponta das armas dos soldados que os esperavam no exterior. Do que aliás, curiosidades regimentais se dirá serem, se imagina ser o fim almejado para quem suspeita que a justiça divina assenta de luva e tem o seu veículo de excelência naquele que possui o ceptro do poder faraónico…


O Acidente, do albanês Kadaré sob inspiração albigense, provençal e cavalheiresca: http://www.elcultural.es/version_papel/LETRAS/26021/El_accidente

Este Acidente é o registo de uma, mais uma, etapa na trajectória histórica desse país periférico, denominado pelo autor como o marco de linda ou limítrofe desse outro "grande país que dá pelo nome de Europa", que é a Albânia, terra sofrida e tiranizada, que após séculos de romanização (pouco contemplativa) foi ocupada pelo império otomano até 1912, data da sua independência, que afinal pouco veio a durar, dado ter sofrido a patada protectora, paternalista, do Pacto de Varsóvia em 1955, sob a égide da Lei número 2063, de 28 de Maio de 1955, consequente à ratificação do pacto de amizade, colaboração e ajuda mútua, firmado em 14 de Maio desse ano, em Varsóvia, entre a República Popular da Bulgária, a República Popular da Hungria, a República Democrata Alemã, a República Popular da Polónia, a República Popular da Roménia, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a República Socialista Checoslovaca.
Nessa diatribe histórica de um povo em luta constante, de séculos e séculos, eis que na contemporaneidade vai ter que continuar a travá-la, primeiro contra a URSS e depois contra a China, e finalmente, contra si mesma, contra o seu próprio regime, encarnado no ditador Enver Hoxha, o momento preciso em que se situa o fulcro de toda a acção deste romance, aquele acidente invulgar que vai alterar o curso da História, é certo, que é quando Besfort Y e Romena St., ele e ela albaneses a viverem na Europa Central, se apaixonam, provocando o impensável, senão trágico desfecho, de um processo cívico na dialéctica do cronos, o embate brutal do amor, que não tem nada de épico nem heróico, mas antes pelo contrario envereda pela ternura e afectos domésticos do comezinho quotidiano. Eis o travo quixotesco desta grande novela de cavalaria que é a História (de uma nação por exemplo). "O curioso impertinente" que vai sufragar o amor para lá do erotismo, seja ele em versão lesbiana – com Liza Bloom –, seja ele conforme a natureza dos géneros e índole guerreira, dominadora, de um(a) sobre o/a outro(a), pleno de capitulações e vitórias, as mais delas com enormes doses de perversidade tirânica, em multifacetados registos, desde a narração omnisciente às elipses incendiárias (insights), ao relato fragmentado ou ao discorrer introspectivo e filosófico, pois tudo vale para a reconstrução dessa fatalidade trágica que é o amor, num mundo que apenas conhece a guerra, o detonar do afecto e ternura entre personagens que deviam ser acérrimos oponentes e inimigos fatais.

(Abril Despedaçado
Os tambores da chuva
[O castelo])
[1] Ilustrações: Capa dos livros O Acidente, O Palácio dos Sonhos e A Pirâmide, cartão O Leitor e fotografia de Kadaré

[JC1] Enquanto oximoro, ou oximóron, resulta plenamente e até nos esquecemos que uma das características essenciais daquilo que é profundo é estar já de si inacessível à vista, oculto nos altos fundos.

[JC2] A citação reporta-me a Oscar Wild, embora não me lembre bem em que livro a encontrei, se no prefácio de O Declínio da Mentira, se no de O Crime de Lord Arthur Savile, se no De Profundis, ou outro qualquer, posto que certo é não ser dele mas lhe andar ligada por motivos mais ou menos obscuros.

[JC3] Mão direita do ditador Enver Hoxha.

[JC4] Cadernos Horizonte Vermelho nº 6, A Albânia Abandona o Pacto de Varsóvia, edição de Isabel Barreira, em Lisboa, Outubro de 1976.

[JC5] Por exemplo, A Curva da Estrada

[JC6] Como terão sido diversos escritores portugueses, entre os quais podemos sem sombra de dúvida mencionar Aquilino Ribeiro, Miguel Torga ou, mais recentemente, Eugénio de Andrade.

[JC7] «La literatura es mágica. (...) Mi literatura es mágica, essencialmente mágica», in El Cultural, de 23.10.2009.

[JC8] Valores ideais da Revolução Francesa.

[JC9] www.elcultural.es

[JC10] Filho de Enver Hoxha.

[L11]Reportagem sobre a morte, nomeadamente o suicídio, que foi o que sucedeu a Mehmet Shehu

[L12]Tema demarcadamente ligado à coreografia política

[L13]Cujo tema principal assenta na ruptura da Albânia com a União Soviética (1961), com a Yoguslávia (1948) e com a China (1978).

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