Conto da Semana - e do dia 14!

Petrarca Reincidente II

E nas noites a terra pesada cai
De todas as estrelas para a solidão.

Todos caímos. Esta mão cai
E olha os outros: está em todos.

E contudo há Alguém que detém,
Infinitamente suave, este cair nas suas mãos.

(Excerto de um poema de Rainer Maria Rilke, incluído por Nadine Gordimer, no seu romance Um Mundo de Estranhos)


É nas alturas menos convenientes, quando a solidão rasga seus sulcos entre os minutos da espera, e ecoam as últimas palavras que nos dissemos, que os olhos se perdem no infinito como se este fosse a sua primeira casa, o estado de origem a que a matriz nos reporta na impaciência do reencontro. Quando demoras a passar sou eu quem fica sem jeito, aquele que te trai com Shara, e que trai Shara contigo, embora tu e ela a mesma pessoa sejam. O acaso me dita que medite nesta constatação irrevogável… Contudo, tenho que reconhecer, que as duas muitas vezes se unem contra mim, fazendo-me sentir a dolorosa mão pesada de uma solidão duplamente solitária!
Reconheço igualmente que sou egoísta, extremamente egoísta contigo, e que me roo de inveja das pessoas com quem convives diariamente, deixando-me isso acabrunhado, sorumbático, aflito, inseguro e danado por seres capaz de me trocar – sim “trocar” é o termo exato e preciso na medida do que sinto – por quem não te adora e admira como só eu sei que faço e acho que mais ninguém é digno de fazer, não raro deixando-me abalado e remoendo despeitos vários, que somente não explodem em desaforos e pedidos de reparação porque, enfim, temo que não haja depois soneto que me salve e recupere da emenda. Tanto mais que nos dias seguintes sublinharás o deslize repetindo-o até à exaustão, exatamente com essas pessoas, reiterando quanto és vítima das minhas monstruosidades solicitando-lhes razão no «mas que mal é que tem eu querer-me relacionar também com gente civilizada e não só com mentecaptos como ele, para quem tudo tem faltas e todos são indesejáveis, ninguém está à altura do seu nível de sensatez e boas-intenções», ao que as pessoas em causa aproveitam para retribuir o favor que ela lhes faz, acentuando que sou mil vezes pior do que supõe, já que se antes de casar me considero um ditador intolerante, então depois é que vão ser elas, dando-lhe a adivinhar o inferno que lhe está reservado, exclusivamente pelo meu feitio, aptidões malfazejas e possessivas, ou agressividade perante a frustração.
Ela anui. Satisfeitíssima com os resultados sorris, rejubilas no contentamento altamente científico de quem vê confirmadas todas as suas mais pertinazes, inconcebíveis e incongruentes hipóteses, e pondo em evidência quanto azar te cabe como recompensa em teres afeto e respeito por quem é ingrato e não reconhece o bem que lhe querem. Noutras alturas essas desavenças seriam motivo e conteúdo de belos e exemplares sonetos, se não me tivessem sido proibidos… Sonetos de amor feito com ganas, na raiva doce das diástoles, prolongando as sílabas breves até ao infinito da voz, esticando a urgência e imperiosidade da fala até ao insustentável da respiração, ao esgotamento do fôlego num único verso. Encurtando as longas até ao subtil pormenor de um clic, de um insight sonoro, fonema seco e sem eco. Todavia, impotente, calo-me na expectativa da borrasca anunciada e ansiando pela oportunidade de dar-te o troco numa recusa de olhar, virar-te as costas sem responder às perguntas que me faças, fazer orelhas moucas ao que disseres acerca de quaisquer assuntos que sejam, importante ou triviais, que em tempo de “guerra” não se limpam armas.
Que surge sempre. Sempre, desde que estejamos atentos. Suficientemente lúcidos e objetivos para a descortinarmos entre a espontaneidade de quem não se preocupa nem teme seja o que for da nossa parte, cujo atração, ternura e entrega é aquela garantia de segurança que jamais se dissolverá esmorecendo.
Mas que ocorre irremediavelmente num relacionamento se para tanto nos assistir a paciência da espera, coisa em que estou supimpamente treinado, graças àquelas intermináveis horas dos longos dias, meses e anos em que esperei por ti, primeiro por ela é claro, pois Shara suponho terá nascido (primeiro e) comigo, não ao mesmo tempo, mas assim que reconheci que não era o único ser que habitava o centro do mundo, e depois por ti, logo que te conheci, por considerar – não, o termo próprio é mais acreditar – que eras ela, não ideal e ancestral como Shara, mas real e presente, atual e em carne e osso como viva atualização dela. Incarnada e igualmente soberana.
Portanto, esse momento chegou de seguida, sem rogo nem demoras, sob o apelo inequívoco dos necessitados que penam no desespero de uma reparação. Quase em simultâneo com a saída de casa, exatamente essa que me deixou em carne viva, me arrancou quanta pele tinha e me defendia no contacto com o exterior, pondo-me a alma a nu e insuflando todos os sentidos até à sua insuportável constatação, esquartejando-a para a mergulhar no álcool puro da tua voz, quando te sentaste ao volante do carro e mencionaste que a tua mãe, D. Catarina, a ilustre senhora com quem simpatizo excecionalmente e por quem nutro aquele autêntico carinho e empatia típicos de alguém que se sente como se seu próprio filho fosse, ia nessa tarde ao médico, para consulta e saber o resultado dos exames que fizera na semana anterior, logo, na semana passada, e preferias que eu ficasse com ela, a fazer-lhe companhia, enquanto aguardava a consulta e depois, até que saísses do serviço, porque ficavas mais descansada comigo junto dela, pois os resultados poderiam inquietá-la ou assustá-la, conforme o grau de gravidade que declarassem.
Porém, eu tinha os “fones” nos ouvidos e não manifestei ter-te ouvido, o que te irritou notoriamente exigindo «tira essas coisas das orelhas quando falo contigo, por favor, ok? Afinal já não és nenhum teenager com necessidade de afirmação, para quem tudo aquilo que as pessoas, os adultos e responsáveis, dizem, é uma seca» inoportuna, é óbvio, a representação da surdez, uma vez que nem estava o som ligado, embora tenha sido suficientemente expressivo no atendimento dando ênfase à desatenção num «o quê? Que estás a dizer?» em voz bem alta de quem veio de outros decibéis e está nem aí para o que lhe disseram.
Notei o consequente rilhar de dentes e os pés jogaram de raiva no acelerar e travar com rispidez, indo a puxar até às curvas para depois refrear mesmo em cima delas, numa gáspea inusitada. «Fera à solta: cuidado», apeteceu-me avisar os transeuntes, mas disfarcei assobiando As Pombinhas da Cat’rina a ver se ela saía fora de mão, dando-me motivo para uma reprimenda exemplar. Porém, e ao contrário do que supunha, Shara abrandou, encostou à direita numa box de estacionamento livre, e desenrolou os pergaminhos que lhe dão jus ao nome, contando-me uma história, sem ponta por onde se lhe pegue, é evidentíssimo, mas a que o indicativo não permitia quaisquer dúvidas acerca do enredo que arrastaria consigo no «era uma vez um menino que se considerava muito esperto. Tinha alguma inteligência, pelo menos a suficiente para discernir que sem trabalho, preparação, estudo e planeamento nada se consegue. E vai daí, esmerou-se na aplicação, tornou-se objetivo e direto, perspicaz e sucinto. Um belo dia, com o sol a despontar entre o esfiapado encastelamento das raras nuvens, a temperatura de uma primavera morna e bucólica, ao sair de sua casa, reparou que aquela rapariga que ele todos os dias via e o observava intrigada, ainda que apenas estranhamente curioso, na janela da casa fronteira à sua, tinha um penteado diferente do habitual, e na sobre a fronte, jungindo as madeixas castanho-escuras dos cabelos ondeados, um diadema de prata com a lua em quarto crescente, do qual pendia um diminuto rubi em forma de gota, talvez lágrima, quiçá cristal sanguíneo, cujos reflexos pareciam disparar em todas as direções, num leque luminoso de concha marinha. Estes emaranhavam-se quase com os cabelos, dando a impressão de se prolongarem como raízes ou trama de teia assimétrica» e eu tentei descortinar isso nela, mirando-lhe o penteado que lhe emoldurava o rosto miúdo onde o seu olhar acutilante, incisivo, impertinente, no castanho-escuro ainda mais escurecido do que o habitual, me fisgava medindo as reações. Avaliando o interesse, a atenção, a sede, enfim, o efeito direto da sua narrativa.
E continuou «surpreendido e intrigado sobre visão proporcionada, uma vez que desde há muito a conhecia e via, quase diariamente, por sinal, mas nunca lhe tinha notado qualquer encanto, enquanto caminhava, descendo a rua, esforçando-se por mantê-la ao alcance da vista, inclinando a cabeça, até deixar de a ver, consequência da dobra da esquina com a rua transversal por onde seguiu adiante. Todavia, desaparecida que lhe foi da vista o mesmo não aconteceu do coração, deixando-o ensimesmado e a vê-la na sua frente, numa imagem vivaz e duradoura que insistia em não apagar-se com o distanciamento. Que perdurava para além do sensato e racional, sensível e fatual. Quis desfazer-se da imagem, escorraçar a lembrança, diminuir a intensidade da alucinação positiva com que se debatia, contudo sem o menor êxito, porquanto se viu frente a frente com ela nas vidraças das montras, nos vidros dos autocarros, nos espelhos por que passou. Então, corroído pelo prazer que esta lhe causava, mas contrariado e aflito pela falta de controlo que a ela o ligava, decidiu fechar os olhos com todas as forças e concentração que lhe foram possíveis, durante o resto do trajeto que faltava para o fim da viagem no autocarro que apanhara para a Estrada da Ponte, e com destino preciso na ponte desta estrada. E tanta força fez, tão intensa concentração auferiu, que quase conseguiu “matar” essa aparição incontrolável. Foi então que ouviu uma voz, inconfundível e que identificou com a da dita vizinha, que lhe dizia: nenhuma estrela se apagará com o sopro humano, e nem mesmo as candentes, param de brilhar quando passam para o outro lado da terra.»
Depois calou-se e pôs a viatura em andamento, sem demonstrar que a história terminara. Não obstante eu, que intentara vingar-me, fitei-a com manifesta timidez e receio, confirmando «está bem. Nos consultórios médicos também se pode ler, e hoje não tenho mais nada para fazer. Quando ela estiver despachada mando-te uma mensagem com os resultados. Gostava que lanchássemos todos juntos. De acordo?»
«Ótimo. Tentarei chegar o mais cedo possível.»
E foi tudo. Nada ficara por esclarecer. Apenas a leve sensação que faltavam algumas notas à música que vinha de fora, quando parámos nos semáforos junto à Fonte do Rossio… Mas não parecia ser nada grave!

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