Conto da Semana

Nos Condomínios do Cálice Único

“Mais tarde estenderam se sobre a cama amigavelmente com o calor da tarde lá fora, ele a ler e ela com os auscultadores do seu minigravador (o teu diadema; chamava lhe ele) enterrado no cabelo húmido e puxado para trás como gavinhas de videira à volta dos dedos dele que giravam distraidamente. De vez em quando, sem falar, ela tirava de repente os auscultadores e encostava um ao ouvido dele, fechando os olhos e cerrando a sua boca macia, arrebatada pelo que estava a ouvir.”

In A História de Meu Filho, de Nadine Gordimer

“Rosas sem fim. Flores caídas
Num chão amassado por rodas,
Sem outras forças para lidas
Que não as que nos restam, tidas
Como perdidas, quase todas.”

In http://escribalista.blogspot.com/, de Joaquim Castanho

Pressinto que nunca conseguirei trair-te. Até quando o faço contigo mesma, quando me dirijo a ti para dizer coisas a Shara, ou vice-versa, quando lhe digo algo que te é exclusivamente dirigido, toma-me um mal-estar insuportável que apenas consigo superar porque me convenço, de forma determinada, incontestável e incontroversa, que se assim o não fizer, então jamais o escutarás, uma vez que esses conteúdos não estão na tua linha de prioridades e só a curiosidade de saberes como Shara lhe reage te leva a atendê-los e considera-los, o que é igualmente verdade da parte dela, pois dificilmente os escutaria se lhos dissesse diretamente.
Creio que os casais que buscam ajuda exterior para se manterem casados, recorrendo a amantes ou encontros fortuitos, as chamadas escapadelas ou facadinhas no matrimónio, se servem de idêntico artifício embora aquilo que lucram em flexibilidade e comunicação o percam, em grau agravado, com o acrescido sentimento de culpa daí advindo e notório rombo na autoestima. É inevitável. Sobretudo quando a manobra acarreta prazer, onde a culpabilidade lhe resulta inversamente proporcional, no típico contentamento descontente que a poesia camoniana traduz (exemplarmente).
Todavia, nesse falar à tua imagem para que só tu ouças, às vezes o jogo vai muito para além do racional e plausível. Porque o descobriste, e te fazes passar amiúde por ela, ou leva-la a substituir-te e representar-te, iludindo-me. Assim, não raro dirijo-me à fantasia e é a realidade quem me responde. Shara atua em teu nome, veste-se no rigor da modernidade, vai para o teu trabalho em teu lugar, assume e faz tudo quanto só a ti diz respeito e ninguém nota, principalmente eu, que sou quem melhor conhece as diferenças entre ambas. As Maias celebradas na cidade também se acotovelam para encarnar nas raparigas que as representam, mas findos os festejos regressam ao seu mundo onírico e fantástico do qual se ausentaram por invocação humana, com intensidade e durabilidade marcada. Tu, não. Tu insurgiste-te ativa e depois permaneces nesse universo conforme a performance que determinaste manter.
Foste tu quem nos deixou no consultório médico, a tua mãe e a mim, mas foi Shara quem depois do serviço nos veio buscar e lanchou connosco, na pastelaria em frente do consultório, antes de regressarmos a casa – tenho a certeza. Suponho que foi por temeres a verdade acerca dos resultados das análises, caso eles tivessem confirmado o pior. Mandaste-a à frente como tua batedora pessoal, a ver o que encontrarias e como deverias preparar-te para lhe responderes a contento. Reconheci-a porque não trazias os óculos de sol, que sempre usas, resguardando-te da luminosidade do dia como do nosso olhar inquiridor, tão comum aos dois, e sob o mesmo propósito de espiolhar o teu estado de espírito, ou o ânimo que o habita. «Então, que novidades?», perguntaste ainda antes de te sentares à mesa, sem a manifesta ansiedade que acompanha os casos iguais.
«Tudo normal» respondi, carregando maior ênfase no «mas tem que voltar ao médico mensalmente, renovar os exames e análise de três em três meses, e estar com atenção redobrada quanto a nódulos e erupções de pele», o que não é propriamente novidade nenhuma, já que têm sido esses os comportamentos estipulados do último ano. Ela fitou-me; quer dizer, tu contraíste as pálpebras numa fita fina de concentrada acuidade, medindo e avaliando o meu envolvimento emocional e afetivo na declaração, confirmando as expectativas depositadas, pelo menos a considerar pelo sorriso que esboçaste de seguida, acentuando com o «isso vai ser fácil, e não te estorvará os afazeres minimamente» que o decreto continuava em vigor, e que a minha missão só expiraria consoante as melhoras definitivas de D. Catarina, o que me fez desejá-las mais intensamente, não só por a considerar uma pessoa extraordinária que merecia tudo do melhor que a vida reserva aos afortunados, mas também porque assim me veria liberto da função de acompanhante privilegiado. Mas contendo-me em manifestar essa vertente, pois caso ela a adivinhasse me concederia (indubitavelmente, e por consequência) reprimenda requintada. Homem avisado tem o êxito reservado!
«E tu?» quis saber. «Conseguiste trabalhar bem?»
«Claro. Acho que rendeu muito mais do que se tivesse ficado fechado em casa. Menos concentrado e com algumas interrupções, mas deveras proveitoso e sem stress. Com prazer, até…» O que não pode ser visto como uma capitulação, mas como uma nova experiência que resultou positivamente. Pensar, ler, escrever, criar, é mais produtivo e reflete melhor a vida quando quem o faz está envolvido e misturado também nela. A clausura intelectual é redundante e viciosa. Custa mais enveredar pelo disparate, todavia uma vez entrados nos seus condomínios, estes tornam-se labirínticos, e dificilmente de lá sairemos – ilesos. Resolutos. E inspirados. A boa companhia humana é higiénica e asséptica se queremos evoluir na qualidade da criação artística. Não há génios literários onde a comunicação apenas se alimenta da desértica solidão do amor-próprio e do narcisismo niilista. É essencial viver-se em sociedade quando nos queremos dirigir à sociedade e criar mais-valia socializadora, aprofundar da natureza humana e ser prazenteiramente útil a quem nos paga as facturas da sobrevivência, aperfeiçoamento, modernização técnica e valorização pessoal.
Portanto, reconhecer benefício e gratidão para com Shara e a mãe dela, não era uma derrota minha, antes um favor que me fizeram permitindo-se partilhar um momento difícil comigo, um voto de confiança e de aceitação em suas vidas. O caminho mais eficaz, rápido e sustentável, para o filho da mulher é o reconhecimento aprazível da sua mãe, e da maternidade que ambas (com)partilham; eis o segredo ancestral que originou a humanidade.
Depois de nos banquetearmos com as iguarias conventuais típicas do nosso interior provinciano, decidimos passar o resto do dia em casa, na cozinha tagarelando sobre tudo e nada, discutindo os pormenores sempre intrigantes e inerentes ao fazer coisa nenhuma, excepto o estarmos juntos pelo gosto que isso nos dá. O teu pai juntou-se-nos pouco antes do jantar, trazendo uma dose reforçada de novidades sobre o quotidiano das redondezas. Do café, o futebol, a política e os desmandos matrimoniais ou extramatrimoniais deste e daquela. Do trabalho, a crise económica e os seus efeitos diretos e indiretos. Tu, regressaras entretanto, afastando Shara do meio doméstico a que não está tão habituada como tu, e que a deixa circunspecta e expectante, indecisa mesmo, de arredia espontaneidade e propensa a frequentes hesitações.
Não podia queixar-me. A vida corria-me de feição, e às vezes ainda me recompensava com umas lasquinhas da tua afeição. Toques subtis, afagos naturais e desintencionados, o cheiro do teu cabelo, pequenos beijos nos olhares que se encontram (afloram) casualmente, o calor das tuas coxas que se demora quando nos aproximamos nisto e naquilo que o periquitar familiar nos exige, as tarefas propõem e a atenção mútua e redobrada sublinham. Nada de sobrenatural nem exorbitante, porém recheado de detalhes ínfimos ultrassignificativos. Apenas latência e atração num desejo que se prolonga até às fronteiras do (in)suportável.
E quando enfim os teus pais me desejaram boas-noites, despedindo-se e despedindo-me (muito diplomaticamente, como é óbvio e costume), sugerindo-me a retirada, vieste comigo à porta. Seguraste-me contra ti, fixando-me no fundo dos olhos, retendo-me numa distância suficientemente discernível para a transformação que ia acontecer, sem receios nem excentricidades. Primeiro reconheci a incandescência do teu olhar e vi que já não era o teu, mas o dela. Depois, a voz que me segredou «até amanhã» como se viesse das entranhas inquestionáveis da alma. Em seguida, o sentido imortal que transpareceu nos lábios ao beijar-te, como se aflorasse pétalas de aveludada sofreguidão. E finalmente o terno e doce aroma que se soltou do teu corpo num estremecido e morno abraço, deram-me provas irrefutáveis que tu eras ela nesse momento. Que Shara tinha voltado, e a sua recordação me acompanharia até casa, me habitaria o sonho durante o tempo que nos separava do novo dia. Jamais duvidei dessa hipótese, sobretudo porque todo o meu ser e consciência estavam despertos e acesos nessa inequívoca certeza.
Indesmentível. Mesmo que a minha fé se vertesse por outros cálices!

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