Conto da Semana - Nem Vale a Pena Contar

Nem Vale a Pena Contar!...


“Era a noite da loucura,
Da sedução, do prazer,
Que em sua mantilha escura
Costuma tanta ventura,
Tantas glórias esconder. “

In Aquela Noite, de Folhas Caídas, por Almeida Garrett

O s olhos faiscantes de Shara acompanharam-me e perduraram na noite enquanto me dirigia para casa, atravessando a única rua que precisava de ser atravessada para o efeito. E pese embora, em Casal Parado, elas não sejam assim tão largas como avenidas, creio que essa passagem durou muito mais do que seria plausível, esticando cada minuto além da sua extensão própria de sessenta segundos, quase pude assistir (intacto) a um autêntico concerto de estrelas despencando dos alto cimos do breu, como uma chuva de fogo-de-artifício, que somente findou quando a luz se acendeu, de repente, no quarto da vizinha sob a moldura encortinada da janela, cujo reposteiro de tule e seda azul-turquesa, bordados com motivos geométricos em dourado e prateado, partindo do centro superior descia afastando-se dele, até à base, no parapeito, formando um triângulo – ou delta luminoso – mais iluminado dentro do quadrado da caixilharia. Então nele, no preciso momento em que metia a chave na fechadura da minha porta de casa, surgiu, apareceu nele, a minha vizinha casualmente perscrutante e perscrutando a rua antes de correr as persianas.
Não me recordo agora do nome dela, mas ninguém me tira da ideia de que ela é uma aliada tua, uma personagem do quotidiano de forte afinidade com os teus desejos e estratégias, invariavelmente inoportuna como uma súbdita que me vigia e põe à prova entre as tuas ausências assaz pertinazes. Algo se repetia, pois é inquestionável a impressionante semelhança entre esta rapariga e a outra da história que me contaste, para me convenceres a acompanhar a tua mãe ao médico, com êxito, e a propósito, o que me pôs de sobreaviso, já que quando as circunstâncias se replicam ou duplicam é lógico concluir que os mesmos resultados se verifiquem. O que não tem a mínima prestidigitação ou ilusionismo, antes advém do determinismo positivista como qualquer sociologia. É pragmático e protocolar.
Digamos que essa que aparecia à janela, não sendo visão ou espectro, alucinação nem Maia, coincidia com uma pessoa real mas que esta, por sua vez, se colava em autenticidade a uma outra que tu criaras para figurar numa alegoria expressamente dirigida aos meus sentidos, através da tua narrativa. Seja. Difícil de engolir, e de fraca substância além da metafórica, sobejamente refutável, mas enfim, credível, se não nos afundarmos – aprofundando – excessivamente na factualidade lógica e racional. Todavia, o pior ainda estava para vir… Porque ao infinito, à suprema felicidade, à máxima ventura, como à Utopia, nunca se chegará, pois uma vez aí chegados então elas deixarão de o ser, que todo o brilho se lhe oculta e a atração perdem, pelo que tudo quanto sofremos e penámos para as alcançar vão se tornará, ganhando foros de ninharia.
Por conseguinte, e atalhando, depois de ter aberto a porta, entrado, feito o que é comum fazer antes de me deitar, tomado um Red Q de rooibos, petiscado umas bolachinhas com Mel de Elvas e dois bombons de figo com chocolate, anotado os itens de assunto para a palimpsestura do dia seguinte, lido mais um capítulo do livro combinado no Grupo de Leitura, tomado banho, lavagem dentária, etc., eis que a campainha tocou, num trrrim! breve de picada subtil, um quer-não-quer que soa, não obstante convicto quanto à eficácia para o efeito, que resumido era o de ter-se feito ouvir por mim. Estremeci. Não era hábito ter visitas àquela hora nem o toque me era familiar. Nem tu nem Shara assim tocaram alguma vez e, de resto, além dos vendedores disto & daquilo, durante o dia, raramente me visitavam ali, na minha casa, que era simultaneamente biblioteca, escritório, cozinha e dormitório de comedidos cómodos. Um trrrim! seco e rápido, agudo, afiado, acutilante e estridente, apenas.
Abri a porta de casa em roupão, desci as escadas até à porta do prédio, e sem surpresa alguma deparei com a minha vizinha, exatamente aquela que surgira na janela e em quem reparara a perscrutar a rua enquanto entrava no patim do rés-do-chão prédio de casa. «Boa noite, desculpa incomodar-te a horas tão tardias…» atalhou. «Mas soube hoje que escrevias poemas de devoção a Arina, e estou em pulgas para os conhecer. Podes emprestar-me alguns?»
Sorri vaidoso e radiante. Que coincidência! Precisamente há três dias atrás fizera uma brochura de um livro de poemas, intitulado Nova Razão: Velha Aliança, uma edição caseira de dez exemplares, sem qualquer motivo especial para isso, nem que alguém mo tenha sugerido, e que julguei ser um desperdício de dinheiro e tempo, e agora deparava com a hipótese de o mostrar, na calada da noite a uma conhecida quase desconhecida, e com quem não trocara mais que raríssimos bons-dias ou boas-tardes, que as circunstâncias dos vaivéns diários propiciaram… Porém, não estranhei nada, e além de me rejubilar com a oportunidade, respondi de imediato «tenho sim, e um livro mais ou menos acabado, que te dou, e de que serás o primeiro leitor, quer dizer, leitora. Queres entrar ou preferes que o vá buscar?»
«Não. Eu fico aqui, à espera» ouvi enquanto me virava com galhardia para retornar a casa e trazer-lho.
Voltei num ápice, como um Camões de braço erguido salvando o manuscrito do naufrágio, gravura que parece ter sido peta do marketing e da propaganda, embora desta vez traga algo de verdade e autêntico, porquanto o estava eu a salvar, não como manuscrito mas como edição impressa por meios electrónicos, não das águas frias e obscuras do temeroso mar, mas sim das turbulentas e maviosas angústias do ostracismo e anonimato, da solidão e incompreendida saga que acompanha, inevitavelmente, qualquer primeira obra de um autor sobejamente desconhecido – até da família. E entreguei-lho sublinhando que «não é emprestado, é dado. Será uma prova da empatia que existe entre nós, ok?», coisa bizarra que me saiu sem o mínimo sentido, mas de que só me dei conta depois de ela ter agradecido num «certo. Obrigada. Depois digo-te o que achei dele, se tiver achado alguma coisa, como deves entender… Boa noite!»
E este boa-noite misturou-se no até amanhã de Shara quando me despedi de ti. Vida complicada a minha!... Nada me acontece por menos, refleti, entrementes, ao subir lentamente os degraus de regresso ao quarto, numa escalada de sobressalto em sobressalto, como se girasse num torvelinho de sensações contraditórias e reconhecidas contradições de náufrago ao-deus-dará.
A vida, e o mundo nela, é mesmo um entroncamento de surpresas e variáveis inesperadas, onde basta um clic, um trrrrim!, um olhar, um ato, um gesto, uma palavra, para que tudo quanto era verdade e certo se tornar ilusão e engano, ou vice-versa, ou o monótono e melancólico, fatídico e previsível, se mostrar inconcebível e turbulento. Se adormecemos, sonhamos. Se ficamos acordados, alguém nos desperta e amplifica os sentidos para além do suportável…
Podia contar-vos o desassossego que foi a minha noite. Mas nem tento: ninguém acreditaria!

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