Os Liliputianos e o Fado: Ai, Mouraria!
Os Liliputianos das Grandezas
“E entretanto, deixe-se que a polícia e a tropa negoceiem, de um modo mais eficaz, com os grevistas e os manifestantes, com os eloquentes agitadores, pretos e brancos, dentro do país. E se não conseguirem, há porém outra maneira de negociar: nunca apanhar aqueles que eliminam os agitadores, matando por detrás de rostos tapados e disparando de carros em andamento.”
In A História de Meu Filho, de Nadine Gordimer, pág. 244.
Nem tudo o que se diz é luz. Embora o silêncio cúmplice e tácito acerca de todas as matérias que incomodam o status quo, seja ainda mais negro que o ignaro breu, mais escuro que toda a ignorância oriunda das trevas do Hades da Antiguidade Clássica, precisamente aquela que gerou e foi causa direta do obscurantismo (escolástico) medieval. Naquele tempo ainda só havia bons e maus, e o grande desígnio nacional – ou patriótico! – residia em conseguir agremiar os bons num clube, ginásio, partido, associação, escola, castelo, convento, quartel, repartição, café, corrente de estética, comissão, directório ou bairro, para, todos juntos, numa data estudamente marcada, os bons armados do que houvesse ou a lei deixasse passar, irem fazer mal aos maus. Os maus eram sempre – e nisso o tempo não mudou! – notoriamente mais frágeis, mais pobres, mais feios, mais dependentes e mais desprevenidos, não obstante que em menor número, menos corporativistas e até muito mais trabalhadores, expeditos, objetivos, lúcidos, responsáveis, conscientes, francos, transparentes e insistentes. Porém, tal não os desculpabilizava de nada, nem os redimia da herança genética, por cuja a má índole lhes coubera por completo, uma vez que já os seus trisavôs, bisavós, avós e pais foram, eram e são igualmente maus. E é desse tempo que sentem saudades os bons, pois podiam ser maus por uma boa causa, tentando continuamente restaurar a ordem e a lei e o progresso plantando as suas bandeiras onde o chão ainda o permitisse, sabendo demasiado bem que o melhor solo para esse plantio era a educação, o sistema de ensino, quintal onde florescia menina e menino, criando colégios de excelência em que o cultivo melhor rentabilidade oferecia.
Portanto desiludam-se aqueles e aquela gente que pensou que iria ler uma crónica da actualidade, porque não é sobre os dias de hoje que aqui se vai tergiversar, mas acerca daquele tempo em que havia bons e maus, bons com distinção e medíocres, muito bons e muito maus – e eram todos santificadamente felizes no assim-assim que a vida lhes oferecia, Deus dava, o Destino lhes reservara e as Igrejas prometiam. Desse tempo em que não era deveras hilariante verificar como é que pessoas que nem um livro liam por mês – quando liam! Que não raro passavam-se anos e anos sem tocar em book, a não ser para vender, impingir ou queimar… – eram as primeiras a saber como os outros, aqueles que liam dois ou três livros por semana, deviam ler, interpretar e analisar o que liam, bem como o que era aconselhável e desejável lerem. «Mistérios!» exclamará quem daquele tempo não for, talvez proclamando a rogo de Hefesto que em casa de ferreiro espeto de pau, coisa que nem ele nem Afrodite mereciam, quer pelo exemplo de Eros, o seu primeiro filho, quer pelas maneiras de Antero, que se lhe seguiu, dando ênfase à atitude desse tipo de gente que tudo sabe, tudo tem ou tudo tem de sobra, e a quem não incomoda nem estorva o mínimo resquício de consciência, civismo e consideração pelos demais, enfim, como dizem do outro lado do oceano, gente que não se manca nem quando a maka (mentira) é grande.
Elemento dessa Mocidade a que se chamou Portuguesa, não obstante a descarada metonímia da parte pelo todo transpire em cada sílaba, Liliputo Sonso foi uma dessas afortunadas crianças a quem os calções cor de café com leite assentaram que nem luva por medida em mão pródiga de ilusionista em part-time. Prodígio insuspeitável, conseguia as melhores notas da turma sem pegar num livro, jamais estudou para um ponto, dispensou a todos os exames, nunca copiou e se o fez, foi por algum colega tendo nota superior à dele, coisa que considerou deveras justa uma vez que lhe passara a limpo, revira e corrigira o saber. Faltas e futebol foram feitos de honra na finta aos tutores e encarregados de educação, porquanto se umas eram renovadas no outro eram repetidas (vitórias). E Fátima renovou-lhe a esperança e carregou-lhe as baterias da fé se, coisa muito pouco provável, alguma vez ousou duvidar pondo em causa a supremacia da espécie e a superioridade do género.
Portanto, este Liliputo, da família dos Sonsos à portuguesa, na baixa tensão das artérias do progresso e do desenvolvimento, passou a vida profissional à espera da reforma, que foi o objetivo primeiro da sua existência, do seu curso e de todos os sacrifícios inscritos no típico deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e faz crescer, com preocupação fundamental no aposentar-se ainda em bom estado e com perspetivas de duração, garantindo o total reembolso de quanto descontara, mês após mês para a segurança Social, com o juro na devida correção monetária, durante o tempo de exercício da profissão. Todavia, um dia acordou assustado, sob as expectativas badaladas da falência e insustentabilidade do sistema… Um sistema que, tal como a velha senhora terá falecido sem que ninguém lhe notasse a falta ou tivesse agido de forma a saber o que lhe sucedera, e só depois de 8/9 anos da sua morte, 13 insistentes visitas/participações à Justiça por parte de um familiar, inúmeras diligências promovidas por diversas pessoas junto das autoridades de segurança civil (PSP) e paramilitar (GNR), e que apenas viera a ser encontrada morta porque lhe venderam os tarecos ou bens, sem a sua autorização, nomeadamente o imóvel que não tinham permissão legal para abrir mas da qual não precisaram a fim de a leiloar. Um sistema que está moribundo a ponto de já não ser capaz de reconhecer o seu estado de saúde. Que comete crimes inacreditáveis, inauditos e hediondos mas que já nem se envergonha disso, e onde a culpa morrerá inevitavelmente solteira, porque as corporações envolvidas na situação precisam de defender o seu bom nome e o dos membros diretamente responsáveis pela omissão de segurança, caprichando no branqueamento e no esquecimento da ocorrência.
A notícia abalou-o e viu-se numa fona para recuperar o apetite. Esmiuçou-se, emagreceu, encarquilhou-se na pele e no ânimo. Sofreu cólicas terríveis em diversos órgãos, ardeu-lhe a bexiga de tanto urinar-se, e esvaiu-se numa diarreia abundante e contínua. A tez antes esbelta e altiva, luzidia e imaculada, ficou-lhe de dia para dia parda e enrugada com propensões para a de tartaruga velha a que nenhum creme gorduroso ofereceu perspetivas de melhoria. De bilioso azedou, tornou-se avarento, vingativo e picuinhas. De ressentido inventou defeitos e vícios nos demais, sobretudo nos vizinhos, colegas e familiares que não lhe viraram as costas com descaro e ostensivamente, respeitando-o na esperança de que pagasse na mesma moeda, a debalde claro está, que quanto maior foi o défice maior se tornou a ofensa e ressentimento por crédito. Assim como se de tão evidente lhe sentira a frustração, melhor evidenciara a agressividade da resposta que lhe dava, odiando tudo e todos, fazendo de cada minuto uma guerra fria e de cada hora um resgate de espoliado.
Então, empunhou a bandeira do patriotismo e aspergiu com os santos óleos o chão fronteiro às Necessidades e a S. Bento, gritou ser uma condenação e uma hipoteca sobre o futuro não contribuir para o privilégio de uns com o desmérito dos demais, principalmente dos que depois hão de competir com eles na busca de emprego e melhores condições de vida, configurando a justiça social sob a bitola da injustiça, argumentando com o costumeiro se sempre assim foi por que não há de continuar a ser, porquanto os radicalismos demoníacos são agentes de mudança que nenhum liberal tem por benfazejos. E o que cria a ordem, gera o progresso, alimenta o status quo é precisamente o tudo na mesma como dantes no quartel de Abrantes, onde qualquer pátria resguarda a sua elite e propala a fé desengonçada em pulos e cantares, palha e outros manjares, nas capas das gaiatas e dos tunantes. Ora pois. Que se já não tem a farda da Mocidade (à portuguesa) muito lhe sobra noutras iguarias do trajar desde que queira contra os iguais marchar, marchar.
E a pergunta que se põe, para remate de conversa sobre o tempo de outros tempos, é, com certeza, saber se no presente vamos ter de pagar a educação e o instruir daqueles que com os nossos filhos vão competir? Se sim, está encontrada a resolução, para quê atrás desses tempos outros tempos hão de vir, uma vez que a condição dos nascidos sem condição não muda por mais que façam para dela querer sair? E ser pequeno em Liliput é que é ser normal, tendo sonhos de grandeza para que nunca seque esta vontade de regar a realeza: façam os bons mal aos maus, que o ataque é a melhor defesa!
“E entretanto, deixe-se que a polícia e a tropa negoceiem, de um modo mais eficaz, com os grevistas e os manifestantes, com os eloquentes agitadores, pretos e brancos, dentro do país. E se não conseguirem, há porém outra maneira de negociar: nunca apanhar aqueles que eliminam os agitadores, matando por detrás de rostos tapados e disparando de carros em andamento.”
In A História de Meu Filho, de Nadine Gordimer, pág. 244.
Nem tudo o que se diz é luz. Embora o silêncio cúmplice e tácito acerca de todas as matérias que incomodam o status quo, seja ainda mais negro que o ignaro breu, mais escuro que toda a ignorância oriunda das trevas do Hades da Antiguidade Clássica, precisamente aquela que gerou e foi causa direta do obscurantismo (escolástico) medieval. Naquele tempo ainda só havia bons e maus, e o grande desígnio nacional – ou patriótico! – residia em conseguir agremiar os bons num clube, ginásio, partido, associação, escola, castelo, convento, quartel, repartição, café, corrente de estética, comissão, directório ou bairro, para, todos juntos, numa data estudamente marcada, os bons armados do que houvesse ou a lei deixasse passar, irem fazer mal aos maus. Os maus eram sempre – e nisso o tempo não mudou! – notoriamente mais frágeis, mais pobres, mais feios, mais dependentes e mais desprevenidos, não obstante que em menor número, menos corporativistas e até muito mais trabalhadores, expeditos, objetivos, lúcidos, responsáveis, conscientes, francos, transparentes e insistentes. Porém, tal não os desculpabilizava de nada, nem os redimia da herança genética, por cuja a má índole lhes coubera por completo, uma vez que já os seus trisavôs, bisavós, avós e pais foram, eram e são igualmente maus. E é desse tempo que sentem saudades os bons, pois podiam ser maus por uma boa causa, tentando continuamente restaurar a ordem e a lei e o progresso plantando as suas bandeiras onde o chão ainda o permitisse, sabendo demasiado bem que o melhor solo para esse plantio era a educação, o sistema de ensino, quintal onde florescia menina e menino, criando colégios de excelência em que o cultivo melhor rentabilidade oferecia.
Portanto desiludam-se aqueles e aquela gente que pensou que iria ler uma crónica da actualidade, porque não é sobre os dias de hoje que aqui se vai tergiversar, mas acerca daquele tempo em que havia bons e maus, bons com distinção e medíocres, muito bons e muito maus – e eram todos santificadamente felizes no assim-assim que a vida lhes oferecia, Deus dava, o Destino lhes reservara e as Igrejas prometiam. Desse tempo em que não era deveras hilariante verificar como é que pessoas que nem um livro liam por mês – quando liam! Que não raro passavam-se anos e anos sem tocar em book, a não ser para vender, impingir ou queimar… – eram as primeiras a saber como os outros, aqueles que liam dois ou três livros por semana, deviam ler, interpretar e analisar o que liam, bem como o que era aconselhável e desejável lerem. «Mistérios!» exclamará quem daquele tempo não for, talvez proclamando a rogo de Hefesto que em casa de ferreiro espeto de pau, coisa que nem ele nem Afrodite mereciam, quer pelo exemplo de Eros, o seu primeiro filho, quer pelas maneiras de Antero, que se lhe seguiu, dando ênfase à atitude desse tipo de gente que tudo sabe, tudo tem ou tudo tem de sobra, e a quem não incomoda nem estorva o mínimo resquício de consciência, civismo e consideração pelos demais, enfim, como dizem do outro lado do oceano, gente que não se manca nem quando a maka (mentira) é grande.
Elemento dessa Mocidade a que se chamou Portuguesa, não obstante a descarada metonímia da parte pelo todo transpire em cada sílaba, Liliputo Sonso foi uma dessas afortunadas crianças a quem os calções cor de café com leite assentaram que nem luva por medida em mão pródiga de ilusionista em part-time. Prodígio insuspeitável, conseguia as melhores notas da turma sem pegar num livro, jamais estudou para um ponto, dispensou a todos os exames, nunca copiou e se o fez, foi por algum colega tendo nota superior à dele, coisa que considerou deveras justa uma vez que lhe passara a limpo, revira e corrigira o saber. Faltas e futebol foram feitos de honra na finta aos tutores e encarregados de educação, porquanto se umas eram renovadas no outro eram repetidas (vitórias). E Fátima renovou-lhe a esperança e carregou-lhe as baterias da fé se, coisa muito pouco provável, alguma vez ousou duvidar pondo em causa a supremacia da espécie e a superioridade do género.
Portanto, este Liliputo, da família dos Sonsos à portuguesa, na baixa tensão das artérias do progresso e do desenvolvimento, passou a vida profissional à espera da reforma, que foi o objetivo primeiro da sua existência, do seu curso e de todos os sacrifícios inscritos no típico deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e faz crescer, com preocupação fundamental no aposentar-se ainda em bom estado e com perspetivas de duração, garantindo o total reembolso de quanto descontara, mês após mês para a segurança Social, com o juro na devida correção monetária, durante o tempo de exercício da profissão. Todavia, um dia acordou assustado, sob as expectativas badaladas da falência e insustentabilidade do sistema… Um sistema que, tal como a velha senhora terá falecido sem que ninguém lhe notasse a falta ou tivesse agido de forma a saber o que lhe sucedera, e só depois de 8/9 anos da sua morte, 13 insistentes visitas/participações à Justiça por parte de um familiar, inúmeras diligências promovidas por diversas pessoas junto das autoridades de segurança civil (PSP) e paramilitar (GNR), e que apenas viera a ser encontrada morta porque lhe venderam os tarecos ou bens, sem a sua autorização, nomeadamente o imóvel que não tinham permissão legal para abrir mas da qual não precisaram a fim de a leiloar. Um sistema que está moribundo a ponto de já não ser capaz de reconhecer o seu estado de saúde. Que comete crimes inacreditáveis, inauditos e hediondos mas que já nem se envergonha disso, e onde a culpa morrerá inevitavelmente solteira, porque as corporações envolvidas na situação precisam de defender o seu bom nome e o dos membros diretamente responsáveis pela omissão de segurança, caprichando no branqueamento e no esquecimento da ocorrência.
A notícia abalou-o e viu-se numa fona para recuperar o apetite. Esmiuçou-se, emagreceu, encarquilhou-se na pele e no ânimo. Sofreu cólicas terríveis em diversos órgãos, ardeu-lhe a bexiga de tanto urinar-se, e esvaiu-se numa diarreia abundante e contínua. A tez antes esbelta e altiva, luzidia e imaculada, ficou-lhe de dia para dia parda e enrugada com propensões para a de tartaruga velha a que nenhum creme gorduroso ofereceu perspetivas de melhoria. De bilioso azedou, tornou-se avarento, vingativo e picuinhas. De ressentido inventou defeitos e vícios nos demais, sobretudo nos vizinhos, colegas e familiares que não lhe viraram as costas com descaro e ostensivamente, respeitando-o na esperança de que pagasse na mesma moeda, a debalde claro está, que quanto maior foi o défice maior se tornou a ofensa e ressentimento por crédito. Assim como se de tão evidente lhe sentira a frustração, melhor evidenciara a agressividade da resposta que lhe dava, odiando tudo e todos, fazendo de cada minuto uma guerra fria e de cada hora um resgate de espoliado.
Então, empunhou a bandeira do patriotismo e aspergiu com os santos óleos o chão fronteiro às Necessidades e a S. Bento, gritou ser uma condenação e uma hipoteca sobre o futuro não contribuir para o privilégio de uns com o desmérito dos demais, principalmente dos que depois hão de competir com eles na busca de emprego e melhores condições de vida, configurando a justiça social sob a bitola da injustiça, argumentando com o costumeiro se sempre assim foi por que não há de continuar a ser, porquanto os radicalismos demoníacos são agentes de mudança que nenhum liberal tem por benfazejos. E o que cria a ordem, gera o progresso, alimenta o status quo é precisamente o tudo na mesma como dantes no quartel de Abrantes, onde qualquer pátria resguarda a sua elite e propala a fé desengonçada em pulos e cantares, palha e outros manjares, nas capas das gaiatas e dos tunantes. Ora pois. Que se já não tem a farda da Mocidade (à portuguesa) muito lhe sobra noutras iguarias do trajar desde que queira contra os iguais marchar, marchar.
E a pergunta que se põe, para remate de conversa sobre o tempo de outros tempos, é, com certeza, saber se no presente vamos ter de pagar a educação e o instruir daqueles que com os nossos filhos vão competir? Se sim, está encontrada a resolução, para quê atrás desses tempos outros tempos hão de vir, uma vez que a condição dos nascidos sem condição não muda por mais que façam para dela querer sair? E ser pequeno em Liliput é que é ser normal, tendo sonhos de grandeza para que nunca seque esta vontade de regar a realeza: façam os bons mal aos maus, que o ataque é a melhor defesa!
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