A CARTA ESQUECIDA
A
CARTA ESQUECIDA
Por
Joaquim Castanho
“Mas as
crianças nascem de duas vozes que se encontram,
e não só de
dois corpos (...) ”– TEOLINDA GERSÃO, in O Silêncio
Se quando uma pessoa se levanta tarde, quer tomar
banho mas não tem água, sai à rua para beber café e não há luz, e na esquina
entre a residência e a pastelaria lhe cai, vinda das alturas agrestes do plúmbeo
céu, à louquérrima velocidade de um meteorito, a larada ocre e esbranquiçada de
uma ave em altos voos, sobre o braço de confirmar as horas, ao contorcê-lo
nesse gesto do cotovelo em riste a quilhar os flancos ao momento, e lhe
esborrata o pulso e o relógio, ou se instala ansioso num banco do passeio
público para anotar as desgraças que lhe aconteceram, em apontamento derradeiro
e testemunho duma biografia que roçagou as faldas da tragédia, incluindo nos
mais ínfimos pormenores, mas não o pode fazer porque se esqueceu da
esferográfica em casa, coisa que nunca antes lhe acontecera, reparando enfim
nesse instante, contristado, que a equipa de futebol da sua predilecção joga ao
fim da tarde com o time rival, derby local ainda por cima, na disputa dum modesto segundo
lugar na tabela classificativa, então o conveniente mesmo é este indivíduo
ingerir um calmante forte, daqueles que põem sem custo qualquer cavalgadura a
dormir, meter-se no quarto, fechado à chave e sem música, sob as mantas e com a
almofada sobre a cabeça, até que o clique do calendário retruque os 01 minutos
das 00 horas e dê entrada ao dia seguinte, e este lhe traga o consolador
esquecimento da data, para que ela jamais se repita, nem sequer na próxima
encarnação... Se!
E mais:
suponhamos igualmente, que ao preparar-se esse mártir para engolir as pílulas,
vai por elas à banca de cabeceira, esviscera as gavetas, em desespero atira ao
chão cada caixa vazia, depois de as esmagar, amarfanhar, espremer e espreitar
duvidoso o seu interior, ainda com a posologia dentro, mas sem encontrar uma
única drageia que tomar, acumulando em si a inaudita raiva da desesperança do
fim do mundo, a agonia do descrédito no futuro, sem encontrar absolutamente
nada parecido com comprimidos, tampouco uma pastilha para o mau hálito que
seja, então que fazer? Sim, que fazer? Sobretudo se esse gajo fosse eu?!...
Exactamente: que fazer? – digam-me!...
Portanto, fui. E meti-me, após a desdita
que acabei de contar, a dar volta aos papéis, à tralha acumulada nas
prateleiras e caixotes, separando uns dos outros sem qualquer critério, embora
que disposto a deitar ao lixo três quartas partes deles, e isto a somar por
defeito!
Ora, de entre os
ditos condenados que ia deitar fora, deparei com uma carta que te escrevi, mas
não chegara a enviar-te. Machucada, enrugada, amarrotada, manchada, ditava-te
uma infinita lista de queixumes, admoestações, menosprezos, além de evidenciar
aquele tradicional amarelecido que o tempo empresta aos escritos esquecidos, e
a quem as recordações incutem novo significado. Aquela tonalidade de nostalgia
que nos prende ao medo de esquecer. O receio de ficarmos abandonados pelos
sentimentos mais profundos.
E não sei como,
dei por mim a ver-me novamente contigo. A conversar. A trocar aforismos e
sorrisos cúmplices. A falar de livros e de música. A escorropichar jornalismos.
A teclar as insondáveis ousadias dos projectos sociais (e pessoais). Enfim, a
sentir que continuávamos do mesmo lado da barricada.
O pior, é que
também comecei a preocupar-me acerca de ti, quase a desejar a responsabilidade
de ter-te a cargo, de tomar conta de ti, cuidar-te, decidir o que te convinha,
o que seria o teu bem ou o teu mal... E, principalmente, a ansiar que este
nunca te acontecesse. O que é uma óbvia parvoíce, considerando que as
superstições, incluindo as de elevado teor de suspeição, raramente se confirmam
conforme os nossos desejos. Ou provavelmente outra forma proteccionista e
paternalista que encapotadamente assume o receio da solidão, a adestra, a
compensa do medo de não termos ninguém para brincar. Há até quem lhe chame
solidariedade... amizade, paixão. Outros, mariquice!
Embora nenhuma
ciência o justifique e subscreva, é um risco superior às nossas capacidades,
admitir que a ternura modifica as condutas. Aceitá-lo, acatar essa
possibilidade viciosa dos afectos, que simultaneamente nos torna adeptos e
dependentes, costuma ser a dilecta consequência que nos impõe ritmos novos,
pulsares inconstantes, estruturação de outras prioridades e motivações. Mas é
inclusive o corte profundo com hábitos e maneiras de estar precedentes. Isto é,
uma autêntica revolução nas nossas consciências, quotidiano e objectivos de
vida. Para nos reconfortarmos, é usual identificar esse sentimento por amor,
arrebatamento e atracção. Ou intimidade. Todavia, pessoalmente, não seria capaz
de o admitir sem reconhecer a característica simplista de tal recurso – ou tais
– que a definição acarreta. Porque essencialmente é um sentimento mais complexo
e intrincado, como que assim mo dita...
Quando
imaginamos que a vida emocional e afectiva se encontra estacionária, eis que o
acaso nos prega outra partida – precisamente aquela que faltava, e jamais
supusemos vir a acontecer-nos, do género totoloto que sai sempre e unicamente a
outrem –, colocando-nos frente a frente, determinando e demonstrando as nossas
comuns fragilidades como aos infantes da plebe, a quem o simples facto de terem
nascido é já de si uma controversa provocação ao destino, quiçá a primeira das
desgraças de entre as demais que a existência lhe reserva!... Ao pensarmos que
mais nada de peculiarmente péssimo (ou de mal) nos poderia vir a surpreender, eis
que o acaso nos volta a jogar um contra o outro, como se fôssemos suas
marionetas, quais seres indiferenciados sem vontade própria, submissos e
obedientes a uma ordem ancestral desconhecida, cuja útil obrigatoriedade em
coisa nenhuma nos beneficia e não vai além do fazer-nos cumprir os desígnios
estabelecidos pelo suserano e senhor das nossas vidas, quer nos caprichos
superficiais como nos fundamentos. E ao caso, unicamente como seus intérpretes
e actores!
Acreditar que
assim seja, em absoluto, pode inclusive não ser argumento válido para
justificar a nossa vontade, nem para subtraí-la, mas sim uma forma de nos
conformarmos com aquilo que a vida nos dá e proporciona. Nem atitude de defesa
quanto à nossa sanidade mental, ou minimamente empenhada e em prol de um futuro
assaz expectante e continuamente imaginado. Utópico. Ideal. Contudo, estabelece
uma urgência, uma imediatez, que nos convoca, estipulando novos graus de
tolerância e, em termos explícitos, de sociabilidade. Outro grau de exigência
na escolha das pessoas com quem nos damos, privamos, preferimos para conviver,
e que tem muito a ver com uma espécie de consanguinidade da alma. Ou, até
mesmo, com aquela determinada maneira de nos expressarmos, de nos vestirmos, de
nos comportarmos, de falarmos e de nos envolvermos – ou tratarmos – com os
demais, que se consubstancializa e traduz enquanto dialecto próprio de ser e
estar. Estilo. Glamour.
Quando digo que
há presenças que nos alteram os dias, obrigando-nos a reflectir acerca do nosso
relacionamento com elas de uma forma mais contínua e premente, não estou a
efectivar qualquer escala de positividade – ou negatividade – objectiva. Estou,
isso sim, a reforçar o pressentimento de que há pessoas que, quer pela atracção
e comunhão que exercem em nós, quer pelos sentimentos que em nós espoletam,
estão superiormente destinadas a preencher, em termos quase absolutos e totais,
a nossa capacidade de empatia, ou seja, de reconhecimento do Outro. Que ocupam
o nosso segredo, a nossa capacidade de criar e usufruir do quarto que é de mais
ninguém, aquele reduto privado a que negamos a entrada seja a quem for, do
quadro que jamais alguém ousou pintar senão nós, ou sequer olhar como nós o
olhamos e compreendemos, cuja existência todos desconhecem, excepto aquela
pessoa que conquistou o direito de lá entrar, sempre que quer e sem bater à
porta. Que tal se afigure bom ou mau, é indiferente, principalmente porque nos
obstrui a lucidez, ao alcançar uma impetuosa imperiosidade tal e tamanha, que a
urgência antes admitida apenas às nossas necessidades vitais, se translada, por
assim dizer, para a presença dela e descodificação dos comos e porquês com que
se apresenta.
Dito de outra
forma. Logo que senti que voltava a gostar de estar contigo, não por aquilo que
dizíamos ou faríamos, nem pela utilidade ocupacional da solidão, e tão pouco
pela mais-valia que a tua presença acrescentava no que aos outros de mim
pensariam, mas sim pelo conforto que o silêncio da tua presença, o simples
saber que estavas comigo e não em qualquer outro lugar, me transmitia – talvez
algo semelhante àquele reconhecido bem-estar pacificador que a noção de voltar a casa nos inspira, depois de uma
longa, desconfortável e cansativa ausência, por exemplo –, bem como pela
tranquilidade de estar com alguém para quem não precisava de justificar nada ou
representar qualquer papel, senão o da minha própria espontaneidade,
apercebi-me imediatamente que continuavas a ser para mim aquela que já houveras
sido, e, provavelmente, sempre foras: a imprescindível. A insubstituível.
Aquela com lugar marcado no nosso coração que ninguém mais pode ocupar –
embora, surpreendentemente, sejamos incapazes de dar nome ou definição exacta
ao sentimento que a ela nos liga!
É claro que
preferíamos que fosse amor, sentimento típico e comum, que normalmente toda a
gente entende saber o que é, muito para além das inúmeras nuances que o
conformam, sistematizam e instituem... Mas que tipo de amor? E porquê só amor e
não outra coisa qualquer?! Porque não preocupação desinteressada?... Ou amizade.
Companheirismo. Compreensão. Prevenção egoísta. Medo simples de nos perdemos um
do outro... Porque não?!...
Cometamos,
então, um pequeno crime, um insignificante delito de lógica... Uma rudimentar
anamnese. Proponho que retornemos ao tempo em que nos conhecemos, na Biblioteca
Municipal, isso, a quando da Comunidade de Leitores! Quem poderia supor que nos
voltaríamos a encontrar, no café, no jardim, na gare rodoviária, nas praças e
ruas da cidade, no cinema documental, nos circuitos quotidianos? E, contudo,
fizemo-lo... Nada havia entre nós, que o justificasse, além do mistério da
diferença! Mal sabíamos o nome das cartas, a cor do baralho, as cambiantes ou
matizes dos humores e motivos, com que nos iríamos jogar, e muito menos as
regras do jogo a que nos propúnhamos. Estávamos em branco quanto a nós e,
sobretudo, quanto aos nós que nos sustinham e ligavam, enleavam na trama do
espanta espíritos que parara de tinir. Mas, por impossível que possa parecer,
em vez de nos desenlearmos da enrascada em que nos metêramos, cada dia
enlaçávamos mais e mais o relacionamento que iniciáramos.
Podia ser
estranha a forma como nos estranhávamos no acelerado do quotidiano comum;
todavia, não o era – e sabíamo-lo. Tendia a assemelhar-se à tentativa de fugir
para a frente, provavelmente renunciando ao misterioso medo que nos causa a
sensação de estarmos condenados um ao outro. De não sermos capazes de aceitar o
nosso destino, simplesmente, pelo bom que ele tinha para nos dar e mostrar,
desacreditando nas facilidades oferecidas, e subscrevendo o pio aforismo
popular que induz as gentes rústicas a não sentir prazer em desfrutar daquilo
que abunda, é de borla, e ninguém forjou, como a natureza, a água cristalina
dos regatos, as matas silvestres, as paisagens coloridas da Primavera, o
chilrear dos pássaros nos trigais e outeiros, o espraiar das águas sobre os
areais dourados, as inúmeras cambiantes que o sol oferece entre o nascer e o
ocaso, a serenidade dos pequenos répteis sobre o penhasco escondido, o ar puro
dos bosques e serranias, o grito ondulante do melro no pomar, e que evidencia
as origens miserabilistas e medievais dum povo acomodado na irresponsabilidade
política, sumariamente reconhecido no quando
a esmola é grande o pobre desconfia. Porque, afinal, mesmo quando nos atirávamos
para o convívio dos desconhecidos, fazíamo-lo na tentativa de angariar
experiência que nos cimentasse, fortificasse, esclarecesse e apurasse, destilando
o soro essencial (e eficaz) para alimentar a relação encetada. Angariávamos
capital emocional que nos solidificasse a quota que ambos detínhamos na empresa
comum: a liberdade de nos sentirmos a viver um em função do outro, e
irremediavelmente. Prò que desse e viesse. E sem esperança absoluta nem recusa
totais... Pese, embora, a relatividade das circunstâncias!
É uma arte
exímia essa, a de nos socorrermos mutuamente desesperançados. Sobretudo, por
nunca termos buscado um no outro a (re)solução para os nossos problemas e
limites, mas estarmos sempre dispostos a contar connosco, eu contigo e tu comigo,
em facilitar-nos os compassos de espera que nos permitissem o novo salto, a
velocidade e balanço suficientes para atingir a altura necessária, pronta,
insuspeita, com que ultrapassar as caprichosas peripécias do ser e estar de
cada um.
Naquele tempo, a
vida não me compreendia minimamente, e eu pagava-lhe na mesma moeda. De pleno
direito e em pé de igualdade, tratava-a tal e qual ela me recebera: com
despropósito, sem um pingo de vergonha e menos de consideração. Até porque, se
ambos existíamos, por que havia de ser eu o obrigado a compreendê-la para nos
facilitarmos a convivência, e não ela também a procurar uma plataforma de
entendimento, que era muito mais velha e experimentada, han?!?... Aliás,
pensava eu, na época, que a reciprocidade era uma lei fundamental à
sustentabilidade, e não um modelo de diferenciação instigador de arritmias e
assimetrismos; o que ainda hoje professo, por sinal, em resultado do que
constantemente me debato com esse desequilíbrio estrutural, que é o de não
saber discernir entre uma lei da vida e uma estratégia dela. É que numa lei as
obrigações são mútuas, na generalidade e universais, enquanto na estratégia, é
somente ao outro que cabe toda a obrigatoriedade (objectiva e operacional). E
se na primeira a existência, a vida, é um réu igual a nós, na segunda, cada
estratega pode também ser juiz, medidor na realização de objectivos e avaliador
de resultados, aferindo da sua eficácia, em termos práticos e concretos.
Portanto, acontecia sentir-me no direito de modificar a vida conforme, tanto e
quanto, ela intentava modificar-me a mim; no que, por ela me torcer, eu a
distorcia!
Apesar de tal
conduta acarretar invariavelmente elevado número de dissabores... Desencontros.
Atropelos. Injustiçamentos. Multas. Manifestas e desvirtuosas idiossincrasias.
Acentuadas desagregações psicológicas. Idiotismos. Pois desconhecia que, se se
aposta, ou nos apostamos, acertar no pleno, exactamente quando nem sequer
estamos habituados a jogar, pode ter muito de sorte inicial, mas não é, nunca
será humano. E eu queria a grande
por cada vez que a tômbola girava... A taluda, logo que te via!
Tu foste a
esperada na sorte, confesso. Era intransigentemente o acaso a ditar-me põe-te a
pau, que desta é que é. Pelo menos, foi assim que o interpretei... na minha
santa ingenuidade. Impreparado para o dia-a-dia, para o consequente nascer,
crescer, criar e morrer da vida, era também incapaz de admitir que não estava
preparado para os outros. Preferia sentenciar que o erro de convívio, ou nas
negociações semânticas, lhes pertencia exclusivamente. Que a incapacidade era
unicamente deles. Ou que o defeito (o ruído) de comunicação estava, sem a
mínima dúvida e incondicionalmente, nas causas que lhe eram próprias,
personalidades, características temperamentais e motivação!
Ora, essa mágica
exalação narcisina, qual propensão neurótica, com que a imaturidade nos faz
acreditar numa inocência imaculada, cartão de crédito ilimitado no banco da
esperança, por tão falsa e absurda, não me deixava enxergar quão importante me
eras. Nem como cada uma das minhas células te pertencia sem qualquer direito de
voto ou opção. Porque ser é principalmente pertencer; e só o somos
verdadeiramente, quando caminhamos libertos e sem receios no cumprimento – e ao
comprimento – da nossa estrada, na execução das quantas passadas que rasgam a
nossa vereda, e a instituem como caminho diariamente conseguido.
Aqui não há deus
nem mandamentos. Há simplesmente o sortilégio de reconhecer o valor da ternura
e carinho. E se para os contrair tivermos que recorrer aos anteriores, então
que o façamos sem remorsos, limites, condicionalismos ou constrangimentos. Pois
nunca é tarde para partir à desfilada no dorso da aventura, e nenhuma há de
maior do que a felicidade de quem amamos. É esse o novo mundo que podemos dar
aos mundos, por quanto perto disto Os
Descobrimentos mais não foram que uma brincadeira infantil!
Porque será que
todas as pessoas que nos aconteceram se voltam a repetir?... Porque nos
conjugamos, a maioria das vezes, no imperfeito e inacabado pretérito da
primeira ocasião. Foi Sartre quem o caracterizou na hipérbole de Os Mortos Sem Sepultura, mas nem
precisava que aí o tivesse feito, para que agora o reconhecêssemos como
verosímil. A sensação de que a humanidade é algo ainda por acabar, sujeito a contínuos
aperfeiçoamentos, miscigenações, cruzamentos de DNA’s, é-nos mais ancestral que
a ideia da existência de sagrados e divinos. Está para lá de todos os lás que
imaginar possamos.
Ninguém pode
apagar o seu próprio percurso sem caminhar de marcha-atrás. E mesmo os que o
fazem pegada após pegada, aproximar-se-ão sempre como quem está de abalada.
Inconscientemente. Com inoportunidade e sem objectivo definido e convicto. Sem
querer, ou porque o não podem fazer de diferente forma, considerando que não
haverá, em seu perfeito juízo, quem opte por agir dificilmente quando pode
escolher a simplicidade. Pelo que se tornarão artigos à margem (da vida).
Alguém que nunca dará sentido e determinação aos nomes que liga, sustenta e
indica... quase gralhas de uma mancha falhada de significado na teia semântica
dos grafismos, acidentes de navegação duma espécie que raramente segurou o leme
de seus destinos, a quem o acaso e a necessidade decretaram os rumos a seguir.
Presentemente
reconheço que posso escrever o teu nome com o sangue da minha voz, sem
blasfemar nem invocar a intimidade do amor em vão. Porque
actualmente também sei quão doloroso pode ser o renegar-te. Quanto significa a
tentativa de esquecer-te, posto que apagar-te de mim é apagar-me contigo. E
sobejamente foi demonstrado já, de régua, compasso e esquadro, que na trigonometria
do ser só se não dá quem se não tem...
Se o tiveres ao
alcance, escuta Chopin no recato de me leres. Há pormenores, apontamentos
melódicos, ressonâncias, ecos, em cada nota que se dilui e extingue, que
pretendem dizer tudo aquilo quanto o calar não conseguiu. Inclusive o calar
gritado, que é essa forma distinta de atirarmos as palavras que não queremos
para fora de nós, as que nos sufocam e inauditas, ou simplesmente deturpadas se
aproveitam das vias de comunicação desimpedidas e preferem pecar eclodindo na
superficialidade física dos sons. Talvez nem valha a pena, mas quem sabe o que
perdeu sem o ter experimentado? Do outro lado da esquina está o resto de nós
que não vimos. É ela o Bojador que nos faltou dobrar, torcer, dar ao jeito de
preferir naufragar a não continuar à tona e uma liberdade interior por
liquefazer. Porque quando a criança é abandonada um dia, irá senti-lo para toda
a vida. Se nos propomos a fazer algo que não fazemos, a escrever uma carta que
não enviamos, a ter um sentimento que não dizemos, estaremos indubitavelmente a
influenciar o restante tempo da nossa existência com um momento incumprido.
Viver é uma
sentença que nos impusemos executar o mais exemplarmente possível. Nem que para
isso, para lavrar essa condenação, nos tivéssemos simultaneamente outorgado juízes
e carrascos, legisladores e meirinhos. Contudo, beleguins de nós mesmos, ao
notarmos como seria demasiado onerosa e árdua a tarefa, resolvemos abdicar da
burocracia interior a que ficáramos consequentemente obrigados, mandatando para
o efeito o tempo e a idade, num horário que o nosso relógio biológico se
indispôs a concretizar e medir. A satisfazer. Foi então que nos adiámos para
melhores dias, esquecendo que quem sobretudo os determina é uma primavera que
não pertence ao calendário das estações, e que nos está adstrita desde o minuto
em que fomos gerados, estipulando a duração e qualidade de cada um dos nossos
genes e células, garantias e salvo-condutos, limites e propensões. Daí que
despertar seja uma consequência dolorosa mas imediata, logo que o biomaquinismo
de precisão toca a rebate. Quer queiramos, quer não. Porque então, nesse exacto
momento, fomos obrigados a reconhecer que não há meridiano que nos propicie
consolo, reduto que nos acolha e acalente, quando vemos o que evitáramos ver, e
admitimos que nada daquilo que nos aconteceu teria acontecido, se tivéssemos feito
o que não fizemos. No meu caso particular, se te tivesse enviado uma carta que
te escrevi mas não meti no marco do correio, esquecendo-a com selo e
endereçada, apenas falha de pernas que a levassem onde ela por si só não podia
ir!...
O sino que soou
logo que te vi, dita-me ainda o alerta de assentar raça. É o instinto a
jurar-me fidelidade. É cada uma das minhas bactérias a assumir a postura de
comando, ou de felino em pose e manobras de caça. Mas é também o remanso
reconhecido de quem regressa finalmente ao seu quintal de ilusão. Ao seu jardim
de sentir-se a salvo. Àquele local onde tudo quanto nos pode fazer mal ou
envenenar possui a doçura, delicadeza, textura, maciez, arrebatamento e aroma
das mais sublimes flores e especiarias... Tudo coisas belas e magníficas que
nos matam por bem (querer).
Nesse claustro
perdido em que deambula e medita o eremita que nos arruma as preces, costumam
ainda florescer ervas das quais desconhecemos a utilidade e fragrância. Foi o
acaso ou a larada de qualquer pintarroxo que aí as plantou? Teremos portanto o
direito de as mondar? Seremos assim tão perfeitos, puros e suficientes, que nos
assista a vocação missionária de jardinar sem elas? Mas, não obstante,
insistimos em regular metódica e cientificamente as estações aos nossos
afectos. Estabelecer o pulsar dos nossos climas. Determinar o ritmo, frequência
e quantidade de cada rega. E esquecemos que não tem a mínima importância saber
o nome e estirpe das plantas a que nos seguramos quando caímos de borco! É por
isso que penso que não devemos apagar as sardas que nos eclodem no rosto e na
pele, pois que muito bem podem elas ser o sinal da nossa outra pele que está
por baixo, aquele que nos forra o íntimo, e que interiormente nos reveste e
protege... No que se iguala a mais uma das razões por que não consigo (nem
permito) esquecer-te, arrancar-te do meu coração adepto. Porque todos somos de
menos para fazer prevalecer a dignidade de cada um, e sabemos que apenas
conseguiremos a originalidade desejada, quando tivermos etiquetado todos os
porquês nas pessoas que os suscitaram.
Sei do pouco,
enfim, de quanto me acode em excesso, numa narrativa que travará as rotas do
indizível por desmentir. Mas não desconheço que dele, e dela, o carinho é
tão-só a ínfima parte. Um tão tudo de tampouco... Um delével toque, um sopro,
um murmúrio sobre a pálpebra cerrada no silêncio de quem adormece sonhando que
sonha, e a sonhar se translada para o coração de quem ama.
Como não
desconheço, ou reconheço igualmente, que não voltarei a esquecer que há brisas
que correm noutras correntes, insondáveis talvez mas assaz escrupulosas, ímpias,
capazes de se insurgirem no quotidiano, determinando-o, influenciando-o muito
para além do que é lógico, compreensível e normal. Tal e qual assim me
aconteceu, que por não ter metido uma carta tua, passei um sábado sem tomar
banho, fedendo, sujo e sem beber café, a cabeça a estoirar e o coração num
pântano, irritado, sorumbático, agoniado, neurótico, a servir de sanita às
malquistas aves que do céu me escarnecem, e não pude escrever uma linha sequer
acerca da catástrofe que me sucedeu, além de, ó desafortuna dos mal nascituros
e desgraçados, a minha equipa predilecta sofreu a pior das derrotas no
campeonato, precisamente com a sua rival no bairro metropolitano, a única cujos
adeptos sabem quem somos porta a porta, e nos vão perguntar com sorrisinho matreiro
a meia haste «então, gostou do joguinho, gostou?...» Esses; sim, esses!
E como se não
bastasse a afronta, eis o mais reles dos castigos mas também a pena
supremamente dolorosa para qualquer prevaricador: o medo. O receio de ser
descoberto. O stress da ameaça. O
ficar recluso em casa e não sair nunca, ou, fazendo-o, apenas furtivamente,
pelas artérias menos frequentadas, colado às paredes e o coração batucando de
meter dó, o vivo pressentimento de que a todo o momento se pode ser vítima e
alvo de emboscada, ataque selvagem e à socapa, investida vingativa dos meus
companheiros de clube, fãs e sofredores da mesma claque ou bancada, que foram
punidos, humilhados, derrotados, achincalhados, vilipendiados comigo e por uma
falta que somente eu cometera: o em tempos não te ter enviado uma carta que te
escrevera. Sim; porque neste mundo tudo está relacionado com tudo. E a minha
culpa com ele, numa rede infinita de nós e elos, onde caem as maiores maravilhas
como as piores tragédias, bastando para as provocar fazermos uma coisa que não
devíamos ter feito ou não fazer outra que devíamos ter feito, assim como me
sucedeu, e muito bem-feita foi, que é para abrir os olhos e jamais cometer a
asneira que cometi, em sonegar-te uma missiva, sequestrando-a inadmissivelmente,
que é como quem diz cometer um execrável e vil aborto, pois que ao furtar a
carta ao seu legítimo destinatário, eu não só evitei que ele conhecesse o que
era dele e devia saber, mas inclusive que duas vozes se encontrassem (a minha e
a tua) e delas nascesse a criança, o significado do futuro, a derradeira
mensagem de carinho no ventre da esperança de quem muito bem se quer.
Por conseguinte,
em nome desse sentimento conto-te isto mas peço-te encarecidamente que o não
divulgues, que não digas a ninguém que o meu clube perdeu por causa de mim, por
favor não digas, que não tenho corpo – sim, sou fraco e insignificante, e
aflige-me a dor... – para aguentar tudo quanto eles (os aficionados) dizem que
querem fazer ao árbitro, aos fiscais de linha, aos jogadores de um e outro
lados, à ministra das finanças, ao treinador e direcção do clube, bem como à
filha da vizinha, que é boa como o milho, mas não sei como é que a claque a
conheceu, pois ela nunca vai ao futebol! Por favor não digas, não digas que eu
sucumbiria certamente, morria sem a menor dúvida do que fora, e não iria parar
ao céu, pois não, ah isso não, que quem morre de um acto deste calibre não
consta que tenha sido escolhido para lá entrar.
Não digas que eu
prometo, sim prometo, nunca mais reter qualquer carta tua e, vê bem, se o
fizeres e eu falecer, então é que jamais terás cartas minhas... Compreendes-me,
não compreendes? Também eu, que aprendi a lição: calar aquilo que queremos
dizer pode transformar-nos a vida num inferno. E que é para não esquecer, a fim
de que outros sábados semelhantes se não repitam!
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