DIZER A ETERNIDADE



DIZER A ETERNIDADE

                                                        Por
                                                        Joaquim Castanho

A maior e superiormente imediata (ou derradeira) das aventuras começou sempre pela palavra. Incluindo a civilização ocidental e judaico-cristã. Da qual é exemplo o antropocentrismo humanista, conforme o registo bíblico, em que afirma categoricamente que ao princípio foi o verbo. Mas o verbo de então, claro está, e não o de hoje, que era palavra, e atualmente é ação. E nessa gramática, universal todavia, tudo o que é humano só se conjuga, se inicia factualmente e se torna realidade quando, enfim, se nomeia, verbaliza, define, invoca e convoca. Nunca antes. Pelo que nomear é, assim, e indubitavelmente, o primeiro formato de existir de que tivemos e somos notícia. E tivemo-la, quer por génese oriunda de nós mesmos no diálogo de nós mesmos connosco, quer tenha vindo do exterior, por acaso ou estudo, partilha ou apropriação indireta, passiva ou ativa, segundo a consideremos, ao reconhecê-la, numa tomada de consciência que classifica a racionalidade da espécie, ainda que não lhe identificando qualquer particularidade digna de nota. As mais das vezes esse ter não foi além da confluência de ambas as vias, que de paralelas em oblíquas transformaram suas rotas para um destino global – o nosso. Ou seja, logo que a conhecemos, reconhecemo-la, e, ainda que nova já não nos foi estranha, se assim se pode dizer.
Portanto, a minha aventura és tu, mas por interposta condição. Penso «Mariana» e aconteço.
Há nomes que são verbos, são ação, ou agem sobre nós com impacto e movimento, que nos podem deixar transidos, impávidos ou arrebatados. Quando me sucedeu notá-lo, à influência de teu nome em mim, quero eu dizer, nem sequer andava à procura de ninguém, dum sentimento e afetos especiais, em desespero ou carência, nem de qualquer outra ocorrência que me subtraísse o tédio de existir ou de estar, à solta se compreende, entre os demais e emparelhados mortais familiares e vizinhança, a quem a neofilia normalmente ataca manifestando-se em diversos graus de stress e ansiedade. Não. Limitava-me a sobreviver, sem expetativa nem hipoteca de maior, providenciando o meu bem-estar e qualidade existencial tranquilamente, com o savoir faire e galhardia que carateriza quem sabe que a seguir a um dia vem logo novo dia, e não vale de nada apressar o tempo nem assoprar o barco, pois nem o rio corre mais depressa ou a embarcação ganha maior velocidade. Limitava-me a conviver com a minha febre de existir, sem demandas nem achaques, exigências ou concessões gratuitas à ânsia e excitação além daquelas que qualquer vivente tem pelo simples motivo de respirar, e entende como a energia, se provoca movimento, este também gera energia, nem vê nisso o menor paradoxo.
Mais tarde soube que «Mariana» não era um nome qualquer, que tinha a sua dinâmica intrínseca e própria, resultante da circunstância de aglutinar outros dois nomes: Maria – que significa «Jovem»; e Ana – cuja tradução, desde os remotos e antigos ditames da onomástica, convencionámos significar «Mãe». Jovem Mãe, ou nem menos que a descendente direta da Grande Mãe, Inanna, a mãe primeira e primordial da humanidade. A filha da avó…
Porquê? Porque existir só é viver quando ganha sentido. Quando estabelece uma inegável ligação entre os dois únicos lados do tempo: o passado e o futuro. Essa é a religião do agora, do presente, o elo que atribui continuidade à antifonia original e perfeita. Daí que te nomeie mal a dúvida, a incerteza, o descrédito me aflore. Daí que o faça igualmente se o júbilo, o entusiasmo, a felicidade me visite. Daí que te invoque por tudo e por nada. Recorra ao nome sempre que tenho muito em que pensar ou fazer, como quando me sobram tempo, disponibilidade e ânimo.
Não raro, ainda!, faço-o em silêncio, como uma prece, amuleto, parte de mim em que toco, tanto por estímulo como por hábito. Por tique como por comichão. Aliás, fi-lo silenciosamente quase sempre, em exclusivo, e até há bem pouco tempo. Por temor. Suponho que, com elevado grau de certeza, por superstição… Temia que, se ousasse pronunciá-lo, proferi-lo amiúde, perdesse a magia semântica que lhe é inerente, o deixasse gasto pelo uso, entrasse na esfera do banal. Como se lhe subtraísse a energia com que me iluminava. Como se descarregasse sentido e arrebatamento por cada sílaba, e ao dizê-la. Recordo que levei anos e anos para perder esse medo. Não totalmente, é óbvio, porquanto ainda o tenho, embora racionalizado. Para isso, a denominada racionalização, contaram as vezes que o disse inconscientemente, que é um sector psíquico de vanguarda, e vai sempre à nossa frente desbravando o desconhecido como carro de combate de piloto automático. Durante o sono. Por outras palavras. Em aflições. Sem o reconhecer ou sem saber que o dizia.
Depois, quando passei a dizê-lo, não o fiz logo de caras. Usei um bordão. Muitos bordões que o justificassem. Tia Mariana, vizinha Mariana, prima Mariana, colega Mariana, e assim por diante… A tia era irmã da minha mãe e que de facto tinha esse nome. A vizinha era realmente uma vizinha minha, como a colega ou a prima, que é filha do filho da minha tia Maria José. E, se tinha álibi, ficava desculpado, não entrava na esfera do receio, do tabu.
Daí, seguidamente, passei a proferi-lo só e só sempre se tivesse outro tipo de acompanhamento, como o apelido por exemplo, ou a profissão, disfarçando-o assim, apagando a “pegada” com eles, espalhando, dissolvendo o receio que a nomeação, a invocação, direta e a seco, me inspiravam. Mariana Lino, Mariana Rodrigues, Mariana Cepa, Mariana Azevedo, Mariana Pinheiro, Mariana Alves, que foram colegas de escola, amigas de café, conhecidas de conhecidos, familiares deles ou simplesmente pessoas com quem me cruzava no dia-a-dia.
Reconheço que não havia qualquer razão para tal medo, e encontrei mil e uma razões para o não ter. Mas uma coisa é sabê-lo, e outra, muito diferente, é perdê-lo… Tinha-o, continuo a senti-lo, era e é mais forte do que eu, determina e condiciona a minha espontaneidade, faz-me tropeçar frequentemente. Nenhum ateu acredita em Deus, certo? Então, se não crê na sua existência, porque é que toma aquele ar compungido e acanhado sempre que entra numa igreja? É deveras ilustrativa para o meu caso, esta imagem… Nada havia que lhe desse tamanha carga de temor e compunção… Nada. Mas como evitá-lo sem esforço suplementar? Pois é…
Podemos considerar a hipótese de ser respeito. Não era. Não é. Respeitar um nome, uma pessoa, é amá-la. É desejá-la, não receá-la. Então?
E até há bem pouco tempo que sempre assim agi. Creio que não vai para mais de dois anos, se tanto!, que consegui dizê-lo – mentalmente é claro – consciente de que estava a fazê-lo sem acompanhamento nem bengala. E digo mentalmente, porque realmente, oralmente, apenas há dois ou três dias.
Parece mariquice… Eu sei! Dispenso comentários. E havia como contorná-lo, como fugir-lhe? Não. Nunca há. Podemos fingir que o ultrapassámos, que o superámos, que o iludimos, que o enganámos. Podemos. Todavia a superstição ficou. Ganhou outras roupagens. Camuflou-se. Do quê? Desconheço. E se o conhecesse deixaria de ser camuflagem… E dominá-la, à superstição, obriga-nos a usar forças igualmente poderosas, superlativas, cujo efeito secundário também tememos. Emoções selvagens, estados primários, motivações pouco esclarecidas, de que nem sempre dispomos ou nos são acessíveis conforme delas precisamos. Podem aparecer ou não. Representá-las, mostrá-las, expressá-las, é uma coisa, mas senti-las de facto não permite o mínimo controlo, por maior que seja o autodomínio do sujeito. Enfim, devo confessá-lo, talvez seja o próprio nome quem mas empresta e concede.
Nunca sinto a mesma coisa quando o digo, mas sinto sempre algo que até aí nunca antes sentira. É o interruptor certo para iluminar locais e sentidos díspares com luz nunca igual.
Portanto, escrevo o teu nome. Sem mais nada. Sem prelúdio, nem epílogo. Apenas ele. Vira de imediato poema. É um vulcão de polissemia.
Se o faço com a maiúscula bem desenhada, vincada, no negritas de descolar os lábios um do outro sem objeção, pondo fim a um silêncio que julguei infindável, ganha a sonoridade gráfica de um chamamento de criança que ainda não consegue pronunciar «Mãe» dizendo «Ma» para chamá-la ou dirigir-se-lhe. Foi um esforço hercúleo, não o nego, como o terá sido para a espécie humana a invenção da linguagem, antes de ter podido recorrer à imitação e ecolalia, antes de reconhecer que era possível não só fazê-lo como também repeti-lo. E escrevi-o olhando céu… tateando o azul sem fim pela janela, de vidraça límpida e plana contra o horizonte, num dia como o de hoje, mas mais luminoso, solarengo, embora nele viajassem inúmeras nuvens, em movimento aceleradamente visível, em direção ao sul. O sol brilhava esporadicamente entre elas, tornando mais brancos os brancos fiapos, iluminando-os aqui e ali, escondendo-se sob eles acolá.
Depois silabei «ri», o “rê” e o “i” com a mesma tonalidade grave de hífen insignificante entre dois sons independentes mas ligados, como convém a uma justaposição que traja a preceito, tipo par que se quer bem mas não admite perder a soberania e individualidade própria, enquanto passeiam pela rua do comércio a ver as montras. Ou botaréu de descanso entre o dentro e o fora, pausa de paradinha antes do remate, antes do passo decisivo, derradeiro que tocará irremediavelmente o destino, o objetivo a que se consagrou. Um «ri» entre Ma e Ana. Entre a maneira infantil e a clareza adulta de invocar o mesmo referente: mãe. Mãe vista pela boca da criança – Ma – e Ana, que é forma adulta, madura e ancestral de dizer «mãe», somente conhecida por quem muito estudou, muito aprofundou a origem e significado das palavras, dos étimos, buscou continuamente o seu significado primordial e absoluto, ousou discernir as originais do seu percurso e trajeto, de há dez mil anos para cá, pelo menos, e de como sempre remanescem nas novas utilizações, quais vestígios do DNA inconfundível no palimpsesto em que habitam. A simbiose da superfície e da profundidade que o mesmo nome encerra mal se pronuncie…
Escrevi-o depois de muito o ter ensaiado mentalmente, num número infinito de vezes, de repetições sempre diferentes, sempre novas, sempre arco-íris de múltiplos sentidos, combinações cromáticas para estados de alma e emoções também sempre diferentes embora que desejáveis e aprazíveis. Para dizer o nome certo quanto não teremos todos e todas errado antes? E errar é sinónimo de viajar sem destino determinado, preciso, definido, importa não esquecer… Nestas coisas do dizer, do revelar íntimo, não há exceções, nem sequer para confirmar as regras. Os nomes são a pele das almas. Sem eles todas são a mesma alma. É ele, o nome, que liberta a alma do anonimato, do ser ordinário, do vivente indiferenciado. E vi-o mentalmente escrito em som mudo e interior, mas já exterior, íntimo mas alheio, anos e anos seguidos antes de o ter realmente escrito na caligrafia do entendimento e da razão, de homem calejado na pronúncia das letras destrinçáveis e audíveis, e lhe conhece a pujança como nome e como sombra dele, reflexo em movimento nas profundas e escuras paredes da caverna da alma e do conhecimento. Só depois é que peguei num lápis e o desenhei demoradamente, com a borracha bem a jeito para poder apagá-lo num ápice se entrasse em pânico ou alguém me surpreendesse na operação. E mesmo assim não o escrevi todo duma vez, mas cada letra em separado, sem qualquer ligação imediata entre si, não como grupo da mesma família, mas como agrupamento que o acaso juntou na mesma linha. Na mesma superfície liza e insignificante. No mesmo empedrado dum piso sem história nem alinhamento discernível. Letras independentes que desconheciam a sintaxe que as havia de unir um dia… Incluindo aquelas que se repetem, os aaa, num triplicado de contagem de partida para uma corrida de alta competição. Um, dois, três – e zás, ei-las que disparam em direção à meta determinada.
Após essa primeira grafia treinei diariamente. Uns dias só em casa, outros também nos transportes públicos, nos hipermercados, nos cafés, nas esplanadas, nas bibliotecas, nos jardins. Continuo a fazê-lo invariavelmente. Creio que é essencial que o faça para o merecer. Pode ser apenas uma horinha, como posso atingir duas ou três somando os pequenos períodos de tempo em que o faço. Cheguei àquela destreza e habilidade que unicamente conseguem os especialistas, que é dizê-lo (mentalmente) ainda que fazendo outras coisas. Sobretudo se estou escutando alguém que não me suscita a mínima atenção, ou suscitando-a me não empenho em dar-lhe tamanha evidência. 
Porque quando te escrevo mentalmente o nome no recheio das horas mastigo os minutos com redobrado prazer, lenta e demoradamente, saboreando a liquidez analógica do tempo como um néctar de excelência. E defino-te sempre com a alma cheia de nós ainda mal despertados, os corpos por desenrolar do enleado da noite, sílaba a sílaba e poro a poro, na sofreguidão desacautelada da mútua dádiva/entrega que nos tornou irrefutáveis. Foi o nosso naufrágio incontinente.
Agora, que já o digo de mim para comigo, se houvesse como dizer-to, a eternidade seria apenas o dia seguinte. Assim, escrevo-to, e ela é sempre a mesma noite, embora repetida dia após dia sem cessar, confluindo inequívoca para cada segundo de ti.

É um tanto esquisito, ridículo, pouco asizado, reconheço… Apaixonei-me por um nome! Felizmente era o teu. 

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