O DIABO DE BURRO
O DIABO DE BURRO
Por
JOAQUIM
CASTANHO
Quando cheguei a Casal Parado,
vindo de uma capital de distrito, não conhecia cá ninguém. Nem sequer aquela
que viria a ser a minha hospedeira.
Mas a tropa manda, e aconselha no
desenrasque!... E, mais ou menos porque à força de nos encontrarmos em
idênticos sítios pelo igual da hora, criamos parceiros para o jogo dos grupos
no parcelamento estrutural da sociedade – o que é um contrassenso –, ou nos damos como cúmplices uns
dos outros em pecados imaginários e futilidades menores, para que possamos
preencher a solidão pelo custo da sua hipoteca – a esperança. O certo é que,
sem sentirmos, nos vamos enraizando juntando-nos a outros desenraizados que
normalmente nos acolhem, mais por necessidade de sangue novo no seu antro, do
que por solidariedade. Que foi o caso.
Profanado por uma trindade que
nada prometia em troca de coisa nenhuma, e sujeito a esse abrigo que é o
(imaginário) chapéu de chuva como único recurso de defesa contra a tempestade
do “dum lado chove, do outro faz vento e o chão é um rio pegado”, que é a nossa
capacidade de adaptação a novas situações e meios, enquanto genuínos
portugueses, e querendo romper a indiferença pelo menos numa dessas três
frentes (e a saber: os casalenses, os não-casalenses e o grupo tertulino do
café), vi-me metido numa confusão que foi obra!... E de que saí ileso e sem
beliscadura de maior na moral e amor próprio, porque o acaso e inconsciente,
que são os únicos sábios que conheço (para além do tempo) e reverencio desde
que Atenas foi romanizada, vieram em meu auxílio e ditaram as sortes que nem
por encomenda e duma só assentada. Canja!, foi o que foi – ó larilas!...
Éramos, ao todo, naquela tarde
chuvosa de Outono a brincar ao Carnaval e disfarçada de Inverno, seis ou sete
em volta da comum mesa, no Tonel Bar, frente a insinuantes garrafas de sinuosas
bebidas (pelo cerealífero efeito). E inspirados em carpir a derrota de qualquer
dos clubes desportivos que tivesse perdido na jornada do fim-de-semana passado,
independentemente de ser ou não o das nossas preferências e simpatia. Que isso
de uma desgraça nunca vem sozinha, e já que o nosso perdeu, há também sempre
outro que lhe igualou o feito, que se bem lamentado e com ênfase, pode até
parecer que a derrota do nosso clube foi uma coisa de somenos se comparada com
a cabazada desse, além de inesperada, numa superstição pedagógica, e como que a
dizer-lhes (aos jogadores e técnicos) que se a intenção deles, em perderem tão
ostensivamente, era ferirem-nos e humilharem-nos, não conseguiram de maneira nenhuma,
pois que se querem alcançar algum êxito nessa direção e sentido, em
surpreenderem-nos!, o melhor que têm a fazer é inverter a tática: ganhando!...
O Vicente, motorista de
autocarros de passageiros; a Adélia, messalina do nosso contentamento, e
professora do ensino secundário; a Ana Teresa, funcionária pública e
namoradeira em rotatividade; o Augusto, agricultor e vinicultor, novo
empresário, e, por sinal, de entre os demais, o único residente e autóctone; o
Dinis, enfermeiro; a Almerinda, empregada de escritório num gabinete de
contabilidade; a Francisca, professora primária; e eu, este vosso e fiel
servidor. Aio e escudeiro nesta e outras cavalgadas. Eis os quantos, por rotina
ou falta de família na localidade, fizemos do café a salinha de estar que os
nossos frios e bolorentos quartos não conseguiam ser! E mais ainda: os que em
desespero de causa se forjaram numa companhia onde muito superiormente se
toleram do que se aceitam.
Pois, sendo eu a aquisição mais
recente, e recenseador do INE (Instituto Nacional de Estatísticas) por
excelência, com uma modernidade de dois meses e piques, e sobrecarregado por
uma volumosa bagagem de timidez acumulada, embatucava frequentemente e deixava
que a conversa corresse a expensas dos mais velhos e expeditos. Em resumo, a
minha participação no grupo pouco ia além duma futebolada aqui, umas
observações sobre o tempo acolá e umas quantas respostas empacotadas em tara
perdida, concisas e económicas, ao perguntarem-me o quer que fosse. Se
solicitado era lesto na réplica, não por boa vontade ou espírito prestativo,
mas sim porque quanto mais rápido respondesse, mais depressa me deixariam em
paz ou as atenções deixariam de recair sobre mim. Uma espécie de fuga para a
frente.
Aliás, ao grupo, essa minha
evidenciada tendência para bicho-do-mato, parecia não incomodar; antes pelo
contrário, agradava imenso. É que o comedimento, modéstia e discrição, facilitavam
sobremaneira que quem queria e gostava de brilhar, o pudesse fazer, e
brilhasse. O que é normal e naturalmente lógico, ou de plena
compreensibilidade: ocupar os espaços deixados vagos é uma forma tão
biologicamente saudável como qualquer outra para crescer e evoluir, conquistar
e vencer, conhecida até dos mais elementares seres do reino vegetal, quanto
mais dos do animal! E eles, ou a maioria deles, faziam-no, com prazer e
oportunidade, conforme lhes competia.
Simplesmente, como é pela
operação que melhor se conhece a natureza do operador, e pelo ato a do agente,
graças à minha inatividade e silêncio, pressentia causar-lhes grandes
dificuldades em definirem-me e rotularem-me, e que se o ousavam raramente
chegavam a consenso ou unanimidade. Para cada qual havia uma característica da
minha personalidade e conduta predominante, mas diferente. Uns que assim,
outros assado, aqueloutros cozido; no entanto, com muito pouca convicção. Do
que resultava nenhum resolver-se por veredicto certo e seguro.
Até que o inolvidável aconteceu.
Um dia, estando eles em amena cavaqueira, ao regressar dos meus afazeres
estatísticos, desemboquei na mesa razoavelmente eufórico e se não comunicativo.
Olharam, todos e à vez, para mim, com ar de caso e espessa interrogação a
pender-lhes dos narigões, que nem ranheta outonal de constipação mal curada, e,
sem mais nem aquelas, disparei-lhes à queima-tímpanos:
«Já não morro estúpido.»
«Hãn?! O quê?!» Admiraram-se uns
e outros, sem que se saiba ao certo quais fizeram “hãn” ou quais fizeram “o
quê”, para manifestarem a sua surpresa.
Então, para melhor gozar o prato,
insisti:
«Isso mesmo. Como eu exatamente
disse: estúpido é que já não vou morrer», e sentei-me entre o Vicente e a
Almerinda, que, como é óbvio, abriram a respetiva ala.
«E porquê?», inquiriu a última.
«Ora! Porque hoje vi, na estrada
de A-dos-Tansos, uma coisa que nunca pensei possível, e muito pouca gente há de
ver ou já viu!...»
«Mas o que foi?», quis saber o
Augusto, reforçando a questão posta pela curiosidade da Almerinda.
«Vi o diabo montado num burro a
galope», afirmei eu, sublinhando bem cada uma das letrinhas em causa.
E o dito caiu que nem aguaceiro
primaveril. Primeiramente, e pela globalidade, se calaram e recolheram em suas
conchas de abrigo à mudança; mas logo que passou, e se refizeram das nuvens da
estupefação, saíram a terreiro em chilreio tal de querem falar todos à uma, que
as vozes, não fosse o meu longo treino de silêncio tímido e à escuta, se
confundiriam e se tornariam indistintas, nos seus falares de mim como se eu ali
não estivesse, ou nunca ali houvesse estado.
«Estou em crer», tentava imperar
a Ana Teresa, à minha frente, «que estamos na exemplar presença da
esquizofrenia típica. Hoje viu o Diabo, amanhã vê Deus; se não o dois ao mesmo
tempo, e à bulha. Li em qualquer lado que é precisamente isso que caracteriza
tal moléstia da psique: o assistir à luta mortal entre seres supremos e
contrários, personificando-os e acreditando que lutam pelo espólio que
significa aquele que assiste. Que é por causa dele que se debatem. Da sua alma.
É uma distorção autista e fantasmagórica da realidade. E bastante evidente se
relacionarmos a sua tendência para ficar calado entre nós, num mundo só dele,
bloqueado e a funcionar por caprichos, dum modo artificial e amaneirado.»
Mas o Augusto, com aquele sentido
prático e de desconfiança, que lhe deu a vida da terra, considerava que não.
«Isso não pode ser», vociferava.
«Não me venham cá com lérias. É mas é uma grandecíssima mentira. E ele está mas
é a gozar connosco», adiantava retumbante e rotundo, a olhar-me de esguelha, e
exibindo gestos com as mãos, bastante indicativos do que tinha vontade de me
fazer, caso não fosse atender aos presentes e local onde nos encontrávamos.
«Cá pra mim, ou é droga, ou vinho
a mais», retrucava o Vicente. «Tive um vizinho que lhe aconteceu o mesmo. E
eram as duas coisas em simultâneo!... Tanto se encharcou e pedrou, que começou
a variar da moca e passou a ver coisas escaganifobéticas de alto lá com
elas!... Às vezes estava a conversar muito bem com a gente, e sem que ninguém
esperasse ou percebesse porquê, punha-se a dizer baixinho: Está quieto. Não te mexas... Nem digas nada. Que está o incrível Hulk
por detrás de ti. Deixa-o passar... Que nunca se sabe o que é que ele pode
fazer!... E depois voltava, num repente, à conversa que estávamos a ter.»
«Ná!... Essa não me convence»,
argumentava a Almerinda. «O que aqui está claramente visto é uma manifestação
de recalcamento inconsciente, uma realização simbólica e mascarada, a conversão
somática de desejos inaceitáveis pelo fulaninho, e de natureza edipiana. É
histeria pura. É neurose de elevado grau. Então não veem o comportamento dele?
Característico de uma crise de identidade em estado avançado e evidente, de
confusão verbal e mental, o desdobramento da personalidade, o histrionismo, a sugestibilidade,
a pobreza de afetos, o medo de se expor, de falar e de confiar em nós, a introversão
rígida e caraterialmente deformada?... Como podem dizer barbaridades de uma
pessoa que apenas está doente!...»
Eu queria atalhar e defender-me.
Dizer de minha justiça. Mas eles não mo consentiam. De tão preocupados que
estavam em resolver o busílis, nem queriam saber da minha existência, quanto
mais das minhas razões ou os pormenores da sucedância. Estavam na elaboração de
hipóteses, fabricação em pleno contínuo, e, se algo eu pudesse vir a dizer, certamente
lhes não seria útil àquele ponto da refrega. Talvez lá mais para o tarde isso
fosse possível, ou quando passassem às fases da experimentação e verificação me
quisessem ouvir!... O que para mim se apresentava como uma hipótese
esperançosa, embora que remota, de vir ainda a salvar a dignidade, a
integridade, a sanidade moral e psicológica, já então de rastos naquele vaivém
de gestos e contra-argumentações, qual festival de artifício a que acossado
assistia, com medo de mexer-me por mor de assim poder piorar as coisas, e em
que me limitava a tentar ver e ouvir o mais atentamente que me fosse dado, o
orador que ao momento fazia uso da tribuna, se afirmava, com redobrada
convicção e empenho.
Por outro lado, Dinis opinava:
«Esse gajo sempre funcionou a ritmo
delta, não foi?!... E daí que agora a falta no mexer-se se agravou: além de
funcionar mentalmente às três mudanças tradicionalmente lentas (devagar,
devagarinho e parado), tudo indica que também se deixou apanhar pelo síndroma
de Korsakoff. Tiro e queda. Se não, como definir o estádio de confusão mental,
a confabulação e os falsos reconhecimentos? É que nem ginjas!...»
Contudo, Francisca, não
radicalizava tão descaradamente. Ou porque o maternalismo latente se tornava
saliente; ou porque da profissão nos fica aquilo que à vida mais simplifica.
«Estou em crer» achava ela, «e
com bastas e fortes razões para essa crença, pois sei do que falo!, que aquilo
com que nos deparamos, mais não é que outro manifesto exemplo da muito premente
necessidade de atenção e afirmação, talvez com regressão infantil, acompanhada
e desmultiplicada por uma imaginação extraordinariamente fértil. Provavelmente
até delirosa, mas que ainda se não tinha revelado porque a nossa acuidade tem
andado dispersa e solicitada por outras atitudes e comportamentos, ou por
outras personagens extraordinariamente fantásticas e igualmente absorventes,
esquecendo-nos nós, e descurando, aquelas que nos estavam mais próximas. E isso
fez com que não notássemos a sua crónica tendência de alucinado para o delírio,
para um delírio porventura palingnóstico, que compreende elementos de fabulação
com falsos reconhecimentos e uma hiperexpansividade imaginativa, por um lado; e
para um delírio de imaginação, por outro. E que – não sei se se lembram da
maneira sobrevalorizadora com que há uma semana atrás nos falou da
grandiosidade e riqueza da sua família!... – é fundamentalmente caracterizado
pela predominância da imaginação na sua origem, permanentemente enriquecido e
com temas preferenciais que orlam a mitomania, a filiação, erotomania e a
megalomania. Além de outras taras, sem dúvida.»
Bem vistas as coisas a minha
sentença estava lida: no mínimo dos mínimos, davam-me o estatuto de maluco. Sem
retroativos nem ajudas de custo. O que, diga em abono da verdade, não era nada
que desse azo a profícuas gabações e orgulhos. Ou era?! A reputação que
calculava ter, e quisera criar à força de muita ponderação, teimosia e
discrição solícita e atenciosa, estava a ir por água abaixo, e, pior ainda, a
arrastar-me com ela. Porque a vida tem destas andanças, onde e quando nunca se
sabe no que elas poderão vir a dar!
Tentara interferir diversas vezes
para esclarecer o que se tinha passado em A-dos-Tansos terra em que avistara o
inominável dito cujo em cima de um burro a galope. Mas vai lá, vai!...
Compenetrados e empenhados que estavam na imposição de seus veredictos, assim
que abria a boca, logo outra voz mais sonante e timbrada apagava a minha,
fazendo-a passar, num golpe, de fala de gente a ruído de fundo. E, aquilo que a
princípio não era mais do que uma situação cómica, começou a ser drama com
sérias tendências de evoluir e transformar-se em tragédia. Sobretudo
para mim, que era quem estava a entrar em pânico, quase a raiar as fímbrias
duma aflição sem apelo.
O que não era de menosprezar. E
iniciava a levedar. Até porque a minha timidez e vergonha de falar em público
persistia em tomar conta do meu comportamento, e a imperar sobre a necessidade
salvar o meu amor-próprio duma derrocada derradeira, aí sim com muitas e fortes
probabilidades de lhes dar razão e cair numa de identidade deveras supérflua e
indesejada. Porque essas fatalidades não são como o totoloto ou lotaria, que
sempre e exclusivamente saem aos outros, mas pelo contrário, é infalivelmente
em nós que com superior força carregam, ainda que sejamos quem menos as merece.
Mas eis se não quando, em
desespero já, e pensando convictamente que o melhor seria levantar-me e sair
para nunca mais, enquanto vivo fosse, e deixar de frequentar tal bar e
convívio, ou voltar sequer a Casal Parado, entra oportunamente um indivíduo,
estudante num curso em regime noturno, que sabia a residir em A-dos-Tansos. Não
hesitei. Chamei-o alto e bom som, determinado e imperativo:
«Ó amigo: ouça cá!!»
E ele veio. Para ouvir. Cá. E que
era ali, na mesa a que nos encontrávamos.
Os demais, em redor, calaram-se.
Finalmente. E quedaram-se com aquela cara de cu à paisana que geralmente
antecipa a pergunta: “ O que sairá agora?!... “
«Não há, em A-dos-Tansos»
perguntei-lhe eu, «um burro cinzento, altote e magricela, cujo dono ainda o
utiliza para se transportar, amanho e trazer de espécimes da fazenda?»
«Há sim.» Respondeu o
interpelado, confiante, feliz por encontrar alguém que lhe dirigia a palavra e
o ajudasse a passar o tempo, no que a este faltava para o começar das aulas. «É
o do ti’ António Diabo. Aind’agora o vi nele, quando regressava dos talhos.»
Eu, respirei fundo e fixei olhos
nos olhos a cada um, e à vez, dos meus compinchas. Um olhar que era de
superioridade mais do que desafio, com a respetiva legenda de “ vejam, eu não vos tinha dito “. Estavam
arrumados e abatidos, e quase me pareceu ouvir ranger engrenado de
reajustamento dos seus processadores de justiça e moral, ao serviço da peculiar
lógica de quem vai de caminho. E aos tombos.
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