Cinco Sonetos de Florbela Espanca

Cinco Sonetos de Florbela Espanca

O livro que ora se apresenta, das edições ITAU, custou 7$50, com oito páginas, algumas em branco é claro, que para cinco sonetos não eram precisas tantas, ainda que do tamanho de uma cautela da lotaria nacional: 10 x 14,5 cm (sem gralhas). Ou pouco maior, mas são sonetos, carago, e isso doura sobremaneira a coisa, mesmo para aqueles que não gostam de poesia, e preferem versos. Pois.


FLORBELA ESPANCA

"... Pelo seu apurado instinto de beleza formal, tão raro em mulheres até boas escritoras; pelo seu excepcional temperamento e vibrante sensibilidade; pela profundeza da sua alma revolta e ardente; pelo poder de comunicação com que, nos seus versos, se exprime o seu drama pessoal e o da paisagem que tão bem sentiu – Florbela Espanca é a maior poetisa portuguesa de qualquer tempo e um dos grandes nomes da nossa poesia moderna.
Ninguém pode honrar Florbela Espanca; – ela é que nos honra. Ela é que honra as letras portuguesas."

JOSÉ RÉGIO

1.

Gosto de ti apaixonadamente,
De ti que és a vitória, a salvação,
De ti que me trouxeste pela mão
Até ao brilho desta chama quente.

A tua linda voz de água corrente
Ensinou-me a cantar... e essa canção
Foi ritmo nos meus versos de paixão,
Foi graça no meu peito de descrente.

Bordão a amparar minha cegueira,
Da noite negra o mágico farol,
Cravos rubros a arder numa fogueira

E eu, que era neste mundo uma vencida
Ergo a cabeça ao alto, encaro o sol!
– Águia real, apontas-me a subida!

2.

Meu amor, meu amado, vê... repara:
Pousa os teus lindos olhos de oiro em mim,
– Dos meus beijos de amor Deus fez-me avara
Para nunca os contares até ao fim.

Meus olhos têm tom de pedra rara,
– É só para teu bem que os tenho assim –
E as minhas mão são fontes de água clara
A cantar sobre a sede d'um jardim.

Sou triste como a folha ao abandono
Num parque solitário, pelo Outono,
Sobre um lago onde vogam nenúfares...

Deus fez-me atravessar o teu caminho...
– Que contas dás a Deus indo sòzinho,
Passando junto a mim sem me encontrares? –

3.

És tu! És tu! Sempre vieste, enfim!
Ouço de novo o riso dos teus passos!
És tu que eu vejo a estender-me os braços
Que Deus criou p'ra me abraçar a mim!

Tudo é divino e santo visto assim...
Foram-se os desalentos, os cansaços...
O mundo não é mundo: é um jardim!
Um céu aberto: longes, os espaços!

Prende-me toda, Amor, prende-me bem!
Que vês tu em redor? Não há ninguém!
A terra?– Um astro morto que flutua...

Tudo o que é chama a arder, tudo o que sente,
Tudo o que é vida e vibra eternamente
És tu seres meu, Amor, e eu ser tua!

4.

Falo de ti às pedras das estradas,
E ao sol que é loiro como o teu olhar,
Falo ao rio, que desdobra a faiscar,
Vestidos de Princesas e de Fadas;

Falo às gaivotas de asas desdobradas,
Lembrando lenços brancos a acenar,
E aos mastros que apunhalam o luar
Na solidão das noites consteladas;

Digo os anseios, os sonhos, os desejos
Donde a tua alma, tonta de vitória,
Levanta ao céu a torre dos meus beijos!

E os meus gritos de amor, cruzando o espaço,
Sobre os brocados fúlgidos da glória,
São astros que me tombam do regaço!

5.

São mortos os que nunca acreditaram
Que esta vida é sòmente uma passagem,
Um atalho sombrio, uma paisagem
Onde os nossos sentidos se pousaram.

São mortos os que nunca alevantaram
Dentre os escombros a Torre de Mensagem
Dos seus sonhos de orgulho e de coragem,
E os que não riram e os que não choraram.

Que Deus faça de mim, quando eu morrer,
Quando eu partir para o país da luz,
A sombra calma dum entardecer,

Tombando, em doces pregas de mortalha,
Sobre o teu corpo heróico, posto em cruz,
Na solidão dum campo de batalha!

O "enredo" desta brochura não o sei, mas desconfio que se alguma história tem, mais a circunda do que a circunscreve, e se deva ela simplesmente à iniciativa da editora (ITAU, por sinal) em celebrar – honrar ou homenagear que seja –, qualquer data importante como aniversário da autora, se de nascimento, se de morte, não se precisa ao certo, embora não reconheça de grande valia para ninguém o andar-lhe a gente a celebrar o dia em que se foi, alguns dirão sentenciosos "desta para melhor", todavia afianço "uma porra: se é assim tão boa porque não foram vocês!?", nem proveito descubro em andarem-se a servir da desgraça derradeira de alguém, festejando, por assim dizer, a data do seu falecimento, a não ser que mórbido instinto financeiro se adivinhe, ou outro qualquer de igual calibre, sobretudo se ele recair sobre um poeta, ou poetisa, espécie de pessoas que sempre tão pobres e parcamente viveram em Portugal, por demais carecidos de pão como de afecto, falhos daquelas coisecas elementares com que a vida se governa, mas invariavelmente sujeitos à chacota e ironia da mediocridade popularucha, como quem sublinha aquilo que o burguesismo pacóvio e serôdio salientara acerca de outros, igualmente felizardos na sorte de poetar, declarando que qualquer poeta, mesmo poetisa, só é bom quando morto, e principalmente nesse instante, a partir do qual todos o podem enterrar a seu bel-prazer, depositando-lhe por cima uma boa camada de anos e esquecimento, para que nunca mais daí se alevante, aliás, garantia absoluta que diminua o risco de ressuscitar.
Portanto, não desviemos o sentido à prédica, não nos distraiamos daquilo a que viemos, que se apenas cinco são os sonetos, eles foram magistralmente esgalhados, embora reclusos daquela euforia depressiva, ou ciclotímica, que empresta ao amor tanto e doloroso prazer, tanto contentamento descontente, como diria o ancestral Luís, Vaz que não vás, tente que não caias, que nisso de ser triste por mais triste que se seja, ninguém o consegue a tempo inteiro e toda a vida, e nela, mesmo quando se não queira, ainda que "folha ao abandono / Num parque solitário, pelo Outono, / Sobre um lago onde vogam nenúfares", de vez em quando há-de sobrevir a paixão, o seu fulgor eufórico e maravilhoso, o arrebatamento único que a transforma em febre brava e impulsiva que antecede as maiores infecções, incluindo as da alma, por muito contemplativa e atormentada que ande, onde amar por amar se faz sempre perdidamente, pois nos obriga a deixar de ser os tristes e deprimidos que antes éramos, ou vice-versa, os alegres e joviais em melancolia taciturna apoderados, possessos e prostrados, que nisso de perder-se a gente tanto pode dar para um lado como para o outro, e salvar-se seja quem for quando a tensão febril acontece é um bico-de-obra de alto lá com ele, visto as mais vezes ser essa tensão o caminho recto e mais curto para a excitação realizável e, realizada ela, fonte de calma e meditativa tranquilidade, que ainda é o melhor tónico revigorante da tensão, para elaborá-la a preceito tal que exigirá realizar-se, repetidamente, inequivocamente imperiosa e urgente, e para, enfim, consumir-nos na justa medida em que a consumarmos. Em nós, exactamente nós, que sempre estaremos prontos e ansiosos para provocá-la. Nem que para isso nos tenhamos que socorrer de Deus, ou o consideremos um forte e determinado aliado para justificá-lo, exigi-lo e consegui-lo. Até no amor ilícito, se é que haverá algum que o seja...

Até porque, como diz José Régio no prelúdio, ninguém pode honrar os poetas, pois são eles essencialmente quem nos honra com a sua obra, os seus poemas, os seus versos, pelo que se lhe quisermos manifestar algo, por recompensa, por gratidão, então não nos resta outra maneira de o fazer senão lendo-os, recitá-los, compartindo-os e partilhando-os com aqueles a quem prezamos, por quem nutrimos afecto, sempre que possamos, e onde quer que o possamos fazer.

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