Gentilezas e Galhardias de Outros Géneros


"A desconfiança é o pior inimigo do bom senso"
Honoré de Balzac

Que há efetivamente de comum entre o primeiro número da coleção Aventuras de Arséne Lupin, da Editorial Notícias, intitulado Arséne Lupin: Gentleman Gatuno, de 1966, o nº 15 da coleção Grandes Mistérios / Grandes Aventuras, das Edições Romano Torres, denominado O Ladrão Voltou de Madrugada, autoria de Marcel Damar, de 1945, e o nº 16 da coleção Escaravelho de Ouro, com chancela da Empresa Editorial Édipo, Lda., sob o título A Lenda do Pântano, de 1951, de Conan Doyle, naquele tempo ainda mal referenciado por Sir Arthur Conan Doyle? Nada. Absolutamente nada de importante, se excetuarmos quatro pormenores insignificantes: são três exemplares antigos do romance de cordel, editados sob os auspícios do Acordo Ortográfico de 1943/45, todos foram adaptados ao cinema em mais que uma versão, bem como em nenhum deles a filosofia dos amigos do alheio argumenta mais forte que a moral escorada na legitimidade da propriedade privada. Mas tem outra: o autor de cada um deles foi pioneiro do modelo em que se desenvolve: Maurice Leblanc é o progenitor do romance policial, propriamente dito, com ou sem polícia; Sir Arthur o fundador do género fantástico; e Marcel Damar, o cultivador maior da novela de suspense.

1. A Lenda do Pântano

A tradução é de Baptista de Carvalho, igualmente, ao tempo, também director da Colecção O Escaravelho de Ouro. Após esta seguiram-se inúmeras edições, mas todas sob o título de O Cão dos Baskervilles, tradução literal do título original: The Hound of the Baskervilles. A última que me lembre é a do Diário de Notícias / Europa-América, com tradução de Jorge Vítor Carvalho, já sem c atrás do t, conforme mandam as regras da unificação ortográfica, embora o Baptista da outra versão o mantenha, pois já não há nada a fazer, e o que não tem remédio, remediado está. Ora acerca delas, tanto de uma como de outra, que no fundo são a mesma coisa, muito foi dito, sobretudo depois da fama que as adaptações cinematográficas e televisivas lhe deram, a ela obra, e a ele, Sir Arthur Conan Doyle seu autor e inventor do celebérrimo Sherlock Holmes que, desconfio, deve ser muito mais famoso do que quem o criou. São coisas da literatura, alvitram; são mistérios, dizem; paradoxos, afirmo eu, que sou dos que não percebem por que motivo os pseudónimos hão-de ter maior significado do que os nomes próprios, nem as personagens mais prestígio do que quem as traduziu em letra de forma ou lhe deu voz, tal e qual como o que sucedeu entre Platão e Sócrates, ou o Dr. Watson e Sherlock Holmes, ou, ainda, entre o último e Conan Doyle. E muito haverá por dizer, será dito, mesmo calado, acrescentado por silêncio, que é outra das formas de dizer muito praticadas nos subentendidos da polissemia. Bom.
Mas o que é verdade, ou não o sendo totalmente se lhe aproxima muito, é que o autor se serviu exemplarmente do Watson para exibir a sua riqueza vocabular, satisfazendo nele, e por ele, o apetite pelos rendilhados do discurso narrativo, os ramalhetes descritivos, as tiradas de perícia no linguajar, a frase desenvolta e harmoniosa, capazes de transcrever e reunir, num só romance, diversos estilos da arqueologia dos géneros, embora todos eles considerados populares, sim, mas menores: o terror, o gótico, o passional, o científico, o exótico, o policial, o de aventura, o paranormal ou supersticioso, o romântico moderno, o retórico. E tudo isso vendável em qualquer tabacaria da época, quiosque de hoje, como foi o caso do volume cuja capa se reproduz acima, que foi comprado na Tabacaria Continental, sita na Rua Augusta, 57 e 59, em Lisboa, onde eram comerciadas as demais brochuras ou folhetins de cordel, jornais, revistas ligth e bombásticas do Jet Sete, da sociedade, artes e espectáculos. Não seria barato, é claro, que vinte paus (20$00) era um ror, uma pipa de massa, mas era acessível a todos quantos, que seriam bastante menos do que agora são, sabiam ler, além de contar e assinar o nome. Dura apenas 183 páginas, de papel barato, em tipo miúdo, redondo, pequeno formato, de bolso (15x11 cm), capa mole e desenhada por Rosa Duarte, que é delícia para os olhos e uma enorme satisfação para a polpa dos dedos de quem o manuseia. Pegar-lhe, devorar de golpe parágrafos inteiros, é reconfortante, e ajuda-nos a compreender como é que a literatura se tornou uma arte de massas, antes de as massas serem devoradas pelos mass media. Deambularmos pelos pormenores das paisagens, pelas características dos edifícios e das ruas, pelos perfis psicológicos e físicos dos personagens, pelos compêndios de biologia e enciclopédias do crime, como então eram condimentados, é uma recompensa inigualável para quem, para além dos enredos outros enredos tece à volta do livro. E uma benção, pois durou de 1951 até hoje, sem perder qualquer das suas qualidades!

















(Continua)

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