Palestra de Sebastião Morão Correia

Capa da Palestra aos alunos do Liceu Nacional de Portalegre, proferida por Sebastião Morão Correia, na sessão de abertura do ano lectivo de 1959-60. Brochura composta e impressa na Gráfica S. José, em Castelo Branco.



"E, Todavia, o Homem
só vale pela sua Vontade..."

Eça de Queirós, in Ilustre Casa de Ramires

Nunca, como nos dias de hoje, em que a deletéria passividade existencialista está causando no espírito da Juventude tão perniciosos efeitos, esta afirmação do genial romancista Eça de Queirós, teve uma aplicação tão necessária, de indiscutível interesse e flagrante actualidade.
Quando Gonçalo Mendes Ramires, personagem tão palpitante de simbolismo, se queixava amargamente dos seus desaires, se não das suas derrotas, atribuindo ao Destino a teimosa infelicidade que inexoràvelmente o perseguia, nem sequer se dava conta de que estava nas suas próprias mãos mudar o rumo daquela vida sem acção e sem sentido, que era a existência que ele arrastava inglòriamente enclausurado na Torre dos Ramires – mais velha que o próprio reino.
Esta terrível falta de confiança em si próprio, consequência directa da abulia que se apossara do seu pobre espírito sem força para reagir com eficácia ao medo impertinente da "carne espantadiça e cobarde", tinha feito daquela vergôntea, débil e quebradiça, engastada na rija cepa dos antigos Ramires, um carácter amorfo, anémico, aguado, sem têmpera e sem viço, exposto aos caprichos do Destino que nunca perdoa aos fracos.
E assim vamos acompanhando o drama desse fidalgo, cuja principal ambição era um lugar de deputado, não olhando aos meios para alcançar esse fim.
Mas Gonçalo, enterrado na sua velha Torre, era um abúlico, falho de vontade, cedendo constantemente à lei da inércia.
Por isso atribuia ao seu negro destino todas as fatalidades que lhe sucediam.
Eça aproveita também o ensejo de dar a esse tipo de pessoas esta eficacíssima receita:
"E, todavia o Homem só vale pela Vontade – só no exercício da Vontade reside o gozo da Vida. Porque, se a Vontade bem exercida encontra em torno submissão – então é delícia do domínio sereno; se encontra em torno resistência, – então é a delícia maior da luta interessante."
E, como corolário de tal postulado – que é a tese principal da Ilustre Casa de Ramires – o fidalgo da Torre, ao compenetrar-se que a verdadeira honra reside no trabalho ordenado, fruto de uma vontade firme e reflectida, abandona a sebenta cadeira de S. Bento, alcançada por meios tão torpes e degradantes, e lança-se, livre de influências e com orgulho próprio, nas explorações das terras africanas.
[1]
Surge-nos, então, um homem que procura que procura dar plena realização à sua personalidade já temperada por um Querer, forte e decidido, e por uma Vontade, consciente e reflectida.

Minhas meninas e meus rapazes:

Gonçalo é mais que um simples personagem de romance.
Gonçalo é um símbolo.
Eis a razão por que resolvi aproveitar este magnífico exemplo que sobre o valor da Vontade nos apresenta o insigne autor da Ilustre Casa de Ramires, para me servir de tema à palestra da abertura solene das aulas do ano escolar de 1959/1960.
Não conheço, nem creio que em tão breves palavras se tenha cantado um hino tão admirável ao valor da Vontade.
Depois de uma análise ao drama de Gonçalo, vítima da terrível abulia que lhe entibiara o carácter e debilitara a personalidade, a tese surge clara e convincente, numa síntese bem expressiva e sem enfeites ou aparatos pretenciosos, como era próprio do estilo do incomparável artista.
Com efeito, o autêntico valor do Homem cifra-se no poder da Vontade inteligentemente exercida.
E, sem dúvida, o maior prazer da Vida reside no exercício de um Querer, forte e consciente, mercê do qual o nosso eu actuante possa ganhar plena consciência do seu valor, verificando que pela prática bem orientada dos seus actos voluntários é possível alcançar a inteira satisfação das suas aspirações.
E, se no exercício da Vontade as circunstâncias se conjugam num sentido favorável de docilidade e submissão, permitindo-nos realizar os nossos desejos sem obstáculos nem esforços, gozaremos a delícia do domínio sereno. Se, porém, encontrarmos em torno resistência, quero dizer, se para a efectivação das nossas aspirações tivermos de enfrentar e remover as pesadas dificuldades, ao atingirmos o nosso fim, gozaremos, então, vitoriosamente, a delícia maior da luta interessante.

***

A Vontade é um factor imprescindível na têmpera do carácter. E só pode considerar-se homem de carácter aquele que, removendo todos os obstáculos de ordem psicológica ou material, consegue atingir o fim digno que se propõe alcançar.
É, em suma, o homem que sabe querer.
O inconstante, o indeciso e o fraco – esses falham inevitavelmente na vida, porque não se esforçaram para aprender a querer.
E o que é curioso é que, na maior parte dos casos, os fracos, os desiludidos e os abúlicos guardam também no mais íntimo do seu ser um cabedal de forças intelectuais e morais capazes de lhes permitir as vitórias que os outros – aqueles que sabem querer – conseguem alcançar.
Têm também ao seu dispor a força da Vontade. Não souberam, porém, aproveitá-la num sentido conveniente, pondo em conjugação harmónica e disciplinada todas as energias disponíveis.
Mas eu não quero, nem devo, esquecer-me de que estas recomendações, singelas e despretenciosas, se dirigem, principalmente aos jovens, àqueles que estão na idade própria dos impulsos instintivos, do domínio tirânico das primeiras impressões, da embriaguez da Fantasia e da força estimulante, mas indisciplinada, da Imaginação.
Mais que em qualquer outra fase da vida humana, o jovem tem de aprender a querer, para poder temperar convenientemente o seu carácter.
Ora, querer não é obedecer cegamente ao mandato imperioso dos instintos, nem ceder inconscientemente às primeiras impressões quase sempre arrebatadas e falazes.
Não é também construir castelos no ar em plano muito distante das possibilidades reais, nem fixarmo-nos obstinadamente numa opinião ou decisão que só nós consideramos a non plus ultra...
O querer metódico, sistemático, é um acto voluntário que implica necessàriamente, reflexão e, para ser cumprido, tem de assentar na deliberação, na determinação e, finalmente, na execução.
O homem de carácter bem formado, antes de agir, tem de examinar bem a situação, ponderando as vantagens e inconvenientes do acto que pretende realizar; tem de escolher os meios mais aptos para alcançar o fim almejado; e, só depois de efectuar bem todas estas operações e de elaborar calmamente um juizo de valor sobre o assunto, então, sim, há-de tomar a decisão que julgar mais conveniente.
O acto voluntário será, pois, fruto de uma reflexão bem amadurecida e calculada, em que o espírito, isento de qualquer influência dos impulsos insofridos e das primeiras impressões fogosas, mas raramente exactas e quase sempre deformantes da Verdade, possa actuar de harmonia com a Razão, faculdade intelectual que permite julgar do Bem e do Mal existentes nas nossas acções.
Por isso a Razão deve ser activamente consultada na execução do acto voluntário.
Quantas vezes somos traídos pelas tais primeiras impressões que levianamente seguimos, e aceitamos como sendo as mais convenientes!
Não podemos também, é claro, executar os nossos actos exclusivamente ao sabor da imaginação exaltada, nem de harmonia com os nossos sonhos que, principalmente na quadra da adolescência, são fagueiros, mas ilusórios.
Isto não quer dizer, porém, que à Imaginação não seja dado um lugar bem destacado e merecido na nossa vida activa, como também não quer dizer que excluamos de todo o Sonho da nossa actividade volitiva, pelo eficiente contributo que qualquer deles pode dar à realização das nossas aspirações.
A Imaginação, por exageradas que sejam as dimensões daquilo que criamos em espírito, é uma faculdade que tem também o seu valor estimulante e que, expurgada do aparato que a Fantasia lhe empresta, pode fazer reverter para o campo prático a sua contribuição prestante.
Por outro lado, o Sonho, a despeito das visões quiméricas que produz, narcotizantes do espírito, não é um acto exclusivamente passivo.
A ardência do desejo, que lhe deu origem, imprime-lhe um estímulo que, em certa medida, o transforma numa força activa e útil.
Imaginar e Sonhar são actos característicos da Juventude, tão próprios e naturais, que não se pode conceber um adolescente sem Imaginação e sem Sonho.
Isso seria trair a Natureza, e a Natureza não admite traições...
Para que se realize integralmente é, pois, necessário ao jovem imaginar e sonhar.
Tal como a criança constroi o seu mundo maravilhoso de Fantasia, assim o adolescente arquitecta o seu mundo ideal de Sonho, à imagem e semelhança dos seus ardentes desejos.
A noção exacta da Realidade, na sua forte nudez, sem o "manto diáfano da Fantasia" e sem o efeito aliciante do caleidoscópio do Sonho, aparece, depois, normalmente, quando o jovem começa a ter contacto com a vida prática.
Mas, concomitantemente com a percepção da Realidade, em toda a sua nudez e crueza, – porque a Vida é luta – surge também a desilusão que acabrunha e deprime.
É nesta altura que o jovem precisa muito de nós: pais e professores.
E, no entanto, tem-me ensinado a experiência que é essa a quadra em que o jovem é menos compreendido.
A adolescência é a idade característica da audácia e da rebeldia.
E os pais e os professores, dum modo geral, é claro, em vez de aceitarem naturalmente essa realidade psicológica tal qual ela é, buscando uma solução conveniente aos problemas dessa idade crítica, procuram, antes, ladear a questão, fugindo a tais impertinências, e limitando-se a dizer: "Isso passa com a idade..."
Mas... às vezes não passa... e eis a causa por que o mundo está vivendo momentos tão apreensivos no que tange ao aberrante comportamento da mocidade de hoje.
Teimo em afirmar que a falta de uma orientação racional da Juventude tem sido, sob o ponto de vista educacional, o nosso maior pecado.
É certo que muito se tem escrito em teoria sobre esta matéria. Mas onde está a aplicação prática? É nula ou quase nula. E, se algum educador mais ousado e mais sensato pretende por em prática essas teorias, seja para cumprir o que os tratados e compêndios de Pedagogia determinam, seja para satisfazer o imperativo da sua maneira de ser psicológica, logo os Velhos do Restelo se unem alarmados, fazendo cair sobre esse educador, que ousou quebrar os cânones da sua pedagogia balofa e bolorenta, postiça e contra Naturam, uma chuva de incompreensões e uma tempestade de críticas demolidoras!
É urgente que a Família e a Escola, numa eficiente e indispensável colaboração, encarem abertamente este grave problema sob todos os aspectos e em todas as suas dimensões, evitando que nessa fase de transição o jovem caia num rumo sem sentido e até no desespero...
O ideal será conseguir-se, uma fórmula que permita o aproveitamento da força estimulante do Sonho e da Imaginação aplicada às realidades úteis que a Vida necessàriamente implica e implacàvelmente nos impõe.
Ora, é nessa fórmula ideal que a Vontade tem de actuar como um factor indispensável e de primordial importância.
Com a Vontade firme, desenvolvida e habituada a refrear os instintos e os impulsos, e pronta a superar os desânimos, estaremos convenientemente preparados para encarar as adversidades que a Vida a cada instante nos dispara, enquanto o Homem que não sabe querer, amarrado ao drama dos seus complexos de inferioridade, será sempre situado em plano secundário, consumindo a existência a ruminar amargamente as suas derrotas e os seus desaires.


***

É certo que o exercício da Vontade implica muito esforço, muito trabalho, muita renúncia, muita luta contra as solicitações das nossas tendências psíquicas, que nos convidam insistentemente à situação cómoda, mas inglória, do laisser faire e laisser passer.
Filho da desobediência ao Deus criador e consequência da maldição do mesmo Deus, não há dúvida que o Trabalho é penoso.
Mas também não há dúvida de que é inerente à condição humana.
Depois de ouvir a sentença fatal que o condenava a comer o pão com o suor do rosto, o Homem nunca mais pôde libertar-se do Trabalho. Vive por ele e para ele, e assim viverá eternamente, enquanto a condição humana se mantiver.
E não vá supor-se que a plena felicidade do Homem reside na total ausência do Trabalho... Pelo contrário... O homem normal não dispensa a actividade. As próprias preocupações são o condimento da existência. E as mesmas dificuldades, seguidas pela ânsia de as vencer, actuam como o sal da Vida.
Sem Trabalho a existência seria insuportável.
Que o diga aquele homem que, tendo levado uma vida cheia de actividade, morreu e foi transportado para um mundo diferente. Conduzido a um rico palácio, logo aparece solícito, um mordomo que com ar solene lhe mostra um quarto sumptuoso, dizendo: «É aqui que o Senhor vai morar. Qualquer coisa que deseje, basta premir o botão desta campainha, e terá imediatamente tudo o que lhe apetecer».
Daí a algum tempo estava o feliz ocioso sentado numa cómoda poltrona, tendo ao lado charutos, whisky, várias revistas, um rádio, televisão... Num compartimento ao lado viam-se espingardas para caçar, canas de pesca tudo, enfim, que pudesse proporcionar ao mais exigente mortal um passatempo agradável.
Mas o nosso homem não estava satisfeito! Premindo o botão da campainha, surgiu novamente solícito o mordomo, a quem disse, em tom nervoso:
– Venha cá, rapaz. Eu quero alguma coisa para fazer. Quero Trabalho!
– Sinto muito, mas Trabalho é coisa que não há por cá...
– Se não posso trabalhar aqui, nesse caso prefiro ir para o Inferno!
– Mas – respondeu o mordomo entre surpreso e admirado – onde é que o Senhor pensa que está?!
O exemplo que acabo de expor foi respigado de uma breve leitura de uma revista que me passou pelas mãos há bem uns quinze ou dezasseis anos.
Mas esta anedota, tão pitorescamente expressiva, guardei-a na memória pelo conteúdo moral que encerra, pois não conheço em tão breve síntese, nem em prosa, nem em verso, hino mais laudatório dedicado ao Trabalho.
Meus queridos alunos:
Foi para compreenderdes o valor da Vontade e a necessidade indispensável do Trabalho como factores principais da vida humana, que eu, nesta sessão solene de abertura das aulas, bordei as breves considerações que vos dedico.
À míngua de outros méritos, possam elas, ao menos, acautelar-vos dos perigos desta 25ª hora turva e enigmática, tumultuosa e inquietante.
E possam ainda contribuir para uma conveniente formação do vosso carácter, de modo que nele caiba, em perfeita harmonia, a aliança da Realidade com os lampejos do Ideal em que a vossa alma é fértil.




(Coitadinhas das crianças... Agora, sim, percebo por que é que continuamos na cauda da Europa: há traumas de que jamais se recupera!)


Não abdique dos seus direitos fundamentais. E não perca na próxima edição tudo sobre o mais importante e elementar dos seus direitos: O ...
[1] Conforme com o opúsculo do autor "Traços característicos da Ironia Queirosiana – Sua finalidade social."

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