Sol na Eira e Água no Nabal....

É extraordinariamente engraçado como a maior parte das medidas que, noutros países, talvez com mais vocação para a cultura do que para a trambiquice, servem para proteger os criadores, em Portugal, sirvam apenas para os prejudicar, para os isolar superlativamente, impedir a divulgação, promoção e venda das suas obras, e, no caso da literatura, amputar-lhes os benefícios da crítica, sobretudo da honesta, ou daquela que pode ser feita com tempo, peso e medida, de acordo com as regras deontológicas ou da ética e companheirismo que partilham quantos em vez de roubar, criam, em vez de plagiar, interpretam, em vez de denegrir, analisam, e se pautam pelo respeito à relação criador-criado, do autor com o texto, do texto com a época, o ambiente e demais textos que o reflectem, ou nele são reflectidos, bem como acreditam que tudo quanto nos melhora individualmente contribui, determinada e inequivocamente, para nos qualificar, aumentar em qualidade, também como povo, como língua, como nação, apura a identidade portuguesa, lhe encorpa o teor civilizacional e assegura, no presente como no futuro, uma maior dignidade entre os restantes países europeus ou lhe empresta acrescida credibilidade e estatuto, quando e se convocado para assumir os protagonismos e estratégias de desenvolvimento imprescindíveis à consolidação de uma Europa, cada vez mais mundial, cada vez mais actuante e interferente na conjuntura da modernidade.
Tomemos agora de assalto um livro que nada tenha para nos dizer, do qual não haja qualquer conhecimento anterior acerca do autor, menos da obra, nem de anteriores trabalhos, ou géneros sobre que incidiu, e que nem sequer tenhamos comprado por ter uma capa atraente, título apelativo ou estivesse nos escaparates da actualidade, mas sim por ser o mais barato da estante de literatura de uma grande superfície comercial do sítio, falho em literacia por sinal, localizado num bairro social da periferia de uma cidade periférica, outros dirão interior, embora signifique exactamente o mesmo.
Temos sorte, pensei eu ao encontrá-lo, porquanto me ficaria pelo preço de um jornal diário um livro de poesia, ainda por cima premiado com o Prémio Revelação da APE/IPLB-1995, década cuja safra não foi muito afamada. Aqui "sorte" era já uma conjectura, como simples constatação momentânea de pouca valência, para apreciar uma compra de objecto cultural, qualquer que seja, livro, disco, quadro, documento, peça de escultura, de artesanato, onde figure, enfim, um conteúdo analisável e passível de veicular conhecimento. Poder-se-á, por conseguinte, dizer que não foi uma escolha totalmente aleatória mas pouco faltou para sê-lo, por que já intencional, mais precisamente motivada pela necessidade de executar, ou experimentar nela uma teoria, a ver se dela resultava a confirmação ou negação das teses em si enunciadas.
Nas orelhas, tem algumas indicações sobre o autor e a colecção onde a Difel, que é a editora, o insere, mas não serão lidas nem achadas. Tem prefácio? Tem. Saltemo-lho, pois.
Distribuídos por 70 páginas, os títulos de cada poema são de natureza numérica, de 1 a 30 apenas, pelo que nem por aí se poderá fazer ideia do que conste, embora se saiba já que esse foi o número de moedas com que Judas vendeu, traiu, Jesus, coisa de que dificilmente podemos abstrair-nos sem fazer primeiro uma interpretação dos textos assim intitulados, pois é impossível apagar uma convenção desta natureza sem haver outra que a substitua de imediato.
No primeiro poema a autora reproduz uma partida para o infinito, que vai desde aqui a lado nenhum, mas dando a volta por fora, depois de hesitante e indecisa caminhar pelo Cais de Alcântara, constatar o seu degradado e conspurcado estado, podendo daí concluir que os marinheiros se olham os rios procuram as moedas de prata da sua traição às amantes, tanto aquelas apenas mulheres como as com quem assumiram algum compromisso ou namoro. No segundo já está "bandeirante" na Amazónia, no terceiro e quarto e quinto viaja nas veias do corpo, até entrar, no sétimo, em Santa Cruz onde se começa a trajectória pela infância de alguém.
E dito isto assim, parece que estou a relatar um jogo de carica entre dois imberbes que não sabem, não querem, nem gostam de tal jogo, mas não há outra maneira de falar num livro – de poesia – que tem como rodapé da ficha técnica a indicação de que é "Proibida a reprodução total ou parcial sem autorização prévia do Editor", pelo que me é dado compreender como Fernando Pessoa teve uma sorte danada em ter vivido noutro tempo, e ter muito pouca coisa publicada, quando os rapazes da Presença lhe começaram a criticar os poemas, divulgando-o e promovendo-os, pois caso vivesse e escrevesse actualmente apenas chegaria ao papelão mais próximo, onde, por descargo de consciência e imperativos ambientais e de cidadania, iriam parar os seus livros depois de lidos frugalmente, em diagonal ou ziguezague, uma vez que quem se atrever a repetir, ainda que por motivos de apreciação, de interpretação, de análise e avaliação, os poemas ou parte deles só o poderá fazer com autorização dos editores, o que obrigaria a escrever-lhes uma carta (ou e-mail) para pedir-lha, que, se considerada a contagem dos caracteres por defeito, se sujeitava a ser maior que o livro todo.
Bom... Anda toda a gente a dizer que se lê pouco, os autores queixam-se do fraco sustento que a literatura lhes rende, os editores e livreiros lamentam a comunicação social que os não noticia, os planos de leitura são para "europeu" ver e o acordo ortográfico é uma pedra no sapato da indústria da publicação, que vai, de só uma assentada, desactualizar a fornada de edições (invendidas) que atravancam os stocks das editoras e livrarias, e lhes atulham os armazéns. Pois saiba-se que sol na eira e água no nabal, embora continue a ser tempo cobiçado, nem com as alterações climáticas é alcançado. E das duas, uma: ou querem crítica séria ou recato de virgem sem dote e vaginismo inflamado. Agora, ao mesmo tempo, as duas coisas, apenas as encontram na prateleira esquecida de algum hipermercado!

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