Janela de Oportunidade




Cada qual sabe as sombras com que se entretece.
Ouvi, uma vez, dizer a um escritor consagrado pela crítica e pela banca, que escrever “é descrever a um cego o que estamos a ver, até que ele veja o mesmo que nós”. Senti-me defraudado. Então, adiantei: “a um cego que não quer ver, até que ele veja melhor do que nós.”
Talvez seja uma tarefa difícil, e reconheço que nunca o conseguirei. Só que o para “que não digam que nunca tentei” não é lá grande compensação. Pior ainda: é a confirmação duma frustração. O escritor é o único animal que faz da frustração uma profissão de fé: imolar-se, é-lhe decididamente preferível à indiferença. E executar-se consequência inequívoca dessa culpa alheia, ou em redenção de uma culpa colectiva, logo, o último responsável porque é igualmente de todos, o maior e mais nobre galardão que pode alcançar, e a que normalmente chamam fama ou número infinito e incontável de leitores.
Agripina está sentada, nua, no sofá da sala de estar, primeira divisão da casa que habita desde 1976, precisamente o nº 13 da Rua Velha, em Casal Parado, com o pé esquerdo sobre a alcatifa, surradíssima essa, e o direito sobre a nappe vermelha do móvel, erguendo o joelho dobrado à altura do queixo, inclinada para a frente, os braços ladeando a perna, cortando as unhas, com uma tesoura bicuda e curta, na mão direita, enquanto com a esquerda segura o pé e levanta o dedo. Tem o cabelo molhado e brilhante, como só os cabelos totalmente pretos podem brilhar quando se lhes ministra algum gel amaciador. Defronte a ela, a televisão, mal sintonizada, com chuviscos, deixa escapar a imagem numa subida alucinante. Não quer saber!... É o padrasto que paga a luz. Deixá-lo.
Dezassete anos; é quanto lhe rezam as contas, se feitas pelo B.I., mas a mãe já lhe confidenciara que somente fora registada com catorze meses, pois nascera na Roça, sob a providencial ajuda de duas pretas da casa, e a cidade mais próxima era longe, a uns cem quilómetros, com picadas em mau estado e (provavelmente) minadas pelos turras, que nesses tempos ganhavam uma força (moral) superlativa em consequência da opinião pública mundial se ver explanada nos acontecimentos internacionais do género da "derrota" dos americanos no Vietname ou da explosão pacifista do Indira Gandhi. Na noite anterior, quando regressara da escola nocturna, o padrasto estava a montar a mãe à canzana, com a porta do quarto escancarada, e sorriu-lhe, babando-se, no preciso instante em que ela punha os livros na mesinha do telefone, ao corredor, de frente para o quarto. A mãe também a viu, quando num esgar de cio orgástico abriu os olhos, mordendo uma franja da colcha, as mamas a balancear, mas largou uma gargalhada desinibida, desenvergonhada e sem escrúpulos, de sátira confissão, perante a confusa timidez do seu rebento – já bastante florido pela certa. Ao entrar no seu quarto, depois de ter ido à casa de banho, fechou por dentro a porta à chave. Contudo, demorou a adormecer, e quando enfim o conseguiu, sonhou que a mãe a agarrava por detrás, imobilizando-lhe os braços, ao mesmo tempo lhe afastava as pernas e o padrasto a violava. Depois o padrasto metamorfoseou-se e assumiu as feições do patrão, enquanto a chefe de secção tomava o lugar da mãe que, finalmente, se transformava na professora de História, concomitantemente ao patrão sucedia a imagem de D. Afonso Henriques, que sucessivamente se multiplicou numa série de Afonsos e de Sanchos, Dinises e Pedros, até ao Prior do Crato, ao presidente da república e presidente europeu, que foi quando acordou.
«Foi uma orgia! Foi o que foi!...» Exclamou para si mesma, sorrindo, sacudindo simultaneamente uma unha com as costas do midinho e anelar da mão direita, ao mesmo tempo que com a esquerda o polegar do pé. Nunca ligara muito a sonhos e mantinha a certeza de que continuava virgem e casta, impoluta no dizer do povo, inocente perante o que acerca de si própria pensava.
«Até quando?...», pensou. – Sim. Até quando?... – E sentiu uma onda de calor a percorrer-lhe o dorso, que a levou a felinamente recostar-se, distendendo-se suspirando, para trás. «Até quando?...»
Tocaram à campainha. Uma vez. Duas. Três vezes: não era o carteiro.
Ergueu-se. Foi à janela, levantou a esquina do estore, e, enviesada, espreitou o exterior, sem se preocupar em esconder o corpo nu. Eram duas mulheres, dos inta pròs enta, com sacos de couro a tiracolo. Provavelmente Testemunhas de Jeová. Elas desviaram-se da porta, posicionando-se mais defronte para a janela, e viram-na; então, desorbitaram os esbugalhantes olhos, sacudiram as cabeças pesarosas e partiram à desfilada. Agripina notou como elas repararam na sua nudez, mas em vez de se esconder para dentro, ainda ergueu mais o estore, e ficou a vê-las descerem a rampa de acesso, cochichando uma para a outra e virando-se para trás a cada dez passos dados. Com a mão livre aflorou a púbis, subtilmente, até se sentir humedecer e o clitóris fremir expectante, dando ao pormenor a periclitante urgência do todo.
«O que é que aquelas cabecinhas pensarão do bocado da carne?» Perguntou-se, exalando estridente gargalhada, em simultâneo com o desviar-se da janela, para voltar ao sofá e cortar as unhas do outro pé, a fim de findar a missão iniciada.
Ao sábado não trabalhava, nem tinha aulas. Tendo toda a manhã por sua conta, assim como o resto do dia e fim-de-semana, melhor dizendo. O padrasto, mai-la mãe, tinham partido para Estrasburgo, a passar oito dias que ganharam num concurso de anedotas, conjuntamente a outro casal, mas cujo prémio desfrutariam em Bruxelas, num programa televisivo do canal oficial nacional.
«Nunca se sabe!... Nunca se sabe!...» E suspirou.
Acabada a tarefa, pôs os dois pés no sofá, massajando-os com a mão dos seus lados, até que os sentiu lassos e descontraídos. Ligou a televisão, sem escolher qualquer canal e virou-se de lado. Passou a perna direita por cima do encosto, deixando-a bamba e descaída do outro lado, e estendeu a esquerda para fora, apoiando o calcanhar na alcatifa, ou no que dela restava, e deitou-se para trás, ao comprido, o braço direito ao longo do encosto, a cabeça no apoio de braços e o esquerdo pendente a coçar uma comichão imaginária no tecido do chão.
Quando acordou, mantinha a posição, e, na TV, estavam a transmitir o Jornal de Domingo, rodopiando reflexos e sombras para o tecto. Era tarde avançada, e o fim-de-semana escoava-se na penumbra a emergir, terminava com o crepúsculo a adensar-se, a crescer para o escuro na repetição garantida de mais uma semana cinzenta que se avizinhava, também ela com a esperança a rodopiar intermitente no cimo convexo de uma abóbada virtual.

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